Paulo Kellerman é autor de sete peças, duas óperas e uma curta-metragem. Publicou vinte e dois livros em diversos géneros literários. Concebeu, coordenou ou participou em projectos com dezenas de criadores das mais diversas áreas artísticas. É responsável pelo projecto Fotografar Palavras, que desde 2016 envolveu mais de 330 criadores (fotógrafos e escritores) de 35 países, e foi co-fundador da editora Minimalista. Recebeu o Grande Prémio do Conto da Associação Portuguesa de Escritores.
# 36: Numa rua anónima de uma cidade qualquer
1.
Só hoje reparei verdadeiramente em ti. Eras, apenas, uma mulher banal que por vezes via, lá do outro lado da rua. Sentava-me na minha varanda a aproveitar os últimos raios de sol e entregue ao alheamento temporário de um livro; lia, sem excessiva concentração, talvez apenas pelo prazer de murmurar palavras que, na verdade, não tinham importância; à espera que o tempo fosse passando, que o silêncio me fosse contagiando, que a solidão me fosse confortando. Havia alturas em que desviava os olhos do livro e os deslizava sem objectivo, com preguiça, talvez apenas para recordar onde estava, quem era; para confirmar a continuação da minha própria vida, a presença de mim próprio. O olhar divagava pelas varandas que sempre se exibiram perante mim, do outro lado da rua: misteriosas, convidativas, excitantes. À distância de um olhar, desfilavam pedaços de vidas estranhas e incompreensíveis; vislumbres de existências tão banais e vulgares como a minha mas, de certo modo, fascinantes.
Do outro lado da rua: janelas que abriam e meninos que apareciam, despidos, agarrados a bolas; janelas que abriam e donas de casa que vinham e estendiam roupa, regavam plantas, varriam, puxavam as orelhas aos filhos; janelas que abriam e homens que surgiam com cigarros na mão, debruçados, a olhar lá para baixo, pensativos. E, por vezes, aparecias tu: sentavas-te no teu banquinho e fumavas, olhando em frente. Gestos lentos, tranquilos; expressão cansada ou contrariada ou desgastada. Apesar da distância, parecias-me bonita; e por isso, lançava-te fugazes olhares de curiosidade, talvez de voluptuosidade. A tua presença durava apenas o tempo de um cigarro, depois desaparecias por trás do vidro, da cortina branca; e por uns instantes ficava a contemplar a memória da tua presença, por uns instantes pensava em ti; imaginava-te. Depois, regressava ao livro. Esquecia-te. Ou melhor: adiava-te.
2.
Até hoje. Não trazias um cigarro mas um maço deles; e na outra mão, um livro. Sentaste-te, como sempre fazias, e começaste a fumar; depois, pegaste no livro e leste. Apesar da distância, percebi que lias o mesmo livro que eu; e não consegui tirar os olhos de ti.
Até agora, que te levantas e abandonas a varanda.
3.
Estou ansioso, à espera que venhas.
Não consegui ler uma única linha; apenas fingi que o fazia, enquanto lançava espreitadelas embaraçadas à tua cortina. E ia apressando a passagem do tempo, tentando distrair-me, fazendo perguntas, especulando; por que motivo começaras subitamente a ler, quando em todos estes meses nunca te surpreendi qualquer inclinação literária? Por que motivo escolheras precisamente o livro que eu também lia? Teria sido uma fantástica (e literária) coincidência? Ou repararas em mim e a tua escolha poderia ser considerada uma tentativa de estabelecer comunicação comigo? Uma brincadeira? Uma provocação? Um jogo? Uma sedução?
Esperava: e nem por um momento duvidei que virias.
Chegas, por fim. Caminhas entre as cortinas, entras na varanda: e o teu primeiro gesto é procurar-me. Surpreendes-me, desvio o olhar; e preciso de muito tempo para vencer o embaraço e reunir a coragem necessária para voltar a espreitar-te; estás sentada, cigarro na mão, concentrada no livro. Refugio-me na leitura, leio repetidamente a mesma frase; sinto o tempo imóvel. Há nervosismo, há curiosidade, há surpresa, há excitação. Isto é absurdamente patético; mas é, também, excitante. E gosto.
4.
Os dias passam, iguais; e a nossa partilha silenciosa torna-se uma rotina.
Lemos, separados por uma rua. Por vezes, pousas o livro e acendes um novo cigarro; olhas de modo distraído, quase enfadado, o que te rodeia, este nosso mundo comum. De repente, há um grito que vem de uma janela qualquer, uma voz que se ergue, um apito estridente; e olhamos, os dois: juntos.
Mas talvez nem tenhas realmente reparado em mim; uma coincidência, apenas: duas pessoas que lêem o mesmo livro, numa rua anónima de uma cidade qualquer. Afinal, é esse o destino dos humanos: estarem irremediavelmente separados uns dos outros, apesar de tão próximos entre si. Fingimos que compreendemos os outros, por vezes até acreditamos, com convicção, que conhecemos efectivamente aqueles que amamos. Suponho, contudo, que a realidade seja diferente: temos apenas umas pistas, umas intuições, uns instintos; procuramos adivinhar, por vezes acertamos. Apenas acreditamos na riqueza e complexidade do outro para que o outro (lá longe, na sua varanda) corresponda com a cortesia de acreditar na complexidade e riqueza de nós próprios, poupando-nos a indignidade se nos confrontarmos com a nossa rudimentar e hermética simplicidade; tentamos dissimular a inconsequência da maioria dos nossos actos, a banalidade da maioria dos nossos pensamentos, a irrelevância da maioria dos nossos objectivos, a mesquinhez da maioria dos nossos sonhos, a hipocrisia da maioria dos nossos sorrisos; tentamos superar-nos, transformando-nos em pomposos seres que estudam diligentemente os mistérios do universo e inventam deuses obscuros e complexos para explicar o que são incapazes de compreender, seres utópicos e ingénuos com desígnios e objectivos e enigmas e dilemas e éticas, seres que secretamente acreditam na felicidade plena e até na imortalidade; seres iludidos, crédulos, distraídos.
Mas, na verdade, não enganamos ninguém. E os dias vão passando, devagarinho.
5.
Espio-te, querendo acreditar numa momentânea possibilidade de quebra das regras da monotonia, da previsibilidade, da civilidade. E consigo imaginar-nos na mesma varanda: juntos; imagino que não há todo este espaço a separar-nos e que, afinal, dividimos o mesmo banco, usamos o mesmo cinzeiro, respiramos o mesmo ar. Lemos em silêncio, partilhamos um cigarro. Podemos, até, tocar-nos. Há alturas em que um de nós diz: escuta isto. E lê um parágrafo, com afectação e pompa. Lemos, escutamos. Partilhamos o silêncio, a compreensão; segredos. E regressamos aos respectivos livros, em busca de mais: procurando tesouros para dar ao outro. Juntos.
Sim, imagino isto: e pergunto-me se tu imaginarás o mesmo.
6.
Temos este elo que nos une: lemos o mesmo livro. Um elo frágil, volátil; na verdade: inexistente. Falta-nos tudo: não sei quem és, não conheço o teu nome, nunca ouvi a tua voz; desconheço o teu riso, o teu cheiro. Não sei o que pensas, como pensas, se pensas. Não sei qual é a tua cor favorita, não sei se gostas de cerveja, se lês jornais, se comes pipocas no cinema. Não sei se vives só, se tens filhos, se és casada, se tens namorado, se és lésbica, se és virgem. Não faço ideia. Tudo o que sei de ti é este pedaço de realidade: lês o mesmo livro que eu. Nem sei se gostas do que lês, se irás até ao fim. Eu confesso-te: detesto o livro, apenas continuo com ele porque é tudo o que nos une. Receio que quando um de nós o terminar, quando nem isso nos unir, estes singulares fins de tarde, inesperados e um pouco inquietantes, terminem tal como começaram: sem aviso. Mais uma fantasia cruelmente dissipada pela realidade concreta, outro caminho que conduzirá a um beco sem saída.
Prossigo a leitura, perguntando-me se haverá algures um caminho que conduza efectivamente a algum lado.
7.
Sentas-te e cruzas as pernas; o pano leve e solto da saia sobe e revela-te. Olho, um pouco surpreendido: não por as tuas pernas serem belas e voluptuosas e apetecíveis mas por existirem, simplesmente. Como um adolescente que descobre por acidente que a mãe também tem seios.
Acendes o cigarro, concentras-te no livro.
Espio as tuas coxas, incapaz de desviar os olhos. Imperceptivelmente, tudo muda, tudo se altera: as tuas pernas comprovam que és (também) um ser sexual, um corpo que se expõe, que convida, que excita; uma possibilidade. O que até aqui fora um jogo silencioso e inócuo revela uma potencial componente sexual: o teu cruzar de pernas parece-me um prelúdio de sedução, de tentação; e o livro, que ergues em frente dos olhos com aparente concentração, talvez não seja mais que um adereço; refugias-te nele, para que eu possa contemplar-te.
E eu contemplo-te.
8.
Agora, vens todos os dias com saia.
E tornou-se desconfortável. Anseio olhar as tuas pernas, por vezes sinto um princípio de erecção que apenas não se torna completa porque, na verdade, sinto-me ridículo. Pergunto-me: será tudo um acaso? Ou de algum modo misterioso terás descoberto que são as pernas o que mais me excita no corpo de uma mulher? Penso: brincas comigo. Penso: provocas-me. Penso: humilhas-me. Por vezes, cedo: e imagino a minha língua a subir pela tua pele arrepiada, ouso até imaginar os teus suspiros de prazer. Depois, a realidade cai sobre mim, violenta: estou numa varanda, a fingir que leio, a espreitar as pernas de uma desconhecida, excitado como um adolescente. Iludido, crédulo, distraído.
Mais que desconfortável: esta situação torna-se embaraçosa.
9.
Continuamos a encontrar-nos aqui, com os nossos livros, em silêncio, à distância. Depois daquela primeira vez, não voltámos a olhar-nos; nunca sorrimos. Tu provocas-me e eu cedo. Por vezes, pergunto-me por que motivo te desejo e concluo, quase sempre, que será apenas por saber que nunca estaremos juntos; por mais que a sensualidade do teu corpo me tente, por mais que a minha imaginação me inquiete: serás sempre uma fantasia.
Fumamos, sopramos o fumo com enfado. O sol vai desaparecendo, devagarinho. Crianças correm na rua, aos gritos; rindo. Outras pessoas, noutras varandas. Tudo tão cansativo, tão fútil.
Hoje, sou eu o primeiro a levantar-me e a abandonar a varanda.
10.
Mas foi precisamente hoje que sonhei contigo.
Acordei com uma erecção desconfortável e forcei-me a enfrentar a escuridão que vinha da janela. Para além do vidro, havia a varanda, um pedaço de vazio, outra varanda, outro vidro; e tu, a dormir, talvez só, talvez não.
Agora, rebolo na cama, incomodado, desconfortável. Tentando não acordar aquela que me ama, aquela que estou condenado a amar. E pensando em ti. Pergunto-me se, na verdade, a traí, a estou a trair. Não por causa do sonho mas pelo que ele revela, pelo que me força a consciencializar: que desejo efectivamente dormir contigo.
Confesso-te: o meu casamento começa a desagradar-me. Amamo-nos e, em simultâneo, cansamo-nos. A paixão desapareceu, resta o conforto da companhia, a certeza da presença; a volúpia da rotina. Por vezes, custa-me fazer amor com ela, aborrece-me a previsibilidade, exaspera-me a obrigação. Descubro-lhe pequenas fraquezas que me incomodam: a estridência de uma gargalhada, a rispidez de um gesto, a incapacidade de apreender e corresponder uma cumplicidade. Refugiamo-nos, eu na leitura, ela na pintura. Buscamos as nossas solidões, apreciamo-las. Fortalecemo-nos. Depois: partilhamos segredos, prazeres, monotonias, gestos, medos, risos. Somos felizes. Jovens e bonitos, vida estável. Um filho lindo. Viajamos, compramos, conhecemos, experimentamos. Quando nos abraçamos, sentimos o quanto nos amamos. Repetimos: juntos para sempre; e acreditamos. Mas há momentos em que sinto um vazio, um incómodo, uma ausência. Algo que falta. Ou cansaço, apenas. E então, fujo para a varanda e leio; ela pinta. É lá, nos livros, nos quadros que (ainda) encontramos o que buscamos, o que precisamos: novas forças, novos caminhos, novas vontades.
Novos pretextos para continuar.
11.
Lá fora, a noite sussurra imperceptivelmente, misteriosa e convidativa.
Ajeito-me ao conforto da cama, da solidão. Mas não consigo esquecer que há uma mulher comigo, junto de mim; escuto o ténue assobio da sua respiração, sinto o calor do seu corpo, respiro o seu cheiro delicado: e penso em trai-la.
