Galeria # 11



Lucian Freud - Hotel bedroom


(Ela permanece há muito deitada, fixando o vazio com um olhar apático e distante. Ele passeia pelo quarto, tentando disfarçar o nervosismo, tropeçando na sua própria ansiedade; senta-se na pequena poltrona e levanta-se logo de seguida, olha pela janela como se procurasse uma possibilidade de fuga ou uma distracção, escuta a respiração amorfa dela tentando detectar irregularidades, volta a sentar-se na poltrona; por vezes, apetece-lhe gritar; ou fugir, em silêncio e sem destino; ou rir bem alto, como um louco.)
ELE (num tom contido, miraculosamente neutro): Já estamos bastante atrasados.
(Ela não reage; como se estivesse a dormir: mas com os olhos abertos. Ele dá mais uns passos, desorientados e inconsequentes; sente-se ridículo por estar constantemente a andar para chegar a lado nenhum.)
ELE (com desprezo): Sabes o que descobri desde que casei contigo? (Hesita, talvez esperançoso que a sua súbita agressividade provoque uma reacção.) Que a tristeza é contagiosa. (E fica a olhar para Ela, sem saber o que mais acrescentar.)

Galeria # 10



Sangram Majumdar - Kitchen light


(Jantam em silêncio, na cozinha escurecida; a lâmpada fundira-se há três dias mas Ele ainda não se decidira a trocá-la; por isso, é necessário abrir a porta do frigorífico para que a sua fraca luz lhes ilumine a solidão. Ela já lhe falara nisso algumas vezes, tentando não parecer desesperada; depois desistira.)
ELA (tom algo defensivo, assustada por surpreender o seu olhar perscrutador e incisivo): Porque estás a olhar-me assim?
(Ele mantém o olhar durante alguns segundos, continuando a mastigar lentamente.)
ELE (tom pensativo): Estava a tentar lembrar-me por que motivo me apaixonei por ti.
(Ela escuta, sem o olhar; e só alguns instantes depois de Ele se calar, percebe o verdadeiro significado das palavras; como se não estivessem apenas a alguns centímetros de distância e o som das vozes tivesse que percorrer vários mundos. Então, quando compreende, sente que o coração pára durante um momento, vacilante; sente: mas sabe que está apenas a imaginar. Entretanto, Ele levanta-se sem pressa e afasta-se. Ela tenta distrair-se, pensando como será quando a lâmpada do frigorífico também fundir.)

Galeria # 09


Sandra Fisher - Mark & Sarah

(Estão os dois deitados em cima dos lençóis; não fizeram nem irão fazer amor, saboreando a volúpia de estarem nus e vagamente excitados mas recusarem a possibilidade de sexo, de a adiarem para um momento talvez próximo mas ainda incerto. Tocam-se ligeiramente, para se sentirem acompanhados; mas ambos apreciam o facto de, na verdade, se sentirem momentaneamente sós.)
ELE (abrindo os olhos mas sem se mover): Qual é a última coisa em que pensas antes de adormecer?
ELA (sem abrir os olhos): Em ti.
ELE (fechando os olhos): Quando vais deixar de me mentir?
(Ela sorri ligeiramente mas não responde; Ele logo desiste de aguardar uma resposta. E ambos adormecem pouco depois, olhando-se através das pálpebras cerradas.)

Dão-se livros # 02

Acabou o passatempozinho. Obrigado a todos os que gastaram algum do seu tempo à procura de quadros com potencialidades literárias; surgiram sugestões verdadeiramente estimulantes e desafiadoras.
O sorteio decidiu que a vencedora fosse a Alexandra.
Em Outubro, dá-se mais um livro. Até lá.

Esboço # 64

(Estão sentados na sala de espera do dentista, sozinhos. Ela olha distraidamente uma revista que retirou da pequena mesa que está à sua frente enquanto Ele espreita com uma expressão aborrecida pela enorme janela; não falam desde que saíram do carro, onde discutiram uma vez mais.)
ELE (sem a olhar; tom agastado, revelando um indício de desespero): Mas que mais queres de mim? Que posso eu fazer? (Hesitando.) Explica-me.
(Ela continua a passar os olhos pelas páginas da revista, indiferente e alheada, como se não o tivesse escutado.)
ELA (algum tempo mais tarde; cedendo a um impulso súbito, incapaz de se conter): Podias fazer algumas das coisas de que falam nas revistas femininas. (Ele olha-a, um pouco surpreendido; depois, desvia o olhar para a revista que Ela segura nas mãos.) Podias ser um marido de revista feminina.
(Ele tenta decifrar o seu tom de voz, perceber se falou com ironia ou não; como é incapaz de o fazer, evita responder. Ela, talvez irritada com o seu silêncio, atira inesperadamente a revista que tem nas mãos para cima da mesa; depois, levanta-se e caminha um pouco pela sala, olhando de perto e com excessiva atenção os quadros que estão pendurados pelas paredes. Ele, sentindo-se ignorado, não resiste à provocação de pegar na revista que Ela estivera a folhear.)
ELE (num tom neutro, olhando sem grande curiosidade as páginas da revista): Mas como? Tu também não és propriamente uma mulher de revista feminina.
(Ela continua a olhar fixamente um quadro, em silêncio; mas é incapaz de conter um sorriso, fugaz e amargurado, contrariado; mas um sorriso.)

Esboço # 63

Prazo de validade expirado.

Esboço # 62

Prazo de validade expirado.

