Os inconciliáveis



Conto para o projecto DESASSOSSEGO DAS PALAVRAS, a partir de uma citação de Fernando Pessoa (“A Decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida. O coração, se pudesse pensar, pararia.”) e de uma escultura de Abílio Febra.









- Estava a pensar que te amo tanto. Do fundo do coração. 
- Isso é um pouco estranho.
- É?
- Sim, é. Refiro-me a juntar os verbos pensar e amar na mesma frase. É estranho. Porque se amas, não pensas nisso: amas, e pronto. Mas se precisas de pensar, talvez não ames verdadeiramente. Percebes? Não são acções compatíveis, pensar e amar. 
- És parvo. E cruel.
- Não sou cruel, limito-me a analisar as tuas palavras. De certo modo, afirmaste que precisas de pensar para perceber que me amas. Foi isso que disseste, não foi? Ou seja, está implícito que se não tivesses pensado, não sentirias que me amas. Mas, como é óbvio, o amor não é propriamente um acto de reflexão, não nasce nem se alimenta do pensamento. 
- Mas também disse que te amo do fundo do coração.
- Do fundo do coração? Mas não sabes que o coração é apenas um músculo? Um músculo que faz o sangue circular pelo corpo. Pensar que o coração faz mais do que isso é um pouco idiota, não achas? Romantismo de gente desocupada, fantasia de poeta, devaneio de quem nunca esteve verdadeiramente apaixonado; de quem não ama mas pensa em amar, de quem apenas racionaliza os sentimentos em vez de os sentir; ou de quem os racionaliza por não os sentir. 
- És cruel, sim. Insuportavelmente cruel.
- Estou apenas a dizer que o coração não sente nem pensa nem ama nem sofre nem o raio, percebes? Bombeia sangue e é só. Nada mais. 
- Afinal, acho que talvez tenhas razão. Pensar e amar são acções inconciliáveis. Olha para nós: eu amo e tu pensas, racionalizas, analisas palavras; sou coração, tu és cérebro. Somos inconciliáveis, portanto. Somos mesmo. Descobri-o apenas neste preciso instante, acreditas? 
- Vá, tem calma. Estamos apenas a conversar.
- Foda-se, tanto tempo que perdi contigo. E para quê? Nem sei como é possível o amor esvanecer-se assim, de súbito; aniquilado por palavras. Mas foi o que acabou de acontecer, agora mesmo. Enfim. Julgo que é altura de ir bombear para outro lado, não achas?