Até te conhecer (que disparate: conhecer-te!), até hoje, até agora, nunca pensei em infidelidade. Nunca pensei em procurar noutra pessoa o que a minha mulher não me pode oferecer; sou suficientemente justo para admitir que o problema não está nela, no que poderá ou não oferecer. O problema sou eu, está em mim, está em cada um de nós. Está na presunção de que poderemos ser totalmente felizes, na crença ingénua, ou patética, que poderemos retirar do outro, de um único outro, tudo o que precisamos. Como se a nossa felicidade plena fosse propriedade de alguém, a quem bastaria localizar e pedir: dá-me o que é meu; como se a felicidade não fosse, afinal, uma soma caótica e contraditória de sensações, sabores, impressões, conquistas, afinidades, momentos, toques, sentimentos, prazeres, simplicidades que vamos acumulando, pedaço a pedaço, minuto a minuto, pessoa a pessoa.
Pergunto-me, agora, neste mesmo instante: que poderias tu proporcionar-me? Apenas posso especular, fantasiar: faríamos amor e seria bom, é sempre bom quando os corpos ainda se desconhecem, muito do prazer está na descoberta, na aprendizagem de um corpo novo. Mas, e depois: falaríamos de livros, falaríamos do nosso livro? E o segundo encontro, como seria? Talvez ainda mais excitado, na ânsia de repetir a magia e a intensidade do primeiro. Sim, faríamos amor, partilharíamos sexo, até nos cansarmos. Serias um refúgio, como são os livros que leio na varanda, as fantasias que alimento durante a insónia. Um intervalo.
E seria isso uma traição? Estaria a atraiçoar esta mulher que, agora mesmo, enrosca o seu corpo no meu e ressona suavemente, misteriosamente? Ou será que as distracções não contam como traições?
12.
Apetece-me fumar. Levanto-me devagarinho, com cuidado. Caminho em silêncio, agradecido pelo luar que entra pela janela e guia os meus passos. Entro na casa de banho, olho-me no espelho. Urino. Visto o robe, procuro um cigarro. Acendo-o na varanda, sinto uma nuvem de prazer invadir-me. Sento-me e fecho os olhos, sentindo o vento fresco eriçar-me a pele dos braços, do pescoço. Penso em praias e gelados, em laranjas, tardes de sábado em livrarias, em saltos de pára-quedas, em abraços de amigos, em gritos de crianças a brincar, penso em quadros de Hopper e agulhas de pinheiro, em brincadeiras da infância, em cheiros de chocolate e caramelo, em viagens de comboio, em sacos de compras, em pombas a voar, em espirais de fumo a sair de chaminés antigas, em beijos da adolescência. Depois, abro os olhos: e lá estás tu, com o teu robe, o teu cigarro, na tua varanda. A olhar-me.
13.
Hoje, ao pequeno-almoço, falei-lhe de ti. Falei da vizinha com pernas sensuais que passa os fins de tarde a ler e a fumar, na varanda. Sim: de certo modo, traí-te.
Mais: exorcizei a tentação.
14.
Agora, estou na varanda. Trouxe um novo livro, que leio com prazer, seduzido pela novidade.
Por vezes, espreito a tua varanda, procuro-te. E com a passagem do tempo, vou percebendo, aceitando, que não virás. Que talvez nunca mais venhas. Penso: de algum modo, assustei-a; ou aborreci-a. E tento decidir se o que sinto é arrependimento misturado com decepção ou, simplesmente, alívio.
15.
Se um destes dias nos cruzássemos na rua, talvez à saída da padaria ou depois de arrumar o carro lado a lado ou na fila do supermercado, gostaria de te ler uma frase do livro que fomos silenciosamente partilhando ao longos destes dias. Aquela em que o autor afirma que não é nada difícil ser feliz, o problema está em querer sempre ser mais e mais feliz.
E perguntar-te-ia: porque nunca nos basta a felicidade que temos?
Só hoje reparei verdadeiramente em ti. Eras, apenas, uma mulher banal que por vezes via, lá do outro lado da rua. Sentava-me na minha varanda a aproveitar os últimos raios de sol e entregue ao alheamento temporário de um livro; lia, sem excessiva concentração, talvez apenas pelo prazer de murmurar palavras que, na verdade, não tinham importância; à espera que o tempo fosse passando, que o silêncio me fosse contagiando, que a solidão me fosse confortando. Havia alturas em que desviava os olhos do livro e os deslizava sem objectivo, com preguiça, talvez apenas para recordar onde estava, quem era; para confirmar a continuação da minha própria vida, a presença de mim próprio. O olhar divagava pelas varandas que sempre se exibiram perante mim, do outro lado da rua: misteriosas, convidativas, excitantes. À distância de um olhar, desfilavam pedaços de vidas estranhas e incompreensíveis; vislumbres de existências tão banais e vulgares como a minha mas, de certo modo, fascinantes.
Do outro lado da rua: janelas que abriam e meninos que apareciam, despidos, agarrados a bolas; janelas que abriam e donas de casa que vinham e estendiam roupa, regavam plantas, varriam, puxavam as orelhas aos filhos; janelas que abriam e homens que surgiam com cigarros na mão, debruçados, a olhar lá para baixo, pensativos. E, por vezes, aparecias tu: sentavas-te no teu banquinho e fumavas, olhando em frente. Gestos lentos, tranquilos; expressão cansada ou contrariada ou desgastada. Apesar da distância, parecias-me bonita; e por isso, lançava-te fugazes olhares de curiosidade, talvez de voluptuosidade. A tua presença durava apenas o tempo de um cigarro, depois desaparecias por trás do vidro, da cortina branca; e por uns instantes ficava a contemplar a memória da tua presença, por uns instantes pensava em ti; imaginava-te. Depois, regressava ao livro. Esquecia-te. Ou melhor: adiava-te.
2.
Até hoje. Não trazias um cigarro mas um maço deles; e na outra mão, um livro. Sentaste-te, como sempre fazias, e começaste a fumar; depois, pegaste no livro e leste. Apesar da distância, percebi que lias o mesmo livro que eu; e não consegui tirar os olhos de ti.
Até agora, que te levantas e abandonas a varanda.
3.
Estou ansioso, à espera que venhas.
Não consegui ler uma única linha; apenas fingi que o fazia, enquanto lançava espreitadelas embaraçadas à tua cortina. E ia apressando a passagem do tempo, tentando distrair-me, fazendo perguntas, especulando; por que motivo começaras subitamente a ler, quando em todos estes meses nunca te surpreendi qualquer inclinação literária? Por que motivo escolheras precisamente o livro que eu também lia? Teria sido uma fantástica (e literária) coincidência? Ou repararas em mim e a tua escolha poderia ser considerada uma tentativa de estabelecer comunicação comigo? Uma brincadeira? Uma provocação? Um jogo? Uma sedução?
Esperava: e nem por um momento duvidei que virias.
Chegas, por fim. Caminhas entre as cortinas, entras na varanda: e o teu primeiro gesto é procurar-me. Surpreendes-me, desvio o olhar; e preciso de muito tempo para vencer o embaraço e reunir a coragem necessária para voltar a espreitar-te; estás sentada, cigarro na mão, concentrada no livro. Refugio-me na leitura, leio repetidamente a mesma frase; sinto o tempo imóvel. Há nervosismo, há curiosidade, há surpresa, há excitação. Isto é absurdamente patético; mas é, também, excitante. E gosto.
4.
Os dias passam, iguais; e a nossa partilha silenciosa torna-se uma rotina.
Lemos, separados por uma rua. Por vezes, pousas o livro e acendes um novo cigarro; olhas de modo distraído, quase enfadado, o que te rodeia, este nosso mundo comum. De repente, há um grito que vem de uma janela qualquer, uma voz que se ergue, um apito estridente; e olhamos, os dois: juntos.
Mas talvez nem tenhas realmente reparado em mim; uma coincidência, apenas: duas pessoas que lêem o mesmo livro, numa rua anónima de uma cidade qualquer. Afinal, é esse o destino dos humanos: estarem irremediavelmente separados uns dos outros, apesar de tão próximos entre si. Fingimos que compreendemos os outros, por vezes até acreditamos, com convicção, que conhecemos efectivamente aqueles que amamos. Suponho, contudo, que a realidade seja diferente: temos apenas umas pistas, umas intuições, uns instintos; procuramos adivinhar, por vezes acertamos. Apenas acreditamos na riqueza e complexidade do outro para que o outro (lá longe, na sua varanda) corresponda com a cortesia de acreditar na complexidade e riqueza de nós próprios, poupando-nos a indignidade se nos confrontarmos com a nossa rudimentar e hermética simplicidade; tentamos dissimular a inconsequência da maioria dos nossos actos, a banalidade da maioria dos nossos pensamentos, a irrelevância da maioria dos nossos objectivos, a mesquinhez da maioria dos nossos sonhos, a hipocrisia da maioria dos nossos sorrisos; tentamos superar-nos, transformando-nos em pomposos seres que estudam diligentemente os mistérios do universo e inventam deuses obscuros e complexos para explicar o que são incapazes de compreender, seres utópicos e ingénuos com desígnios e objectivos e enigmas e dilemas e éticas, seres que secretamente acreditam na felicidade plena e até na imortalidade; seres iludidos, crédulos, distraídos.
Mas, na verdade, não enganamos ninguém. E os dias vão passando, devagarinho.
5.
Espio-te, querendo acreditar numa momentânea possibilidade de quebra das regras da monotonia, da previsibilidade, da civilidade. E consigo imaginar-nos na mesma varanda: juntos; imagino que não há todo este espaço a separar-nos e que, afinal, dividimos o mesmo banco, usamos o mesmo cinzeiro, respiramos o mesmo ar. Lemos em silêncio, partilhamos um cigarro. Podemos, até, tocar-nos. Há alturas em que um de nós diz: escuta isto. E lê um parágrafo, com afectação e pompa. Lemos, escutamos. Partilhamos o silêncio, a compreensão; segredos. E regressamos aos respectivos livros, em busca de mais: procurando tesouros para dar ao outro. Juntos.
Sim, imagino isto: e pergunto-me se tu imaginarás o mesmo.
6.
Temos este elo que nos une: lemos o mesmo livro. Um elo frágil, volátil; na verdade: inexistente. Falta-nos tudo: não sei quem és, não conheço o teu nome, nunca ouvi a tua voz; desconheço o teu riso, o teu cheiro. Não sei o que pensas, como pensas, se pensas. Não sei qual é a tua cor favorita, não sei se gostas de cerveja, se lês jornais, se comes pipocas no cinema. Não sei se vives só, se tens filhos, se és casada, se tens namorado, se és lésbica, se és virgem. Não faço ideia. Tudo o que sei de ti é este pedaço de realidade: lês o mesmo livro que eu. Nem sei se gostas do que lês, se irás até ao fim. Eu confesso-te: detesto o livro, apenas continuo com ele porque é tudo o que nos une. Receio que quando um de nós o terminar, quando nem isso nos unir, estes singulares fins de tarde, inesperados e um pouco inquietantes, terminem tal como começaram: sem aviso. Mais uma fantasia cruelmente dissipada pela realidade concreta, outro caminho que conduzirá a um beco sem saída.
Prossigo a leitura, perguntando-me se haverá algures um caminho que conduza efectivamente a algum lado.
7.
Sentas-te e cruzas as pernas; o pano leve e solto da saia sobe e revela-te. Olho, um pouco surpreendido: não por as tuas pernas serem belas e voluptuosas e apetecíveis mas por existirem, simplesmente. Como um adolescente que descobre por acidente que a mãe também tem seios.
Acendes o cigarro, concentras-te no livro.
Espio as tuas coxas, incapaz de desviar os olhos. Imperceptivelmente, tudo muda, tudo se altera: as tuas pernas comprovam que és (também) um ser sexual, um corpo que se expõe, que convida, que excita; uma possibilidade. O que até aqui fora um jogo silencioso e inócuo revela uma potencial componente sexual: o teu cruzar de pernas parece-me um prelúdio de sedução, de tentação; e o livro, que ergues em frente dos olhos com aparente concentração, talvez não seja mais que um adereço; refugias-te nele, para que eu possa contemplar-te.
E eu contemplo-te.
8.
Agora, vens todos os dias com saia.
E tornou-se desconfortável. Anseio olhar as tuas pernas, por vezes sinto um princípio de erecção que apenas não se torna completa porque, na verdade, sinto-me ridículo. Pergunto-me: será tudo um acaso? Ou de algum modo misterioso terás descoberto que são as pernas o que mais me excita no corpo de uma mulher? Penso: brincas comigo. Penso: provocas-me. Penso: humilhas-me. Por vezes, cedo: e imagino a minha língua a subir pela tua pele arrepiada, ouso até imaginar os teus suspiros de prazer. Depois, a realidade cai sobre mim, violenta: estou numa varanda, a fingir que leio, a espreitar as pernas de uma desconhecida, excitado como um adolescente. Iludido, crédulo, distraído.
