# 47: Cinza no chão

1.
Ruído do elevador a parar, a porta que se abre. Chegas, vindo não sei de onde e passas por mim (não muito próximo), diriges-me um grunhido que talvez seja de saudação. Não me olhas, não sorris: passas por mim, simplesmente. E muito tempo depois: o autoclismo.

2.
Passas os olhos pela televisão, bebes um pedacinho de cerveja; depois, começas a jantar: gestos rápidos e pragmáticos, automatizados, indiferentes. Olho para a televisão mas concentro-me nos ruídos animalescos que fazes, involuntariamente; ou será que não são inconscientes, ser-te-á indiferente que eu constate e comprove, uma vez mais, a tua embaraçosa falta de educação? Ouço-te mastigar: e angustia-me este excesso de despudor, este abuso da intimidade. Somos, afinal, um casal em que não se esconde nada, uma relação sem segredos nem subterfúgios; e suponho que isso te agrade.
Unidos numa proximidade sustentada por tantos anos de vida partilhada e existência em comum, fomo-nos habituando ao outro: apesar de, na verdade, não nos conhecermos; vamos partilhando o superficial, apesar de na essência sermos um crescente mistério para o outro; partilhamos tudo: excepto o que sentimos.

3.
Vais mastigando, esquecido da minha presença. Gestos alheados, displicentes; um riso gutural, provocado por algo que vês na televisão; um leve arroto. E eu a pensar: há quanto tempo não conversamos? Levanto-me, vou à cozinha buscar mais salada; paro durante uns instantes em frente da janela, engolindo a súbita onda de desalento que me invadiu, e olho lá para fora, para as varandas dos vizinhos, para lá das varandas dos vizinhos; regresso até junto de ti, perguntando-me: mas para que serve conversar, afinal? Pouso o prato à tua frente e vejo-te pegar de imediato numa garfada de alface, que levas até à boca; uma pequena gota de azeite cai na toalha, formando uma mancha. Olho para a televisão e tento recordar a última vez em que me disseste: obrigado.
Noutro mundo, duas personagens de telenovela beijam-se com mais paixão do que nós alguma vez nos beijámos. E nós, neste mundo: olhando, em silêncio.

4.
Vou ter outra vez aquele pesadelo, em que o ruído do teu ressonar se mistura com o ruído da tua mastigação e se transforma numa gargalhada tenebrosa que me persegue como um fantasma ou uma sombra ou um anjo da guarda maldoso; depois acordarei, assustada e desconfortável, exausta, sentindo saudades do tempo, longínquo, em que dormir era um alívio, umas tréguas; e a primeira coisa de que tomarei consciência: o teu ressonar, envolvendo-me.
Levanto-me e começo a transportar louça para a cozinha, devagarinho. Sentaste-te no sofá, acendes um cigarro; gostava que me perguntasses como correu a ida ao médico, se custou fazer o exame; mas com certeza que nem te lembras; ou não te interessas? Fragmentos de cinza vão-se acumulando no chão, sem que tenhas o cuidado de o evitares, sem que repares.
Acabo de arrumar a louça na máquina, refugio-me na penumbra da varanda; acendo um cigarro: e fumo-o. Perscruto as sombras e os movimentos para além das cortinas iluminadas, atribuindo-lhes sentidos, intenções, vidas. Um gato a miar, uma sirene longínqua, um grito de alguém. Céu sem estrelas. Atiro o cigarro e fico a ver onde cai, com a secreta esperança de que provoque um incêndio, uma novidade, uma mudança, um breve intervalo em que haja algo mais premente do que testemunhar a simples passagem do tempo, irrelevante e inconsequente.
Depois, penso: gostava de sentir, ao menos, a melancolia de ter sido feliz. E volto a pensar no pesadelo que vou ter, mais logo.

5.
Sento-me junto de ti e fico a olhar para o montinho de cinza. Na televisão, dois políticos insultam-se; tu sorris. Gostava que te aproximasses, que os nossos corpos se tocassem: e que isso tivesse um significado. Levanto-me, vou buscar o aspirador portátil e recolho a cinza que foste incapaz de abandonar no cinzeiro; olhas-me, penso que pela primeira vez desde que chegaste; estás aborrecido, é óbvio: talvez por te confrontar com a tua incivilidade e falta de educação, talvez apenas por causa do barulho; ou será porque te forcei a recordares-te que existo, que estou a aqui, mesmo aqui, à distância de um toque, de um sorriso? Evito olhar-te, finjo que não percebo a tua animosidade.
Arrumo o aspirador. Passo pela casa de banho, olho-me no espelho, ajeito o cabelo. Depois, regresso à minha varanda; acendo mais um cigarro, e espero; enquanto o tempo vai passando, repetindo-se.