Dão-se livros # 02

Prossegue a série de mini passatempos de que resultará a oferta de exemplares dos livros que aparecem aqui ao lado.
Segundo desafio: enviar um email sugerindo um quadro que possa servir de pretexto à escrita de uma estória; vale tudo menos repetir os pintores que já integram a galeria da gaveta.
Entre as respostas enviadas até 21 de Setembro será sorteado alguém que receberá um exemplar de um dos livros (à sua escolha).

Galeria # 08



Eric Fischl - Untitled


(Permaneço deitada na cama, ainda nua; o prazer proporcionado pelo sexo já se dissipou há muito, deixando-me estranhamente apática e indiferente, quase desconsolada. Não me apetece mover, fechar os olhos ou mantê-los abertos, pensar; não me apetece aceitar que o mundo continue a avançar, levando-me consigo. Ouço-a sair da casa de banho, aproximando-se; não quero – não consigo – olhá-la mas sei que vem enrolada numa toalha. Talvez pudesse perguntar-lhe por que nunca se seca na casa de banho, por que motivo prefere fazê-lo junto de mim.)
ELA (num tom indiferente, como se falasse para si própria): Foda-se, que está outra vez a chover.
(Fecho os olhos e concentro-me momentaneamente no silêncio que preenche o quarto, enquanto respiro o cheiro a sexo que ainda perdura; depois, Ela liga a televisão e o silêncio é estilhaçado – mas o cheiro permanece, insidioso. Pergunto-me por que motivo não se aproxima mais, não me toca; pergunto-me, também, há quanto tempo terá deixado de me amar. Não me movo, insisto em não me mover, paralisada por um receio indefinido e persistente, supersticioso; Ela continua a secar-se, acariciando-se com indiferença. Será que me olha, apreciando o meu corpo? Duvido. Estou quase, quase a perguntar-lhe se faz ideia por que motivo nunca nos tocamos depois de fazer sexo, o que poderá significar isso; mas não o faço: temo a resposta.)
ELA (tom abrupto, um pouco acusador): Vais dormir?
(Não respondo; na verdade, apetecia-me dizer-lhe que me sinto como se andasse a dormir há anos, incessantemente. Ela acaba de se secar e aproxima-se da televisão, mudando o canal. De repente, sinto-me incapaz de me submeter uma vez mais à tristeza e desistir; apetece-me reagir, lutar, agredir.)
EU (sem me mover, sem a olhar): Porque vais sempre tomar banho, depois de fazermos sexo? (Hesito e sinto o seu olhar fixar-se em mim.) Seja ao acordar ou a meio da noite, seja à hora de almoço. Vais sempre. (Respiro fundo, tentando controlar-me. Apetece-me acrescentar: como se o banho fosse o teu verdadeiro orgasmo.) Porquê?
(Finalmente, sinto que estou a libertar-me da paralisia; movo-me ligeiramente e olho-a, sem agressividade mas também sem afecto.)
EU (tom cândido, quase nostálgico): Sentes-te suja, quando beijas o meu corpo? (Ela olha-me durante mais um instante, perplexa e insegura, incapaz de reagir; depois, desvia o olhar, devagarinho. Afasta-se, recuando um passo: pergunto-me se conseguirá voltar a olhar-me.)

Galeria # 07



Alberto Sughi - La Stanza del Tempo


ELA (num tom apático): Não podias sorrir um pouco?
(Ele interrompe a leitura, contrariado, mas não desvia o olhar do livro.)
ELE (cauteloso): Desculpa?
ELA (impertinente, sem o olhar): Sorrir, simplesmente. Uma vez por semana ou assim. (Tom quase impertinente.) Custava-te muito?
ELE (levantando os olhos do livro; tom cauteloso): Desculpa, não percebo.
(Ela suspira e recosta-se no sofá, talvez com vontade de chorar.)
ELE (pesaroso): Queres que eu sorria, mesmo que não tenha vontade de o fazer? Que finja? (Num tom inesperadamente mais afável, quase carinhoso.) Preferirias assim? (Hesita.) Que eu fosse falso e dissimulado e fingido?
(Ela não responde – talvez com vontade de gritar que sim, que preferia a falsidade e a dissimulação e o fingimento à indiferença, à apatia; fecha os olhos durante um momento, respira fundo; Ele observa-a, atento e curioso. Depois, muito mais tarde, quando percebe que o diálogo terminou, regressa à leitura.)

Galeria # 06


Edward Hopper - Cape Cod evening

(Ele está sentado no degrau das traseiras, contemplando pensativamente o horizonte e espreitando o cão que corre por ali; por vezes, homem e animal trocam olhares cúmplices, solidários: como se partilhassem algo. Ela aproxima-se em silêncio e permanece junto dele, olhando-o soturnamente; talvez à espera que ele repare em si.)
ELA (tom constrangido): Esse cão é mais importante para ti do que eu, não é?
ELE (muito tempo depois; tom relutante): Talvez.
(O cão aproxima-se dele e deixa cair aos seus pés algo que prende na boca; depois, afasta-se. Ela cruza os braços e olha para o chão, pensando em como toda a gente a ignora, incluindo o cão; perguntando-se como deverá reagir a uma resposta daquelas; se valerá a pena reagir. Então, uma brisa agreste sopra subitamente do lado da floresta, indiciando que – apesar de tudo – o mundo talvez continue a girar, a vida a avançar; indicando, também, que se aproxima a hora de começar a pensar no jantar. O vento passa, insidioso e desconfortável; ninguém fala: nem o cão rosna, sequer.)