Mais que desconfortável: esta situação torna-se embaraçosa.
9.
Continuamos a encontrar-nos aqui, com os nossos livros, em silêncio, à distância. Depois daquela primeira vez, não voltámos a olhar-nos; nunca sorrimos. Tu provocas-me e eu cedo. Por vezes, pergunto-me por que motivo te desejo e concluo, quase sempre, que será apenas por saber que nunca estaremos juntos; por mais que a sensualidade do teu corpo me tente, por mais que a minha imaginação me inquiete: serás sempre uma fantasia.
Fumamos, sopramos o fumo com enfado. O sol vai desaparecendo, devagarinho. Crianças correm na rua, aos gritos; rindo. Outras pessoas, noutras varandas. Tudo tão cansativo, tão fútil.
Hoje, sou eu o primeiro a levantar-me e a abandonar a varanda.
10.
Mas foi precisamente hoje que sonhei contigo.
Acordei com uma erecção desconfortável e forcei-me a enfrentar a escuridão que vinha da janela. Para além do vidro, havia a varanda, um pedaço de vazio, outra varanda, outro vidro; e tu, a dormir, talvez só, talvez não.
Agora, rebolo na cama, incomodado, desconfortável. Tentando não acordar aquela que me ama, aquela que estou condenado a amar. E pensando em ti. Pergunto-me se, na verdade, a traí, a estou a trair. Não por causa do sonho mas pelo que ele revela, pelo que me força a consciencializar: que desejo efectivamente dormir contigo.
Confesso-te: o meu casamento começa a desagradar-me. Amamo-nos e, em simultâneo, cansamo-nos. A paixão desapareceu, resta o conforto da companhia, a certeza da presença; a volúpia da rotina. Por vezes, custa-me fazer amor com ela, aborrece-me a previsibilidade, exaspera-me a obrigação. Descubro-lhe pequenas fraquezas que me incomodam: a estridência de uma gargalhada, a rispidez de um gesto, a incapacidade de apreender e corresponder uma cumplicidade. Refugiamo-nos, eu na leitura, ela na pintura. Buscamos as nossas solidões, apreciamo-las. Fortalecemo-nos. Depois: partilhamos segredos, prazeres, monotonias, gestos, medos, risos. Somos felizes. Jovens e bonitos, vida estável. Um filho lindo. Viajamos, compramos, conhecemos, experimentamos. Quando nos abraçamos, sentimos o quanto nos amamos. Repetimos: juntos para sempre; e acreditamos. Mas há momentos em que sinto um vazio, um incómodo, uma ausência. Algo que falta. Ou cansaço, apenas. E então, fujo para a varanda e leio; ela pinta. É lá, nos livros, nos quadros que (ainda) encontramos o que buscamos, o que precisamos: novas forças, novos caminhos, novas vontades.
Novos pretextos para continuar.
11.
Lá fora, a noite sussurra imperceptivelmente, misteriosa e convidativa.
Ajeito-me ao conforto da cama, da solidão. Mas não consigo esquecer que há uma mulher comigo, junto de mim; escuto o ténue assobio da sua respiração, sinto o calor do seu corpo, respiro o seu cheiro delicado: e penso em trai-la.
Até te conhecer (que disparate: conhecer-te!), até hoje, até agora, nunca pensei em infidelidade. Nunca pensei em procurar noutra pessoa o que a minha mulher não me pode oferecer; sou suficientemente justo para admitir que o problema não está nela, no que poderá ou não oferecer. O problema sou eu, está em mim, está em cada um de nós. Está na presunção de que poderemos ser totalmente felizes, na crença ingénua, ou patética, que poderemos retirar do outro, de um único outro, tudo o que precisamos. Como se a nossa felicidade plena fosse propriedade de alguém, a quem bastaria localizar e pedir: dá-me o que é meu; como se a felicidade não fosse, afinal, uma soma caótica e contraditória de sensações, sabores, impressões, conquistas, afinidades, momentos, toques, sentimentos, prazeres, simplicidades que vamos acumulando, pedaço a pedaço, minuto a minuto, pessoa a pessoa.
Pergunto-me, agora, neste mesmo instante: que poderias tu proporcionar-me? Apenas posso especular, fantasiar: faríamos amor e seria bom, é sempre bom quando os corpos ainda se desconhecem, muito do prazer está na descoberta, na aprendizagem de um corpo novo. Mas, e depois: falaríamos de livros, falaríamos do nosso livro? E o segundo encontro, como seria? Talvez ainda mais excitado, na ânsia de repetir a magia e a intensidade do primeiro. Sim, faríamos amor, partilharíamos sexo, até nos cansarmos. Serias um refúgio, como são os livros que leio na varanda, as fantasias que alimento durante a insónia. Um intervalo.
E seria isso uma traição? Estaria a atraiçoar esta mulher que, agora mesmo, enrosca o seu corpo no meu e ressona suavemente, misteriosamente? Ou será que as distracções não contam como traições?
12.
Apetece-me fumar. Levanto-me devagarinho, com cuidado. Caminho em silêncio, agradecido pelo luar que entra pela janela e guia os meus passos. Entro na casa de banho, olho-me no espelho. Urino. Visto o robe, procuro um cigarro. Acendo-o na varanda, sinto uma nuvem de prazer invadir-me. Sento-me e fecho os olhos, sentindo o vento fresco eriçar-me a pele dos braços, do pescoço. Penso em praias e gelados, em laranjas, tardes de sábado em livrarias, em saltos de pára-quedas, em abraços de amigos, em gritos de crianças a brincar, penso em quadros de Hopper e agulhas de pinheiro, em brincadeiras da infância, em cheiros de chocolate e caramelo, em viagens de comboio, em sacos de compras, em pombas a voar, em espirais de fumo a sair de chaminés antigas, em beijos da adolescência. Depois, abro os olhos: e lá estás tu, com o teu robe, o teu cigarro, na tua varanda. A olhar-me.
13.
Hoje, ao pequeno-almoço, falei-lhe de ti. Falei da vizinha com pernas sensuais que passa os fins de tarde a ler e a fumar, na varanda. Sim: de certo modo, traí-te.
Mais: exorcizei a tentação.
14.
Agora, estou na varanda. Trouxe um novo livro, que leio com prazer, seduzido pela novidade.
Por vezes, espreito a tua varanda, procuro-te. E com a passagem do tempo, vou percebendo, aceitando, que não virás. Que talvez nunca mais venhas. Penso: de algum modo, assustei-a; ou aborreci-a. E tento decidir se o que sinto é arrependimento misturado com decepção ou, simplesmente, alívio.
15.
Se um destes dias nos cruzássemos na rua, talvez à saída da padaria ou depois de arrumar o carro lado a lado ou na fila do supermercado, gostaria de te ler uma frase do livro que fomos silenciosamente partilhando ao longos destes dias. Aquela em que o autor afirma que não é nada difícil ser feliz, o problema está em querer sempre ser mais e mais feliz.
E perguntar-te-ia: porque nunca nos basta a felicidade que temos?
# 35: Funcionária da Zara (2006 Remix)
1.
Sim, ouves bem: por vezes, odeio o meu filho. Sei que não te surpreendo, sei que apenas te revelo uma verdade que já conhecias, que pelo menos já suspeitavas. Conheces-me bem, lês-me tão facilmente; por isso, sei que percebes: como poderia não o odiar? Sabes como me privou da minha vida, da minha verdadeira vida. Assististe à minha transformação, à minha metamorfose, à minha degradação; agora, já não sou mulher; sou, apenas, mãe. E isso significa ser escrava dele, e do seu bem-estar, ser escrava do choro, da vontade, da fragilidade, da necessidade, da dependência de um ser que não desejei, de um ser que é um acidente. Significa viver em função dele, viver para ele. Sou escrava do meu filho, e por isso odeio-o. Mas também o amo, amo-o muito. Se apenas o odiasse, seria simples, seria fácil. Mas sou incapaz de não o amar. E há tanto para amar: amo a serenidade do seu olhar, por exemplo; e gosto de sentir o seu amor incondicional quando me toca, quando me acaricia; gosto da segurança que me transmite, amo-o quando me faz sentir útil, quando me faz sentir desejada, quando me faz sentir poderosa; gosto do seu cheiro; gosto de o ver dormir, gosto do seu sorriso quando acorda e reconhece o meu rosto. Amo-o mesmo muito: porque, agora, sou mãe; amo-o enquanto mãe, amo-o quando consigo esquecer que já não sou mulher.
Percebeste isto, não percebes?
2.
Mas depois, sabes como é: há sempre algo que te faz regressar inapelavelmente ao passado. Coisas triviais, como o tom da voz de um desconhecido, a sombra de uma árvore ou a forma como uma folha se pega ao sapato, a configuração das nuvens em determinado momento, o movimento de pessoas anónimas numa rua onde passas todos os dias, uma frase num livro, um rosto triste na televisão, o sabor de um bolo, de um rissol, de um cigarro, o convite contido num sorriso inesperado. Algo indefinido e volátil, algo que não consegues caracterizar nem descrever, e que te remete para um qualquer momento do passado; uma espécie de máquina do tempo que te envia para outro instante da tua vida, talvez um instante em que gostasses de ter permanecido, talvez um instante em que foste feliz.
Por vezes imagino que o mundo está repleto de anjos maus, anjos que carregam consigo enormes álbuns de fotografias invisíveis. Estás tu muito bem, muito feliz, a cantarolar no banho, a fazer amor, a comer bolo de chocolate, a tentar adormecer, a cheirar uma flor, a pensar no pai natal, a experimentar roupa nova, a desenhar bonecos num guardanapo e eis-te surpreendida por um destes anjos, que te exibe mesmo à frente dos olhos uma fotografia do seu álbum. E a fotografia representa um qualquer instante banal do teu passado, um momento esquecido da tua vida; vês-te, reconheces-te. E percebes, és obrigada a perceber, como a tua vida é uma simples acumulação de momentos banais, momentos que logo esqueceste, momentos que não conseguiste saborear adequadamente; uma acumulação de fotografias. Agora, está-me sempre a acontecer: vejo as fotografias imaginárias e percebo que passei a vida ansiosa ou preocupada ou aborrecida ou nervosa, de tal modo distraída que não fui capaz de reparar no que é essencial, não compreendi o âmago de cada momento; e só agora, com a passagem do tempo, consigo surpreender em determinado momento do passado a importância e o potencial que fui incapaz de lhe reconhecer em tempo real. Vejo-me perante estas fotografias, estes farrapos fragmentados de felicidade, e percebo a imensidão do que não aproveitei. E a impossibilidade de voltar atrás, de repetir, de recomeçar, exaspera-me. Penso em tudo o que podia fazer e não fiz: e sofro. Amaldiçoo este anjo e as suas fotografias, amaldiçoo a memória. Desejo esquecer, ignorar os erros do passado e enfrentar o presente com serenidade e sabedoria, transformar o presente num passado inofensivo. Mas sinto-me incapaz. E em grande parte, por causa dele. Acho que o bebé é, na verdade, o meu anjo mau. Percebes isto? Sei que estou a ser injusta, que estou a ser estúpida, mas não consigo impedir-me de projectar nele as causas do meu insucesso, da minha infelicidade; e como se não bastasse, ainda o responsabilizo pela impossibilidade em refazer o passado, de regressar atrás e fazer novas escolhas, seguir novos caminhos, experimentar novas possibilidades. Porque foi ele que me condenou a ser mãe; é a ele que atribuo o meu fim enquanto mulher; foi ele que me forçou a mudar de etapa precocemente. E então, odeio-o.
Mas não só por isso. O bebé lembra-me o Marido. Sabes como foi, nunca falámos disto mas tu sabes tão bem como eu. O Marido amava Outra; e quando ela o afastou, ficou inconsolável. Fui eu que o amparei, que o confortei, que o acariciei. Sabes como estava confusa, como ansiava por encontrar o meu caminho; sabes como precisava de uma distracção, de uma motivação. E talvez estupidamente, decidi concentrar-me nele, decidi fazer dele o meu caminho. Focalizei nele a minha necessidade de independência, de rebeldia, de controlo sobre o futuro. Precisava de definir-me, perante mim própria mas também (ou principalmente) perante os meus pais, até perante ti. Precisava de definir o meu futuro académico e profissional, precisava de definir a minha sexualidade, precisava de definir a minha ambição. E nele, no Marido, encontrei uma possibilidade de futuro; também um pretexto para não ser forçada a fazer demasiadas escolhas, demasiadas roturas. De certo modo, assumi-o como um adiamento, transformei-o em pretexto para ir adiando. Uma desculpa. Foi preciso nascer o bebé para perceber; meteram-no nas minhas mãos, a berrar, vermelho e sujo, feio feio, e pensei: não é um bebé, é um despertador. Pensei: e resultou, estou a acordar. Enfermeiras a sorrir à minha volta, e eu a pensar, a antecipar: passaram poucos anos, posso até tentar recuperar este tempo que passou; mas a partir de hoje, sentir-me-ei presa; prisioneira de mim e do meu passado, prisioneira de todas as vidas que poderia ter tido; prisioneira das escolhas que fiz e das opções que desprezei; mas não só: também prisioneira das aparências, das convenções, das obrigações; prisioneira deles. Mãe e esposa: apenas.