6.
Ainda o gato a miar, ainda uma sirene longínqua, ainda o grito distante.
De repente, percebo o significado do grito: alguém que é agredido, algures. Sim, um grito simultaneamente sufocado e envergonhado, hesitante, mas também desesperado, furioso, indignado. E recordo que também eu já gritei assim, um dia.
Penso na mulher anónima que, algures, está a ser violentada pelo marido, pelo companheiro, por alguém que ama, que julga amar, que um dia amou; sentindo-lhe ódio, perguntando-se como será possível perceber, perdoar, continuar. E sinto o corpo agitar-se, pulsando com as reminiscências da dor, da humilhação, da incredulidade.
Regresso para dentro, tentando fugir do passado, e começo a preparar um chá. Abro o frigorífico, para nada; retiro a louça da máquina, com cuidado; espreito o passar dos minutos no relógio do microondas. Escuto o assobio do teu isqueiro, vozes abafadas da televisão; penso, inesperadamente: se não fosse a televisão, acho que esquecia como se fala; e sorrio. Sento-me, bebendo o chá; sentindo-o queimar-me a boca, a garganta, o estômago. Sentindo.

7.
Invade-me uma ideia medonha, perturbante: se me agredisses, apenas uma vez mais, passados tantos anos, talvez isso demonstrasse alguma espécie de sentimento em relação a mim; melhor: talvez me desse um pretexto para, finalmente, agir, lutar, recomeçar algures. Indigno-me, forço-me a indignar-me: e afasto este pensamento repugnante e ignóbil, desesperado; mas apenas depois de o ter saboreado durante um fragmento de instante.
Pego no saco do lixo e ato-o com violência, furiosa com a incontrolabilidade da minha mente. Abro a porta e digo, para ninguém, por hábito: vou ao lixo; mas por alguma razão misteriosa, sabe-me bem escutar a minha própria voz. Entro no elevador, olho-me no espelho, ajeito o cabelo; e uma vez mais, fantasio que esta pode ser a última vez em que me olho neste espelho, entro neste elevador, vivo esta vida.
Pode ser.

8.
Deixo cair a tampa do contentor do lixo e fico a escutar o eco do seu ruído sepulcral dissipar-se; depois, como quase todas as noites, sinto-me invadir pela ingénua tentação de não regressar, de fugir, de mudar. Olho o cachorro que se aproxima, farejando o ar, e imagino-me a entrar no carro, pô-lo a trabalhar, ligar os faróis e partir por uma destas ruas, sem pressa, sem destino, sem arrependimento; e o cão a ver o carro desaparecer, invejoso.
Espreito as ruas desertas e silenciosas, pergunto-me qual escolheria; e depois, no primeiro cruzamento: direita ou esquerda? Avançar, sempre; mas, até onde? Quando parar? E que fazer, então? Avançar, sempre? Mas para quê? Na verdade, o que poderia mudar? O que seria diferente com a mudança de paisagem? E eu conseguiria mudar? Estará o problema em mim ou no cenário?
Caminho alguns passos, de regresso ao prédio, perguntando-me se seria bom conseguir tomar decisões, e agir. O cão segue-me, discreto e esperançoso, subserviente; tanta vontade que tenho de lhe dar um pontapé, não sei porquê, para quê.
Olho-me no espelho do elevador, tentando perceber se efectivamente existo, ocupo espaço, consumo oxigénio, liberto cheiro; parece que sim. Penso, mais um pouco, nesta obsessão que tenho pela mudança; e pergunto-me: para quê? Que mudança traria a mudança? Sorrio, vejo-me sorrir: tão bonito que ainda é o meu sorriso.

9.
Sento-me no sofá, um pouco afastada de ti. Levantaste-te, para ires ao frigorífico buscar uma cerveja, o que me surpreende um pouco. Na televisão os mesmos políticos, a mesma conversa: como se o tempo não tivesse passado, nunca passasse. De ti: a mesma indiferença, o mesmo silêncio agressivo. No chão: uma nova mancha de cinza, tão grande.
Apetece-me chorar. E desistir, outra vez.

10.
Levantas-te, refugias-te na casa de banho. Fico a olhar para os políticos durante um bocado, repetindo-se incessantemente, e pergunto-me se haverá alternativas para mim, se ainda haverá escolhas e surpresas e novidades algures no meu futuro; ou estarei condenada a isto, condenada a mim? De repente, publicidade barulhenta e colorida, gente agressiva e sorridente, talvez feliz, ou fingindo felicidade: é possível que não haja grande diferença entre ser e parecer, entre ser e acreditar que se é, mesmo não sendo. Fecho os olhos, faço uma careta a mim própria; estou tão cansada dos meus pensamentos lúgubres e auto-piedosos, de sentir pena de mim, de invejar.
Levanto-me, engolindo um suave gemido de cansaço, de desânimo; e vou buscar o aspirador portátil.

11.
E muito tempo depois: o autoclismo. Passas por mim (não muito próximo), diriges-me um grunhido que talvez seja de despedida. Não me olhas, não sorris: passas por mim, simplesmente. Sais, indo não sei para onde. A porta que se fecha, ruído do elevador a arrancar.
E eu: aqui.

Publicidade

Apresentação de “Os mundos separados que partilhamos”, por Fernando Venâncio.
Clube Literário do Porto, 20 de Abril, 18h00.

# 46: No autocarro do costume

Aqui.

# 45: Óculos de sol

Prazo de validade expirou...

Publicidade

Páginas Soltas: Bárbara Guimarães entrevista Paulo Kellerman.
Sic Notícias
6 de Abril, 20h40
9 de Abril, 15h00

Publicidade

Uma estória antiga aqui.