Bambúrrio

(Um desafio do Paulo Freixinho, o mestre das palavras cruzadas: criar uma estória contendo algumas palavras sugeridas por ele: amplexo, ciciar, iniquidade, bambúrrio, amizade e confabular. Eis o resultado. Já agora: a estória é inspirada no quadro Krefeld Project Sun Room Scene 1, Eric Fischl.)



Ele, já despido, pega o copo e olha pela janela, tecendo comentários preguiçosos e irrelevantes sobre dois operários que trabalham no jardim da casa vizinha. Ela, ainda vestida, está indolentemente estendida num cadeirão e escuta-o, sem grande curiosidade ou interesse. Estão confortáveis, adiando ao máximo o sexo; porque a antecipação é quase tão excitante como a própria concretização; e, também, porque mal comecem já não haverá pausas, intervalos, adiamentos: e tudo terminará demasiado depressa. E, por vezes, é agradável simplesmente conversar um pouco, confabular sem pressa nem objectivo; como se existisse verdadeira amizade entre si.)
ELA (num tom quase indiferente): Ainda não disseste o que achas do vestido.
ELE (sem se voltar para ela): É novo?
ELA (sem se entusiasmar): Vi-o no outro dia numa montra e pensei logo naquilo que tinhas dito.
ELE (após uma pausa, quase contrariado): O que é que eu disse?
ELA (agastada): Que gostavas de me ver num vestido preto.
ELE (fingindo interesse mas sem a olhar): Fica-te bem.
ELA (incrédula mas bem-disposta): Não te lembras, pois não?
(Ele não responde; vira-se lentamente e olha-a, apreciativamente.)
ELE (sem desviar o olhar): Tens alguma coisa por baixo?
ELA (sorrindo): Vem ver.
(Ele sorri e pousa o copo; aproxima-se dela, aperta-a contra si num amplexo quase indiferente; afasta-lhe a alça do vestido, envolve o seio com a mão, acaricia o mamilo sem pressa; Ela observa o seu próprio seio, séria. Então, toca um telemóvel. Ela suspira, irritada; Ele afasta-se dela e caminha pela sala, procurando a roupa; retira o telemóvel do bolso do casaco e atende.)
ELE (num tom frio, falando para o telemóvel): Sim? (Escuta atentamente, enquanto caminha pela sala. Ela olha o seu pénis flácido, aborrecida; volta a cobrir o seio, ajeita o vestido.) Onde? (Acena com a cabeça, concentrado na conversa.) Ok. (E desliga. Pousa o telemóvel junto do copo e fica a olhar para a janela, pensativo.)
ELA (irritada): Então, fodemos ou não?
(Ele ignora-a, como se nem tivesse ouvido.)
ELE (num tom triste e pensativo, quase um ciciar, como se falasse consigo próprio): A minha mulher teve um acidente de carro. (Caminha em direcção às suas roupas, sem pressa.) Acho que tenho de ir ao hospital. (Mas parece indeciso, pegando a camisa sem a vestir; talvez aquela desgraça pudesse ser, afinal, um princípio de libertação, um acaso inesperado, quase um bambúrrio.)
(Ela estende-se no cadeirão, procurando uma posição mais confortável.)
ELA (fechando os olhos; num tom indolente, o tom de iniquidade e indiferença que sempre a caracterizara): Vai lá, espero aqui por ti.