3.
E aqui estou, agora. A conversar contigo, a confessar-me: a lastimar-me. Tenho vinte e oito anos e sinto-me uma mulher de quarenta e cinco; pior: receio que a minha vida de agora seja a minha vida quando tiver quarenta e cinco. Não consigo contrariar esta doentia fatalidade que se apoderou de mim e me corrói suavemente, este zumbido constante que me acompanha junto ao ouvido: a tua vida já te proporcionou tudo o que tinha reservado para ti. Ouço este mantra constantemente: e começo a acreditar. A suspeitar que agora terei perante mim apenas repetições, novas combinações, novas versões. A suspeitar que a minha vida futura poderá ser feita de nuances, de subtis variações; talvez surjam algumas novidades mas a estrutura está definida e permanecerá inalterada. É isto que penso. Olhar em frente: e ver monotonia, ver o conhecido. Penso muito nisto, vejo-me como uma simples repetição, ou como se cumprisse algo pré-definido; como se não vivesse: mas reciclasse. Penso: deram-me uma daquelas vidas mais comuns, mais banais, mais lineares; uma das mais baratas; sem extras. Percebes? Ou será que apenas eu sinto isto?
Olho para trás e tenho tão pouco para mostrar. Abandonei o curso, abandonei o atletismo, abandonei quase todos os amigos; já não saio à noite, já não vou a concertos, já não fumo daquelas coisas boas, já não acredito na bondade dos outros, já não sonho ser cantora, já não fodo platonicamente com estranhos, já não tenho vontade de viagens e aventuras, já não rio sem motivo. Agora, os meus dias são feitos de reciclagens, de adiamentos; adiamentos, por enquanto. Em breve, talvez sejam compostos de desistências, de rendições. Intuo que envelhecer é precisamente isso: ir desistindo do que julgávamos possível, do que julgávamos merecer; deixar de acreditar, deixar de sonhar, deixar de desejar. E como vês, estou a envelhecer: já não sou capaz de me julgar especial; antes pensava que era potencialmente melhor que os outros, agora sei que sou apenas banal, indistinguível, dispensável. Não consigo sentir-me bonita, raramente me sinto desejada ou invejada. Por vezes, sinto falta de ser tocada, abraçada, acariciada; outras vezes, cada vez mais, sinto repulsa dos outros, assusta-me a possibilidade de toque, de tocar. Até o sexo se tornou desconfortável, uma espécie de agressão consentida. E sem prazer, sem sonho, sem fé, sem utopia, sem desejo, sem partilha, que resta?
4.
Não, não exagero. Repara como são os meus dias: passo-os com mulheres bonitas que se julgam deslumbrantes ou mulheres feias que se julgam bonitas ou mulheres deslumbrantes que se julgam deusas ou mulheres nojentas que sabem que o são; mulheres que experimentam dezenas de coisas e depois não arrumam nada, mulheres que cheiram mal e nem suspeitam, mulheres que deixam a cortina do gabinete de provas entreaberta para que eu as espreite, as aprecie, as inveje, as deseje; mulheres que me tratam mal, mulheres que me perguntam a opinião e depois não a escutam; mulheres que me tratam com arrogância, mulheres que me apalpam, mulheres que me tentam enganar; mulheres que, temporariamente, deixaram de o ser: para se transformarem, apenas, em clientes da Zara. E eu, que devo fazer? Sorrir sempre. Ouvir, dizer que sim. Impingir conforto, sensualidade, vaidade, ilusão em forma de roupa. Ser a melhor assistente do mês, ser a melhor colaboradora da loja. Deixar de ser mulher, transformar-me em funcionária da Zara. Alguém em quem o Outro não repara realmente, alguém que não interessa nem é considerado enquanto pessoa, alguém de quem o Outro não conhece o nome e não têm desejo de perguntar, alguém em quem não se pensa porque afinal o Outro sente-se tão, tão superior, alguém a cujo sorriso se é indiferente ou se corresponde com displicência, alguém que pode ser substituível sem que o Outro repare na mudança, alguém que existe para ser útil e que se esgota enquanto instrumento dessa utilidade, alguém que pode ser dispensado, despedido, trocado. Uma funcionária da Zara: é o que sou, é aquilo em que me deixei transformar.
E depois: casa. Um marido que não me ama, um filho que nem sempre amo. Jantares acompanhados de noticiários ruidosos e extractos de prestações para analisar com preocupação. Silêncios partilhados. Dissimulação e rancor. Rotina. Auto-comiseração. Discussões de vizinhos, risos de vizinhos. Risos artificiais. Fodas consentidas. Olhares fugidios. Cigarros solitários. Ausência de objectivos comuns. Ausência de objectivos pessoais. Incapacidade de distinguir os dias, as semanas. Aos vinte e oito anos, é esta a minha vida.
Ainda há momentos em que luto, em que acredito; quando espero que o sono venha, por exemplo. Imagino que tinha concluído o curso: poderia ser uma daquelas jornalistas estagiárias que apresentam reportagens insignificantes no final dos noticiários; poderia ter investido no atletismo: provas internacionais, medalhas e hinos, superação de objectivos dia após dia; poderia até cantar numa banda: gravar discos medíocres, pular em palcos, ser assediada. Também poderia ter ignorado o Marido, poderia ter abortado: libertar-me deles. Poderia ter fugido, ter gritado, ter lutado. Foda-se. Ainda posso, ainda estou a tempo. Não achas? Mas tenho medo. E há a preguiça, a inércia, a passividade. Aconchego-me ao corpo indiferente do Marido: afinal, ainda o amo; habituei-me. Depois, quando estou quase a esquecer, a adormecer, o bebé chora; e todo o fingimento de serenidade se esvai, desaparece. Fico quase só: acompanha-me, apenas, o ódio visceral que nasce da certeza da minha incapacidade de ser feliz, de construir a minha felicidade. Busco fugas desesperadas, ilusórias, tento não enfrentar a realidade e aceitar que me transformei numa pessoa ridícula e incapaz, amarga e angustiada, cobarde e rancorosa, inarticulada e ilógica, cruel e injusta, uma pessoa que reconhece o fracasso da sua vida mas é incapaz de assumir a sua culpa, a sua responsabilidade. Busco; e é então que, por vezes, penso em ti. Penso muito em ti, na verdade: penso principalmente no que poderíamos ter tido.
E tu: ainda pensas em mim?
Sim, ouves bem: por vezes, odeio o meu filho. Sei que não te surpreendo, sei que apenas te revelo uma verdade que já conhecias, que pelo menos já suspeitavas. Conheces-me bem, lês-me tão facilmente; por isso, sei que percebes: como poderia não o odiar? Sabes como me privou da minha vida, da minha verdadeira vida. Assististe à minha transformação, à minha metamorfose, à minha degradação; agora, já não sou mulher; sou, apenas, mãe. E isso significa ser escrava dele, e do seu bem-estar, ser escrava do choro, da vontade, da fragilidade, da necessidade, da dependência de um ser que não desejei, de um ser que é um acidente. Significa viver em função dele, viver para ele. Sou escrava do meu filho, e por isso odeio-o. Mas também o amo, amo-o muito. Se apenas o odiasse, seria simples, seria fácil. Mas sou incapaz de não o amar. E há tanto para amar: amo a serenidade do seu olhar, por exemplo; e gosto de sentir o seu amor incondicional quando me toca, quando me acaricia; gosto da segurança que me transmite, amo-o quando me faz sentir útil, quando me faz sentir desejada, quando me faz sentir poderosa; gosto do seu cheiro; gosto de o ver dormir, gosto do seu sorriso quando acorda e reconhece o meu rosto. Amo-o mesmo muito: porque, agora, sou mãe; amo-o enquanto mãe, amo-o quando consigo esquecer que já não sou mulher.
Percebeste isto, não percebes?
2.
Mas depois, sabes como é: há sempre algo que te faz regressar inapelavelmente ao passado. Coisas triviais, como o tom da voz de um desconhecido, a sombra de uma árvore ou a forma como uma folha se pega ao sapato, a configuração das nuvens em determinado momento, o movimento de pessoas anónimas numa rua onde passas todos os dias, uma frase num livro, um rosto triste na televisão, o sabor de um bolo, de um rissol, de um cigarro, o convite contido num sorriso inesperado. Algo indefinido e volátil, algo que não consegues caracterizar nem descrever, e que te remete para um qualquer momento do passado; uma espécie de máquina do tempo que te envia para outro instante da tua vida, talvez um instante em que gostasses de ter permanecido, talvez um instante em que foste feliz.
Por vezes imagino que o mundo está repleto de anjos maus, anjos que carregam consigo enormes álbuns de fotografias invisíveis. Estás tu muito bem, muito feliz, a cantarolar no banho, a fazer amor, a comer bolo de chocolate, a tentar adormecer, a cheirar uma flor, a pensar no pai natal, a experimentar roupa nova, a desenhar bonecos num guardanapo e eis-te surpreendida por um destes anjos, que te exibe mesmo à frente dos olhos uma fotografia do seu álbum. E a fotografia representa um qualquer instante banal do teu passado, um momento esquecido da tua vida; vês-te, reconheces-te. E percebes, és obrigada a perceber, como a tua vida é uma simples acumulação de momentos banais, momentos que logo esqueceste, momentos que não conseguiste saborear adequadamente; uma acumulação de fotografias. Agora, está-me sempre a acontecer: vejo as fotografias imaginárias e percebo que passei a vida ansiosa ou preocupada ou aborrecida ou nervosa, de tal modo distraída que não fui capaz de reparar no que é essencial, não compreendi o âmago de cada momento; e só agora, com a passagem do tempo, consigo surpreender em determinado momento do passado a importância e o potencial que fui incapaz de lhe reconhecer em tempo real. Vejo-me perante estas fotografias, estes farrapos fragmentados de felicidade, e percebo a imensidão do que não aproveitei. E a impossibilidade de voltar atrás, de repetir, de recomeçar, exaspera-me. Penso em tudo o que podia fazer e não fiz: e sofro. Amaldiçoo este anjo e as suas fotografias, amaldiçoo a memória. Desejo esquecer, ignorar os erros do passado e enfrentar o presente com serenidade e sabedoria, transformar o presente num passado inofensivo. Mas sinto-me incapaz. E em grande parte, por causa dele. Acho que o bebé é, na verdade, o meu anjo mau. Percebes isto? Sei que estou a ser injusta, que estou a ser estúpida, mas não consigo impedir-me de projectar nele as causas do meu insucesso, da minha infelicidade; e como se não bastasse, ainda o responsabilizo pela impossibilidade em refazer o passado, de regressar atrás e fazer novas escolhas, seguir novos caminhos, experimentar novas possibilidades. Porque foi ele que me condenou a ser mãe; é a ele que atribuo o meu fim enquanto mulher; foi ele que me forçou a mudar de etapa precocemente. E então, odeio-o.
Mas não só por isso. O bebé lembra-me o Marido. Sabes como foi, nunca falámos disto mas tu sabes tão bem como eu. O Marido amava Outra; e quando ela o afastou, ficou inconsolável. Fui eu que o amparei, que o confortei, que o acariciei. Sabes como estava confusa, como ansiava por encontrar o meu caminho; sabes como precisava de uma distracção, de uma motivação. E talvez estupidamente, decidi concentrar-me nele, decidi fazer dele o meu caminho. Focalizei nele a minha necessidade de independência, de rebeldia, de controlo sobre o futuro. Precisava de definir-me, perante mim própria mas também (ou principalmente) perante os meus pais, até perante ti. Precisava de definir o meu futuro académico e profissional, precisava de definir a minha sexualidade, precisava de definir a minha ambição. E nele, no Marido, encontrei uma possibilidade de futuro; também um pretexto para não ser forçada a fazer demasiadas escolhas, demasiadas roturas. De certo modo, assumi-o como um adiamento, transformei-o em pretexto para ir adiando. Uma desculpa. Foi preciso nascer o bebé para perceber; meteram-no nas minhas mãos, a berrar, vermelho e sujo, feio feio, e pensei: não é um bebé, é um despertador. Pensei: e resultou, estou a acordar. Enfermeiras a sorrir à minha volta, e eu a pensar, a antecipar: passaram poucos anos, posso até tentar recuperar este tempo que passou; mas a partir de hoje, sentir-me-ei presa; prisioneira de mim e do meu passado, prisioneira de todas as vidas que poderia ter tido; prisioneira das escolhas que fiz e das opções que desprezei; mas não só: também prisioneira das aparências, das convenções, das obrigações; prisioneira deles. Mãe e esposa: apenas.
3.
E aqui estou, agora. A conversar contigo, a confessar-me: a lastimar-me. Tenho vinte e oito anos e sinto-me uma mulher de quarenta e cinco; pior: receio que a minha vida de agora seja a minha vida quando tiver quarenta e cinco. Não consigo contrariar esta doentia fatalidade que se apoderou de mim e me corrói suavemente, este zumbido constante que me acompanha junto ao ouvido: a tua vida já te proporcionou tudo o que tinha reservado para ti. Ouço este mantra constantemente: e começo a acreditar. A suspeitar que agora terei perante mim apenas repetições, novas combinações, novas versões. A suspeitar que a minha vida futura poderá ser feita de nuances, de subtis variações; talvez surjam algumas novidades mas a estrutura está definida e permanecerá inalterada. É isto que penso. Olhar em frente: e ver monotonia, ver o conhecido. Penso muito nisto, vejo-me como uma simples repetição, ou como se cumprisse algo pré-definido; como se não vivesse: mas reciclasse. Penso: deram-me uma daquelas vidas mais comuns, mais banais, mais lineares; uma das mais baratas; sem extras. Percebes? Ou será que apenas eu sinto isto?
Olho para trás e tenho tão pouco para mostrar. Abandonei o curso, abandonei o atletismo, abandonei quase todos os amigos; já não saio à noite, já não vou a concertos, já não fumo daquelas coisas boas, já não acredito na bondade dos outros, já não sonho ser cantora, já não fodo platonicamente com estranhos, já não tenho vontade de viagens e aventuras, já não rio sem motivo. Agora, os meus dias são feitos de reciclagens, de adiamentos; adiamentos, por enquanto. Em breve, talvez sejam compostos de desistências, de rendições. Intuo que envelhecer é precisamente isso: ir desistindo do que julgávamos possível, do que julgávamos merecer; deixar de acreditar, deixar de sonhar, deixar de desejar. E como vês, estou a envelhecer: já não sou capaz de me julgar especial; antes pensava que era potencialmente melhor que os outros, agora sei que sou apenas banal, indistinguível, dispensável. Não consigo sentir-me bonita, raramente me sinto desejada ou invejada. Por vezes, sinto falta de ser tocada, abraçada, acariciada; outras vezes, cada vez mais, sinto repulsa dos outros, assusta-me a possibilidade de toque, de tocar. Até o sexo se tornou desconfortável, uma espécie de agressão consentida. E sem prazer, sem sonho, sem fé, sem utopia, sem desejo, sem partilha, que resta?
4.
Não, não exagero. Repara como são os meus dias: passo-os com mulheres bonitas que se julgam deslumbrantes ou mulheres feias que se julgam bonitas ou mulheres deslumbrantes que se julgam deusas ou mulheres nojentas que sabem que o são; mulheres que experimentam dezenas de coisas e depois não arrumam nada, mulheres que cheiram mal e nem suspeitam, mulheres que deixam a cortina do gabinete de provas entreaberta para que eu as espreite, as aprecie, as inveje, as deseje; mulheres que me tratam mal, mulheres que me perguntam a opinião e depois não a escutam; mulheres que me tratam com arrogância, mulheres que me apalpam, mulheres que me tentam enganar; mulheres que, temporariamente, deixaram de o ser: para se transformarem, apenas, em clientes da Zara. E eu, que devo fazer? Sorrir sempre. Ouvir, dizer que sim. Impingir conforto, sensualidade, vaidade, ilusão em forma de roupa. Ser a melhor assistente do mês, ser a melhor colaboradora da loja. Deixar de ser mulher, transformar-me em funcionária da Zara. Alguém em quem o Outro não repara realmente, alguém que não interessa nem é considerado enquanto pessoa, alguém de quem o Outro não conhece o nome e não têm desejo de perguntar, alguém em quem não se pensa porque afinal o Outro sente-se tão, tão superior, alguém a cujo sorriso se é indiferente ou se corresponde com displicência, alguém que pode ser substituível sem que o Outro repare na mudança, alguém que existe para ser útil e que se esgota enquanto instrumento dessa utilidade, alguém que pode ser dispensado, despedido, trocado. Uma funcionária da Zara: é o que sou, é aquilo em que me deixei transformar.
E depois: casa. Um marido que não me ama, um filho que nem sempre amo. Jantares acompanhados de noticiários ruidosos e extractos de prestações para analisar com preocupação. Silêncios partilhados. Dissimulação e rancor. Rotina. Auto-comiseração. Discussões de vizinhos, risos de vizinhos. Risos artificiais. Fodas consentidas. Olhares fugidios. Cigarros solitários. Ausência de objectivos comuns. Ausência de objectivos pessoais. Incapacidade de distinguir os dias, as semanas. Aos vinte e oito anos, é esta a minha vida.
Ainda há momentos em que luto, em que acredito; quando espero que o sono venha, por exemplo. Imagino que tinha concluído o curso: poderia ser uma daquelas jornalistas estagiárias que apresentam reportagens insignificantes no final dos noticiários; poderia ter investido no atletismo: provas internacionais, medalhas e hinos, superação de objectivos dia após dia; poderia até cantar numa banda: gravar discos medíocres, pular em palcos, ser assediada. Também poderia ter ignorado o Marido, poderia ter abortado: libertar-me deles. Poderia ter fugido, ter gritado, ter lutado. Foda-se. Ainda posso, ainda estou a tempo. Não achas? Mas tenho medo. E há a preguiça, a inércia, a passividade. Aconchego-me ao corpo indiferente do Marido: afinal, ainda o amo; habituei-me. Depois, quando estou quase a esquecer, a adormecer, o bebé chora; e todo o fingimento de serenidade se esvai, desaparece. Fico quase só: acompanha-me, apenas, o ódio visceral que nasce da certeza da minha incapacidade de ser feliz, de construir a minha felicidade. Busco fugas desesperadas, ilusórias, tento não enfrentar a realidade e aceitar que me transformei numa pessoa ridícula e incapaz, amarga e angustiada, cobarde e rancorosa, inarticulada e ilógica, cruel e injusta, uma pessoa que reconhece o fracasso da sua vida mas é incapaz de assumir a sua culpa, a sua responsabilidade. Busco; e é então que, por vezes, penso em ti. Penso muito em ti, na verdade: penso principalmente no que poderíamos ter tido.
E tu: ainda pensas em mim?
Parêntesis
É altura de agradecer a todos os amigos, potenciais amigos, misteriosos desconhecidos e anónimos em geral que tiveram a generosa amabilidade de por aqui passar e deixar uma opinião.
Muito obrigado:
Ana; Ana Lacerda; Azimute; Bruno Diónis; Carolina; Catatau; Cláudio; Darlan Cunha; Dng; Dorab; Fábio; Fernando José Rodrigues; Fernando Venâncio; Gato Escaldado; George Cassiel; Guidite; Hmbf; Inês Leitão; Isabelnurse; Jlm; José Lopes; Kraak / Peixinho; Margarida Celeiro; Mc; Melena; Mitro; Parole; Pastor Peregrino; Paula; Paulo; Pé; Pedro Chagas Freitas; Pegada; Pilantra; Pipoka; Renato C; Ricardo & Carla; Sabine; Salsolakali; Semcantigas; Sherazade; Sissi; Vando; Violeta13; What am I.
Vamos a ver se há ânimo para manter a gaveta aberta por mais uns tempos.
Muito obrigado:
Ana; Ana Lacerda; Azimute; Bruno Diónis; Carolina; Catatau; Cláudio; Darlan Cunha; Dng; Dorab; Fábio; Fernando José Rodrigues; Fernando Venâncio; Gato Escaldado; George Cassiel; Guidite; Hmbf; Inês Leitão; Isabelnurse; Jlm; José Lopes; Kraak / Peixinho; Margarida Celeiro; Mc; Melena; Mitro; Parole; Pastor Peregrino; Paula; Paulo; Pé; Pedro Chagas Freitas; Pegada; Pilantra; Pipoka; Renato C; Ricardo & Carla; Sabine; Salsolakali; Semcantigas; Sherazade; Sissi; Vando; Violeta13; What am I.
Vamos a ver se há ânimo para manter a gaveta aberta por mais uns tempos.
# 32: Um deus
1.
Ligo o rádio e faço uma passagem rápida pelas estações habituais, em busca de uma distracção convincente. Ela olha pela janela, ignora-me; há luzes ocasionais que chegam da rua e iluminam o interior do carro: espreito o seu rosto e confirmo que o desdém, o desconforto, o incómodo, o desagrado ainda persistem. Sinto-me culpado, sinto-me também arrependido; sinto-me impotente: como sempre. Sinto-me a mais, como se a minha simples presença fosse uma agressão desmesurada e intolerável. Encolho-me, dividido entre o desejo corrosivo de acariciar o seu joelho e o medo paralisante de ter destruído a minha última oportunidade. Desejo falar, sei que tenho de falar; mas não encontro palavras, sei que não conheço palavras suficientes. Entretanto: os meus pés pisam pedais, as minhas mãos rodam o volante; o carro avança, o mundo gira.
Um semáforo laranja, lá à frente. A estrada está deserta, escura: poderia acelerar, ignorar a ordem de paragem, continuar. Mas um impulso súbito ordena-me que pare; invade-me uma vontade violenta e tumultuosa de agir, de contrariar o destino, de lutar por mim e por ela e por nós. Aproveitar esta pausa e falar, dizer uma palavra, salvar-me.
Paro e olho-a. Estendo a mão, que talvez esteja a tremer um pouco, e pouso-a sobre o seu joelho; sinto a pele, fria e eriçada, arrepiar-se, insurgir-se contra o meu toque, a minha agressão, a minha tentativa. Agita-se muito ligeiramente mas não me olha. Mantenho a mão, tentando convencer-me que disso depende a minha sobrevivência; pensando: este toque é o único contacto que ainda nos une. E aguardo, à espera que me ocorram as palavras oportunas, ou simplesmente quaisquer palavras.
Mas já não há palavras.
2.
É então que o rapaz vindo do escuro abre a porta e aponta-me uma arma à cabeça. Diz: salta cá para fora. Ouço mas não compreendo, sinto-me incapaz de me mover, de pensar, de compreender. Em silêncio e com aparente indiferença, ele agarra-me pela camisola, junto ao pescoço, e puxa-me, com violência mas sem fúria; quase contrariado. Caio na estrada, sentindo uma dor tão insuportável que talvez seja apenas desamparo ou abandono ou incompreensão. Ele já está sentado no meu lugar; aponta-lhe a arma e diz: daqui para fora. Ela move-se devagarinho, com gestos contrariados, cansados, indiferentes. Talvez ainda não tenha compreendido o que está a acontecer: o medo ainda não chegou.
E é a vulnerabilidade do seu rosto que me desperta e impele a agir; sinto-me sufocado por uma amálgama de medo e ódio e desespero e indiferença e raiva e indignação. Levanto-me, tento levantar-me: disposto a lutar, certo de que a força da minha indignação me tornará invencível. O rapaz olha-me, lê o meu rosto. Aponta a arma e dispara. Depois, fecha a porta e arranca, devagar, com calma, com tanta, tanta calma.
Estou de novo caído na estrada. A surpresa esvai-se rapidamente e a dor surge, intolerável. Dor verdadeira, dor física, dor da carne: dor. O sangue, quente e pegajoso, envolve-me a coxa, transborda de mim e cai no alcatrão; sinto-me deslizar para um estado apático de indiferença e cansaço, à medida que o corpo enfraquece, tentado a desistir. Mas esforço-me por reagir, por lutar. Grito silenciosos foda-se, convoco ódios apocalípticos; esforço-me por não sentir pena de mim. E, de repente, lembro-me dela; procuro-a com o olhar, sôfrego. Vejo-a: no meio da estrada, a olhar-me. Como uma criança que não compreende, que pressente um perigo mas ainda não conseguiu assimilá-lo, senti-lo, demonstrá-lo.
Deito-me no alcatrão, à espera. As dores são insuportáveis e a tentação de desistir ronda-me, sedutora. Mas, uma certeza inexplicável, transcendental, assegura-me que não morrerei; sei que o tiro não foi disparado com intenção de matar.
E recordo o rosto do rapaz. Recordo a indiferença, o desprezo, a supremacia. Intuo que não lhe teria sido particularmente penoso apontar à cabeça ou ao coração; intuo que a escolha da perna foi, afinal, uma generosidade. Compreendo que devo estar agradecido: poderia assassinar-me e não o fez. Devo agradecer a sua bondade. E penso: não voltarei a estar tão próximo de um deus.
Fecho os olhos. Distante e vago, ouço um grito; o grito dela. Finalmente.
Ligo o rádio e faço uma passagem rápida pelas estações habituais, em busca de uma distracção convincente. Ela olha pela janela, ignora-me; há luzes ocasionais que chegam da rua e iluminam o interior do carro: espreito o seu rosto e confirmo que o desdém, o desconforto, o incómodo, o desagrado ainda persistem. Sinto-me culpado, sinto-me também arrependido; sinto-me impotente: como sempre. Sinto-me a mais, como se a minha simples presença fosse uma agressão desmesurada e intolerável. Encolho-me, dividido entre o desejo corrosivo de acariciar o seu joelho e o medo paralisante de ter destruído a minha última oportunidade. Desejo falar, sei que tenho de falar; mas não encontro palavras, sei que não conheço palavras suficientes. Entretanto: os meus pés pisam pedais, as minhas mãos rodam o volante; o carro avança, o mundo gira.
Um semáforo laranja, lá à frente. A estrada está deserta, escura: poderia acelerar, ignorar a ordem de paragem, continuar. Mas um impulso súbito ordena-me que pare; invade-me uma vontade violenta e tumultuosa de agir, de contrariar o destino, de lutar por mim e por ela e por nós. Aproveitar esta pausa e falar, dizer uma palavra, salvar-me.
Paro e olho-a. Estendo a mão, que talvez esteja a tremer um pouco, e pouso-a sobre o seu joelho; sinto a pele, fria e eriçada, arrepiar-se, insurgir-se contra o meu toque, a minha agressão, a minha tentativa. Agita-se muito ligeiramente mas não me olha. Mantenho a mão, tentando convencer-me que disso depende a minha sobrevivência; pensando: este toque é o único contacto que ainda nos une. E aguardo, à espera que me ocorram as palavras oportunas, ou simplesmente quaisquer palavras.
Mas já não há palavras.
2.
É então que o rapaz vindo do escuro abre a porta e aponta-me uma arma à cabeça. Diz: salta cá para fora. Ouço mas não compreendo, sinto-me incapaz de me mover, de pensar, de compreender. Em silêncio e com aparente indiferença, ele agarra-me pela camisola, junto ao pescoço, e puxa-me, com violência mas sem fúria; quase contrariado. Caio na estrada, sentindo uma dor tão insuportável que talvez seja apenas desamparo ou abandono ou incompreensão. Ele já está sentado no meu lugar; aponta-lhe a arma e diz: daqui para fora. Ela move-se devagarinho, com gestos contrariados, cansados, indiferentes. Talvez ainda não tenha compreendido o que está a acontecer: o medo ainda não chegou.
E é a vulnerabilidade do seu rosto que me desperta e impele a agir; sinto-me sufocado por uma amálgama de medo e ódio e desespero e indiferença e raiva e indignação. Levanto-me, tento levantar-me: disposto a lutar, certo de que a força da minha indignação me tornará invencível. O rapaz olha-me, lê o meu rosto. Aponta a arma e dispara. Depois, fecha a porta e arranca, devagar, com calma, com tanta, tanta calma.
Estou de novo caído na estrada. A surpresa esvai-se rapidamente e a dor surge, intolerável. Dor verdadeira, dor física, dor da carne: dor. O sangue, quente e pegajoso, envolve-me a coxa, transborda de mim e cai no alcatrão; sinto-me deslizar para um estado apático de indiferença e cansaço, à medida que o corpo enfraquece, tentado a desistir. Mas esforço-me por reagir, por lutar. Grito silenciosos foda-se, convoco ódios apocalípticos; esforço-me por não sentir pena de mim. E, de repente, lembro-me dela; procuro-a com o olhar, sôfrego. Vejo-a: no meio da estrada, a olhar-me. Como uma criança que não compreende, que pressente um perigo mas ainda não conseguiu assimilá-lo, senti-lo, demonstrá-lo.
Deito-me no alcatrão, à espera. As dores são insuportáveis e a tentação de desistir ronda-me, sedutora. Mas, uma certeza inexplicável, transcendental, assegura-me que não morrerei; sei que o tiro não foi disparado com intenção de matar.
E recordo o rosto do rapaz. Recordo a indiferença, o desprezo, a supremacia. Intuo que não lhe teria sido particularmente penoso apontar à cabeça ou ao coração; intuo que a escolha da perna foi, afinal, uma generosidade. Compreendo que devo estar agradecido: poderia assassinar-me e não o fez. Devo agradecer a sua bondade. E penso: não voltarei a estar tão próximo de um deus.
Fecho os olhos. Distante e vago, ouço um grito; o grito dela. Finalmente.
# 29: Auscultadores
1.
Lá estavas a examinar os livros, um pouco curiosa, um pouco enfadada; olhavas demoradamente, por vezes pegavas um, abrias ao acaso, lias umas frases, espreitavas a etiqueta do preço, pousavas. Não parecias procurar algo em particular; talvez estivesses apenas a matar tempo, ou a aguardar a chegada de alguém; ou talvez esperasses ser surpreendida por algum dos livros, talvez esperasses ser subitamente arrebatada por umas linhas lidas ao acaso, sussurradas pelo destino.
Fui olhando, com curiosidade; espiando. Começando a gostar de ti.
2.
Muitas pessoas entre nós, conversas e risos: e tu completamente indiferente, alheada; mesmo quando alguém passava junto de ti e te tocava, não olhavas. Pegavas nos livros, simplesmente; sem reverência, sem aquela devoção algo aflitiva que alguns desesperados dedicam aos livros. Por vezes, esticavas um braço para pegar um livro mais distante e a manga da T-Shirt subia, revelando uma pequena tatuagem. Vi-a diversas vezes, sentindo-me desagradado: surpreende-me que mulheres bonitas deteriorem o seu corpo com manchas de tinta, com pedaços de latão, que escondam metade do rosto com óculos de sol ridículos, que segurem um cigarro entre os dedos convencidas de que isso é um gesto de sedução. Estive quase a afastar-me, decepcionado, quase vencido pelos meus preconceitos. Mas entretanto percebi que te afastavas da zona da literatura, levando um livro na mão. E segui-te, impelido pela curiosidade de descobrir qual fora, afinal, a tua escolha.
3.
Dirigiste-te para a zona da música, onde caminhaste entre os expositores, pegaste alguns CD’s, espreitaste as promoções. Consegui então espreitar a capa do livro que pegavas; e não me decepcionaste. De novo curioso, de novo seduzido, estudei-te com mais atenção; a saia solta, revelando joelhos magros; a T-Shirt justa, delineando os seios; um cinto coberto de brilhantes; pulseiras, anéis; elegância cuidada, sedução discreta. Fui imaginando um quarto vasto e elegante, coberto de sol: e tu nua, escolhendo cada peça de roupa, cada acessório; preparando-te para enfrentares o mundo, discreta e bela. Inacessível.
Seleccionaste um CD e procuraste um posto de escuta, onde permaneceste alguns minutos a ouvir o teu CD, dançando quase imperceptivelmente. Depois, juntaste-o ao livro e afastaste-te em direcção à área de pagamento. Saia a balouçar, tilintar de pulseiras, cabeça erguida, passos firmes. Fiquei a olhar-te, enquanto te afastavas: memorizando o teu corpo. Despedindo-me.
4.
Regressei ao posto de escuta que ocuparas, onde a tua selecção ainda estava activa; fiquei a ouvir, sentindo a volúpia de estar a ser tocado por um objecto que acabara de ser tocado por ti. E aí permaneci muito tempo, sentindo-te através dos auscultadores, tocando-te (recebendo o teu toque) através dos auscultadores. Pensando que há sempre intermediários, há sempre mediadores que nos unem mas, simultaneamente, impedem a entrega total; porque tudo o que nos aproxima de alguém pode representar, também, uma última defesa, uma derradeira possibilidade de fuga, de adiamento, de suspensão. Como os corpos: permitem que os usemos para concretizar o amor que sentimos pelo outro, para satisfazer o desejo que sentimos pelo outro; mas são precisamente os corpos que nos impendem de alcançar o amor pleno, o amor além-corpo que secretamente ambicionamos, o amor utópico que deveria existir para além do corpo, da morte, do tempo. O amor infinito.
Apertei os auscultadores contra as orelhas e fechei os olhos. Pensando: tranquiliza-nos saber que nunca seremos totalmente de alguém; mas entristece-nos saber que aqueles que amamos nunca serão totalmente nossos.
5.
Antes tinha fantasias normais. Olhar-te-ia e imaginaria como seria afastar-te o vestido e lamber-te o mamilo, imaginaria a sua textura, o seu sabor, a sua consistência, a sua elasticidade; imaginaria os teus suspiros, os teus gemidos, os teus silêncios; imaginaria que me apertarias contra ti, talvez com violência, talvez com impaciência, talvez com ternura. Imaginaria a suavidade das tuas coxas, a firmeza das tuas nádegas. Imaginaria a cor das tuas cuecas, imaginaria que seriam fáceis de despir. Imaginaria como seriam os teus pêlos púbicos, se seriam incomodativos quando beijasse o teu sexo. Imaginaria como seria foder-te no banco traseiro do meu carro, nas casas de banho deste centro comercial. Imaginaria o teu riso, no fim.
Antes. Agora, cansei-me de fantasias que jamais se concretizarão. Olho alguma mulher bonita, como tu, e imagino como se chamará. Nada mais.
6.
Acabei por comprar o mesmo CD, o mesmo livro.
Não voltei a ouvir o CD e o livro desinteressou-me completamente a partir da vigésima linha. Mas ambos me lembram que tu existes, algures. Uma pessoa concreta. Uma possibilidade: tocámo-nos, por momentos, unidos por uns auscultadores; e poderia ter acontecido, pode sempre acontecer mais qualquer coisa.
Lá estavas a examinar os livros, um pouco curiosa, um pouco enfadada; olhavas demoradamente, por vezes pegavas um, abrias ao acaso, lias umas frases, espreitavas a etiqueta do preço, pousavas. Não parecias procurar algo em particular; talvez estivesses apenas a matar tempo, ou a aguardar a chegada de alguém; ou talvez esperasses ser surpreendida por algum dos livros, talvez esperasses ser subitamente arrebatada por umas linhas lidas ao acaso, sussurradas pelo destino.
Fui olhando, com curiosidade; espiando. Começando a gostar de ti.
2.
Muitas pessoas entre nós, conversas e risos: e tu completamente indiferente, alheada; mesmo quando alguém passava junto de ti e te tocava, não olhavas. Pegavas nos livros, simplesmente; sem reverência, sem aquela devoção algo aflitiva que alguns desesperados dedicam aos livros. Por vezes, esticavas um braço para pegar um livro mais distante e a manga da T-Shirt subia, revelando uma pequena tatuagem. Vi-a diversas vezes, sentindo-me desagradado: surpreende-me que mulheres bonitas deteriorem o seu corpo com manchas de tinta, com pedaços de latão, que escondam metade do rosto com óculos de sol ridículos, que segurem um cigarro entre os dedos convencidas de que isso é um gesto de sedução. Estive quase a afastar-me, decepcionado, quase vencido pelos meus preconceitos. Mas entretanto percebi que te afastavas da zona da literatura, levando um livro na mão. E segui-te, impelido pela curiosidade de descobrir qual fora, afinal, a tua escolha.
3.
Dirigiste-te para a zona da música, onde caminhaste entre os expositores, pegaste alguns CD’s, espreitaste as promoções. Consegui então espreitar a capa do livro que pegavas; e não me decepcionaste. De novo curioso, de novo seduzido, estudei-te com mais atenção; a saia solta, revelando joelhos magros; a T-Shirt justa, delineando os seios; um cinto coberto de brilhantes; pulseiras, anéis; elegância cuidada, sedução discreta. Fui imaginando um quarto vasto e elegante, coberto de sol: e tu nua, escolhendo cada peça de roupa, cada acessório; preparando-te para enfrentares o mundo, discreta e bela. Inacessível.
Seleccionaste um CD e procuraste um posto de escuta, onde permaneceste alguns minutos a ouvir o teu CD, dançando quase imperceptivelmente. Depois, juntaste-o ao livro e afastaste-te em direcção à área de pagamento. Saia a balouçar, tilintar de pulseiras, cabeça erguida, passos firmes. Fiquei a olhar-te, enquanto te afastavas: memorizando o teu corpo. Despedindo-me.
4.
Regressei ao posto de escuta que ocuparas, onde a tua selecção ainda estava activa; fiquei a ouvir, sentindo a volúpia de estar a ser tocado por um objecto que acabara de ser tocado por ti. E aí permaneci muito tempo, sentindo-te através dos auscultadores, tocando-te (recebendo o teu toque) através dos auscultadores. Pensando que há sempre intermediários, há sempre mediadores que nos unem mas, simultaneamente, impedem a entrega total; porque tudo o que nos aproxima de alguém pode representar, também, uma última defesa, uma derradeira possibilidade de fuga, de adiamento, de suspensão. Como os corpos: permitem que os usemos para concretizar o amor que sentimos pelo outro, para satisfazer o desejo que sentimos pelo outro; mas são precisamente os corpos que nos impendem de alcançar o amor pleno, o amor além-corpo que secretamente ambicionamos, o amor utópico que deveria existir para além do corpo, da morte, do tempo. O amor infinito.
Apertei os auscultadores contra as orelhas e fechei os olhos. Pensando: tranquiliza-nos saber que nunca seremos totalmente de alguém; mas entristece-nos saber que aqueles que amamos nunca serão totalmente nossos.
5.
Antes tinha fantasias normais. Olhar-te-ia e imaginaria como seria afastar-te o vestido e lamber-te o mamilo, imaginaria a sua textura, o seu sabor, a sua consistência, a sua elasticidade; imaginaria os teus suspiros, os teus gemidos, os teus silêncios; imaginaria que me apertarias contra ti, talvez com violência, talvez com impaciência, talvez com ternura. Imaginaria a suavidade das tuas coxas, a firmeza das tuas nádegas. Imaginaria a cor das tuas cuecas, imaginaria que seriam fáceis de despir. Imaginaria como seriam os teus pêlos púbicos, se seriam incomodativos quando beijasse o teu sexo. Imaginaria como seria foder-te no banco traseiro do meu carro, nas casas de banho deste centro comercial. Imaginaria o teu riso, no fim.
Antes. Agora, cansei-me de fantasias que jamais se concretizarão. Olho alguma mulher bonita, como tu, e imagino como se chamará. Nada mais.
6.
Acabei por comprar o mesmo CD, o mesmo livro.
Não voltei a ouvir o CD e o livro desinteressou-me completamente a partir da vigésima linha. Mas ambos me lembram que tu existes, algures. Uma pessoa concreta. Uma possibilidade: tocámo-nos, por momentos, unidos por uns auscultadores; e poderia ter acontecido, pode sempre acontecer mais qualquer coisa.
# 25: Outras felicidades
1.
Posso, finalmente, fechar os olhos. A fraca luz amarelada que assombrava o quarto desaparece; agora, perante mim, dentro de mim, apenas há escuridão. Sinto o conforto do nada, da ausência. Mas, por nenhum motivo lógico, absurdamente, surge-me um pensamento inesperado; penso: a escuridão é o negro; e o negro não é a ausência de cor; o negro é a sobreposição de todas as cores. Penso: o negro não é o vazio; e a totalidade.
Não sei por que motivo penso isto, de onde vem; mas no exacto momento em que consciencializo este pensamento, algo estranho, inesperado, acontece. Na escuridão, surge uma luz. Um pontinho de branquidão, que cresce e cresce e cresce. Num instante, a escuridão transforma-se numa brancura insuportável. E tudo o que posso fazer é abrir os olhos. Fugir: da ausência.
Acolhe-me a luz amarela. Forço-me a manter os olhos abertos. Sinto medo. Incompreensão. Dúvida. E um desejo incómodo, inconscientemente consciente, de experimentar de novo. Vontade de fechar os olhos: e saborear a volúpia da luz, do nada. Mas não o faço. Adio. Decido: deixar-me-ei embriagar de desejo, de vontade, de expectativa. Saberei esperar.
Entretanto, ele continua a ressonar. E não me sinto incomodada.
2.
Levanto-me, com cuidado. Caminho, em silêncio, ainda sem saber onde vou, onde quero estar; acompanhada por uma sombra disforme, sentindo a sua presença, sentindo-me menos só. Paro junto à porta, indecisa. E durante alguns instantes, ouço o ressonar monótono. Imagino: e se os ressonares dos homens forem, na verdade, uma linguagem secreta, dirigida a seres secretos, com objectivos secretos, com potencialidades secretas? Um modo de comunicar com os anjos, por exemplo. Diálogos pedagógicos, uma forma simples de cada humano comunicar com o seu anjo da guarda e, assim, tentar resolver problemas quotidianos. Porque não? Sorrio. Agrada-me esta ideia disparatada. E tento imaginar de que se lamentará ele; mas, depois penso: não, não quero saber, não me interessa. (Será que ele já não me interessa?)
Afasto-me silenciosamente, dou por mim na cozinha. Sento-me à mesa, como fazem as mulheres infelizes nos filmes americanos. Mas não fumo. Prefiro beber leite gelado, por uma palhinha. Se tivesse uma guitarra, tocava-a; se tivesse uma piscina, nadava-a; se tivesse um bolo de chocolate, comia-o; se tivesse uma flor, cheirava-a; se tivesse um balancé, usava-o; se tivesse um espelho, sorria-lhe. Penso: tanto que me falta. Penso: quando conseguir dormir, ressonarei com o meu anjo e pedir-lhe-ei tudo isto. Pequenas banalidades, grandes prazeres. Balancés e bolos de chocolate e guitarras. Peço pouco, eu.
Não me sinto só, acompanha-me o leite que vou bebendo. Mas há, também, a minha sombra, que se vai movendo langorosamente; e o cheiro do meu corpo, que me excita um pouco. Descubro, com alguma surpresa: mesmo que desejasse, jamais conseguiria estar sozinha, completamente sozinha. E assusto-me um pouco, incomoda-me esta falta de privacidade.
Continuo a beber leite. Tentando afogar as dúvidas, os medos, as contradições. À espera.
3.
Sinto os segundos passarem. Quase os consigo ver, aproximando-se, um após outro. Todos em filinha. Tímidos. Desinteressados. Seguindo a sua rotina milenar: cada um chega, toca-me, entrega-me a sua carga (hoje, trazem-me serenidade) e afasta-se. Nunca se despedem. E por mais que me esforce, sou incapaz de sentir saudades dos que partiram; ou curiosidade, pelos que ainda chegarão. Já não há surpresa, apenas cansaço.
De repente, sinto-me saturada do sabor do leite. Levanto-me, lavo o copo; aprecio a carícia da água fria nas mãos, o contacto líquido na pele. Deixo-a correr, prolongo. Depois, volto a sentar-me, forço o olhar a vaguear pela cozinha. Fixo-me nos azulejos brancos, conto-os, procuro imperfeições, imagino-os cobertos por desenhos de criança. Toco-os, primeiro com a ponta dos dedos, depois com a face. Sinto-me tonta; e gosto. Depois, canso-me.
Decido: apetece-me a varanda. E já cá estou, olhando a noite. Procuro janelas iluminadas, não encontro. E uma estranha tristeza invade-me, por não ter com quem partilhar esta noite. Concentro-me, tentando escutar os murmúrios dos casais que se amam, que se fodem, por esses quartos escuros, nesses sofás iluminados por explosões de cor da televisão silenciosa, nas bancadas de cozinha, ao lado dos microondas e das torradeiras. Mas não consigo ouvir nada. Penso: por estes dias, já ninguém faz amor; demasiada preguiça, talvez cansaço; indiferença; doenças fingidas, depois confessadas ao anjo de serviço através de envergonhados ressonares.
Conto estrelas. E imagino-me a tocá-las, agarrá-las, acariciá-las. E cheirá-las. Pergunto-me: qual será o cheiro das estrelas? Penso nisso. E sinto o vento fresco despegar-se da noite, aproximar-se, tocar-me. Enrolar-me o cabelo. Acariciar-me a ponta do nariz. Segredar-me aos ouvidos.
Apetece-me música. Procuro a lua e encontro-a lá longe, tímida, discreta, cansada. Penso: a lua está com o período. Mesmo assim, não resisto; peço: canta-me. E ela canta.
Sinto-me tão parva. E não é mau, não é nada mau.
4.
Agora, há uma janela iluminada. Ainda tento imaginar quem estará para além daquelas paredes, fantasiar um corpo, uma insónia, uma dor, um sorriso. Mas não sou capaz. Não me interessam fantasias, devaneios. Não me apetecem fingimentos. Sorrio, na escuridão. E digo a mim própria, em voz baixa, baixinha, em voz secreta, só minha: não quero mais masturbações.
E saio da varanda, entro na cozinha aos saltinhos. Tão feliz.
Sinto os pés nos mosaicos, a carne quente acariciando o frio, aquecendo o frio. Sinto volúpia, excitação. O sangue corre-me nas veias com frenesim, eufórico e descontrolado. Descontrolando-me. Querendo sair, soltar-se. E voar.
É o que me apetece. É o que farei, depois de lhe falar.
5.
Regresso ao quarto. Luz amarela, lutando contra as sombras; ressonar, lutando contra o silêncio. E o tempo imobilizado, à espera. Aproximo-me, cautelosa. Tentando convencer-me: sou um fantasma. E é em voz de fantasma que lhe falo. Em silêncio, digo-lhe que.
6.
Vou partir, amor.
Fizeste-me tão feliz. Correste pelo mundo e agarraste todos os pedaços de felicidade que foste encontrando, coleccionando, acumulando; guardaste-os, para depois me ofereceres cada um deles, embrulhado em papel de sorriso, embelezado por laços de carícias. Deste-me felicidade e eu recebi-a. Nem te agradecia; mas tu vias o meu sorriso e dizias: pareces o arco-íris. E eu abraçava-te.
Fui feliz contigo. Mas tenta perceber.
Agora, apetecem-me outras felicidades. Outras, diferentes. Aquelas que ainda não conheço. Aquelas que tu também não conheces e, por isso, apenas por isso, não me podes oferecer. Percebes? Apetece-me experimentar felicidades, aprender felicidades, descobrir felicidades, trocar felicidades, inventar felicidades.
Fizeste-me feliz. Mas, agora, quero mais.
7.
Abro a janela, um pouco. O ar fresco vem e inunda-me, fazendo-me sentir fria, por dentro. Apetece-me fechar os olhos mas temo a luz da escuridão. Penso: se os fechar, não conseguirei voltar a abri-los. Tento concentrar-me no silêncio, procurando descobrir sons; mas o ressonar é omnipotente, engole todas as possibilidades de ruído, todos os possíveis testemunhos de vida, de outras vidas, que possam existir (mas duvido que existam, neste momento duvido) para além desta janela. Sinto que o egoísmo me corrói, sei que a minha libertação será a sua condenação. Mas nem procuro soluções, sei que não existem. Tudo o que posso fazer é engolir a dor, guardá-la dentro de mim, aconchegá-la (tratá-la bem: para que não me incomode). Seguir o meu destino, selando o seu.
Sinto a brisa da noite. Procuro outros vestígios de companhia; e encontro: a minha sombra, esperando-me; o meu cheiro, intenso; o ar que expiro, os ruídos do meu estômago, a saliva que engulo. Sinto-me menos só, agora. E seguindo um impulso que sou incapaz de contrariar, fecho os olhos; quando a brancura começa a invadir-me narcoticamente, liberto-me, esqueço-me; grito-lhe, silenciosamente.
8.
Vê se percebes, amor.
Eu quero voar. Quero fechar os olhos, abrir os braços e voar, subir e subir e subir, atravessar nuvens e sentir a sua humidade na ponta da língua, trespassar o azul do céu com o azul dos meus olhos, e continuar, sempre, por aí acima. Quero sentar-me na lua e sentir o cheiro das estrelas. Quero ser engolida por um buraco negro, ser perseguida por uma estrela cadente. Quero espreitar o interior dos satélites, dançar nas suas asas.
E depois, regressar. Conhecer os mares, nadá-los, aprender os seus fundos. Perseguir peixes, ser engolida por uma baleia e adormecer no seu estômago. Descobrir grutas subterrâneas, desenterrar tesouros fabulosos. Encontrar o equivalente masculino das sereias (tritões, não é?) e fazer amor sobre as algas, vez após vez. Ou simplesmente: respirar dentro de água.
Quero deitar-me na erva fofa de uma campo verde e fechar os olhos, ouvir o sopro do vento acariciar as árvores; ser engolida pela escuridão, respirar devagarinho, saborear a paz; e sentir que o tempo vai parando: como se o mundo esperasse por mim. Percebes isto? Sentir que o mundo espera por mim. Sentir que sou tão importante para o mundo que ele espera por mim.
E depois, agradecer-lhe: devorando-o. Sei lá: subir árvores, andar de bicicleta, roubar nêsperas e atirar os caroços a quem calhar, colher flores, aprender a linguagem secreta dos gatos, fazer pão e comê-lo com manteiga, rasgar os livros de que não gosto, tocar violino no cimo de uma montanha, fazer aviões de papel e atirá-los do alto de um farol, escrever poemas eróticos e declamá-los a desconhecidos, colher caracóis nas bermas das estradas e depois libertá-los nos pomares, brincar com bonecas, abordar pessoas desconhecidas e adivinhar-lhes os nomes, caminhar pelos passeios e sorrir a quem passa.
Quero percorrer o mundo, cada centímetro do mundo, e apropriar-me dele, fazê-lo meu. Quero devorar vida, engolir felicidade; e depois, devolvê-la, através dos olhos, a quem amo, a quem um dia odiei. Quero beber a beleza do mundo e dos homens, embriagar-me de beleza, ser beleza. Destilar beleza. E depois, morrer: saciada. Deitar-me novamente na erva fofa do mesmo campo verde e fechar os olhos, ouvir o sopro do vento acariciar as árvores; ser engolida pela escuridão, respirar devagarinho, saborear a paz; e sentir que o tempo vai parando, parou: para sempre.
Percebes, amor?
Quero tão pouco, afinal. Não achas?
9.
Grito-lhe mas ele não ouve. Abro os olhos e contemplo o seu sono. Odeio a sua distância. Levanto-me e caminho até ele, baixo-me, os nossos rostos quase se tocam. Ressona menos, agora. E o ar quente que liberta pelo nariz traz-me o seu cheiro mais secreto, mais meu. Penso: amo-o tanto. Penso: mas não chega.
Posso, finalmente, fechar os olhos. A fraca luz amarelada que assombrava o quarto desaparece; agora, perante mim, dentro de mim, apenas há escuridão. Sinto o conforto do nada, da ausência. Mas, por nenhum motivo lógico, absurdamente, surge-me um pensamento inesperado; penso: a escuridão é o negro; e o negro não é a ausência de cor; o negro é a sobreposição de todas as cores. Penso: o negro não é o vazio; e a totalidade.
Não sei por que motivo penso isto, de onde vem; mas no exacto momento em que consciencializo este pensamento, algo estranho, inesperado, acontece. Na escuridão, surge uma luz. Um pontinho de branquidão, que cresce e cresce e cresce. Num instante, a escuridão transforma-se numa brancura insuportável. E tudo o que posso fazer é abrir os olhos. Fugir: da ausência.
Acolhe-me a luz amarela. Forço-me a manter os olhos abertos. Sinto medo. Incompreensão. Dúvida. E um desejo incómodo, inconscientemente consciente, de experimentar de novo. Vontade de fechar os olhos: e saborear a volúpia da luz, do nada. Mas não o faço. Adio. Decido: deixar-me-ei embriagar de desejo, de vontade, de expectativa. Saberei esperar.
Entretanto, ele continua a ressonar. E não me sinto incomodada.
2.
Levanto-me, com cuidado. Caminho, em silêncio, ainda sem saber onde vou, onde quero estar; acompanhada por uma sombra disforme, sentindo a sua presença, sentindo-me menos só. Paro junto à porta, indecisa. E durante alguns instantes, ouço o ressonar monótono. Imagino: e se os ressonares dos homens forem, na verdade, uma linguagem secreta, dirigida a seres secretos, com objectivos secretos, com potencialidades secretas? Um modo de comunicar com os anjos, por exemplo. Diálogos pedagógicos, uma forma simples de cada humano comunicar com o seu anjo da guarda e, assim, tentar resolver problemas quotidianos. Porque não? Sorrio. Agrada-me esta ideia disparatada. E tento imaginar de que se lamentará ele; mas, depois penso: não, não quero saber, não me interessa. (Será que ele já não me interessa?)
Afasto-me silenciosamente, dou por mim na cozinha. Sento-me à mesa, como fazem as mulheres infelizes nos filmes americanos. Mas não fumo. Prefiro beber leite gelado, por uma palhinha. Se tivesse uma guitarra, tocava-a; se tivesse uma piscina, nadava-a; se tivesse um bolo de chocolate, comia-o; se tivesse uma flor, cheirava-a; se tivesse um balancé, usava-o; se tivesse um espelho, sorria-lhe. Penso: tanto que me falta. Penso: quando conseguir dormir, ressonarei com o meu anjo e pedir-lhe-ei tudo isto. Pequenas banalidades, grandes prazeres. Balancés e bolos de chocolate e guitarras. Peço pouco, eu.
Não me sinto só, acompanha-me o leite que vou bebendo. Mas há, também, a minha sombra, que se vai movendo langorosamente; e o cheiro do meu corpo, que me excita um pouco. Descubro, com alguma surpresa: mesmo que desejasse, jamais conseguiria estar sozinha, completamente sozinha. E assusto-me um pouco, incomoda-me esta falta de privacidade.
Continuo a beber leite. Tentando afogar as dúvidas, os medos, as contradições. À espera.
3.
Sinto os segundos passarem. Quase os consigo ver, aproximando-se, um após outro. Todos em filinha. Tímidos. Desinteressados. Seguindo a sua rotina milenar: cada um chega, toca-me, entrega-me a sua carga (hoje, trazem-me serenidade) e afasta-se. Nunca se despedem. E por mais que me esforce, sou incapaz de sentir saudades dos que partiram; ou curiosidade, pelos que ainda chegarão. Já não há surpresa, apenas cansaço.
De repente, sinto-me saturada do sabor do leite. Levanto-me, lavo o copo; aprecio a carícia da água fria nas mãos, o contacto líquido na pele. Deixo-a correr, prolongo. Depois, volto a sentar-me, forço o olhar a vaguear pela cozinha. Fixo-me nos azulejos brancos, conto-os, procuro imperfeições, imagino-os cobertos por desenhos de criança. Toco-os, primeiro com a ponta dos dedos, depois com a face. Sinto-me tonta; e gosto. Depois, canso-me.
Decido: apetece-me a varanda. E já cá estou, olhando a noite. Procuro janelas iluminadas, não encontro. E uma estranha tristeza invade-me, por não ter com quem partilhar esta noite. Concentro-me, tentando escutar os murmúrios dos casais que se amam, que se fodem, por esses quartos escuros, nesses sofás iluminados por explosões de cor da televisão silenciosa, nas bancadas de cozinha, ao lado dos microondas e das torradeiras. Mas não consigo ouvir nada. Penso: por estes dias, já ninguém faz amor; demasiada preguiça, talvez cansaço; indiferença; doenças fingidas, depois confessadas ao anjo de serviço através de envergonhados ressonares.
Conto estrelas. E imagino-me a tocá-las, agarrá-las, acariciá-las. E cheirá-las. Pergunto-me: qual será o cheiro das estrelas? Penso nisso. E sinto o vento fresco despegar-se da noite, aproximar-se, tocar-me. Enrolar-me o cabelo. Acariciar-me a ponta do nariz. Segredar-me aos ouvidos.
Apetece-me música. Procuro a lua e encontro-a lá longe, tímida, discreta, cansada. Penso: a lua está com o período. Mesmo assim, não resisto; peço: canta-me. E ela canta.
Sinto-me tão parva. E não é mau, não é nada mau.
4.
Agora, há uma janela iluminada. Ainda tento imaginar quem estará para além daquelas paredes, fantasiar um corpo, uma insónia, uma dor, um sorriso. Mas não sou capaz. Não me interessam fantasias, devaneios. Não me apetecem fingimentos. Sorrio, na escuridão. E digo a mim própria, em voz baixa, baixinha, em voz secreta, só minha: não quero mais masturbações.
E saio da varanda, entro na cozinha aos saltinhos. Tão feliz.
Sinto os pés nos mosaicos, a carne quente acariciando o frio, aquecendo o frio. Sinto volúpia, excitação. O sangue corre-me nas veias com frenesim, eufórico e descontrolado. Descontrolando-me. Querendo sair, soltar-se. E voar.
É o que me apetece. É o que farei, depois de lhe falar.
5.
Regresso ao quarto. Luz amarela, lutando contra as sombras; ressonar, lutando contra o silêncio. E o tempo imobilizado, à espera. Aproximo-me, cautelosa. Tentando convencer-me: sou um fantasma. E é em voz de fantasma que lhe falo. Em silêncio, digo-lhe que.
6.
Vou partir, amor.
Fizeste-me tão feliz. Correste pelo mundo e agarraste todos os pedaços de felicidade que foste encontrando, coleccionando, acumulando; guardaste-os, para depois me ofereceres cada um deles, embrulhado em papel de sorriso, embelezado por laços de carícias. Deste-me felicidade e eu recebi-a. Nem te agradecia; mas tu vias o meu sorriso e dizias: pareces o arco-íris. E eu abraçava-te.
Fui feliz contigo. Mas tenta perceber.
Agora, apetecem-me outras felicidades. Outras, diferentes. Aquelas que ainda não conheço. Aquelas que tu também não conheces e, por isso, apenas por isso, não me podes oferecer. Percebes? Apetece-me experimentar felicidades, aprender felicidades, descobrir felicidades, trocar felicidades, inventar felicidades.
Fizeste-me feliz. Mas, agora, quero mais.
7.
Abro a janela, um pouco. O ar fresco vem e inunda-me, fazendo-me sentir fria, por dentro. Apetece-me fechar os olhos mas temo a luz da escuridão. Penso: se os fechar, não conseguirei voltar a abri-los. Tento concentrar-me no silêncio, procurando descobrir sons; mas o ressonar é omnipotente, engole todas as possibilidades de ruído, todos os possíveis testemunhos de vida, de outras vidas, que possam existir (mas duvido que existam, neste momento duvido) para além desta janela. Sinto que o egoísmo me corrói, sei que a minha libertação será a sua condenação. Mas nem procuro soluções, sei que não existem. Tudo o que posso fazer é engolir a dor, guardá-la dentro de mim, aconchegá-la (tratá-la bem: para que não me incomode). Seguir o meu destino, selando o seu.
Sinto a brisa da noite. Procuro outros vestígios de companhia; e encontro: a minha sombra, esperando-me; o meu cheiro, intenso; o ar que expiro, os ruídos do meu estômago, a saliva que engulo. Sinto-me menos só, agora. E seguindo um impulso que sou incapaz de contrariar, fecho os olhos; quando a brancura começa a invadir-me narcoticamente, liberto-me, esqueço-me; grito-lhe, silenciosamente.
8.
Vê se percebes, amor.
Eu quero voar. Quero fechar os olhos, abrir os braços e voar, subir e subir e subir, atravessar nuvens e sentir a sua humidade na ponta da língua, trespassar o azul do céu com o azul dos meus olhos, e continuar, sempre, por aí acima. Quero sentar-me na lua e sentir o cheiro das estrelas. Quero ser engolida por um buraco negro, ser perseguida por uma estrela cadente. Quero espreitar o interior dos satélites, dançar nas suas asas.
E depois, regressar. Conhecer os mares, nadá-los, aprender os seus fundos. Perseguir peixes, ser engolida por uma baleia e adormecer no seu estômago. Descobrir grutas subterrâneas, desenterrar tesouros fabulosos. Encontrar o equivalente masculino das sereias (tritões, não é?) e fazer amor sobre as algas, vez após vez. Ou simplesmente: respirar dentro de água.
Quero deitar-me na erva fofa de uma campo verde e fechar os olhos, ouvir o sopro do vento acariciar as árvores; ser engolida pela escuridão, respirar devagarinho, saborear a paz; e sentir que o tempo vai parando: como se o mundo esperasse por mim. Percebes isto? Sentir que o mundo espera por mim. Sentir que sou tão importante para o mundo que ele espera por mim.
E depois, agradecer-lhe: devorando-o. Sei lá: subir árvores, andar de bicicleta, roubar nêsperas e atirar os caroços a quem calhar, colher flores, aprender a linguagem secreta dos gatos, fazer pão e comê-lo com manteiga, rasgar os livros de que não gosto, tocar violino no cimo de uma montanha, fazer aviões de papel e atirá-los do alto de um farol, escrever poemas eróticos e declamá-los a desconhecidos, colher caracóis nas bermas das estradas e depois libertá-los nos pomares, brincar com bonecas, abordar pessoas desconhecidas e adivinhar-lhes os nomes, caminhar pelos passeios e sorrir a quem passa.
Quero percorrer o mundo, cada centímetro do mundo, e apropriar-me dele, fazê-lo meu. Quero devorar vida, engolir felicidade; e depois, devolvê-la, através dos olhos, a quem amo, a quem um dia odiei. Quero beber a beleza do mundo e dos homens, embriagar-me de beleza, ser beleza. Destilar beleza. E depois, morrer: saciada. Deitar-me novamente na erva fofa do mesmo campo verde e fechar os olhos, ouvir o sopro do vento acariciar as árvores; ser engolida pela escuridão, respirar devagarinho, saborear a paz; e sentir que o tempo vai parando, parou: para sempre.
Percebes, amor?
Quero tão pouco, afinal. Não achas?
9.
Grito-lhe mas ele não ouve. Abro os olhos e contemplo o seu sono. Odeio a sua distância. Levanto-me e caminho até ele, baixo-me, os nossos rostos quase se tocam. Ressona menos, agora. E o ar quente que liberta pelo nariz traz-me o seu cheiro mais secreto, mais meu. Penso: amo-o tanto. Penso: mas não chega.
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