Lullaby

Uma animação de Maraia.

Se aparece no jornal…

Estou com o Ricardo e a Beatriz numa esplanada da Praça. O Ricardo é um velho amigo e a Beatriz é a sua nova namorada; estão felizes e fazem as coisas que os namorados felizes costumam fazer: ignoram-me. Sigo distraidamente os seus olhares cúmplices e diálogos tontos, enquanto vou pensando na vida. «Eh pá, estás na lua ou quê?», pergunta de repente o Ricardo. Explico que estou a pensar num tema para a crónica do jornal. «Não é o fim do mundo, se o jornal sair sem o teu texto.» A Beatriz ri e dá-lhe uma palmada no braço: «Estúpido.» «Ele é que está sempre a dizer que se calhar ninguém lê as crónicas.» «Isso é normal, os escritores estão sempre com dúvidas; o teu papel como amigo é incentivar.» «E eu incentivo. Mas já andas nisto há quanto tempo? Quatro anos ou assim?» «Quase oito.», respondo eu. «Então começa a reciclar as antigas.» «És tão parvo, um escritor nunca faz isso.», defende-me a Beatriz. «Tens ideia de quantas crónicas já escreveu ele em que o tema é a atrapalhação porque não se lembra de nenhum assunto?» Vira-se para mim e pergunta: «Quantas?» «Algumas.», digo eu. «Vês? Algumas. E agora será igual. Quanto é que apostas que a próxima crónica vai ser sobre esta conversa?» «A sério? Nunca apareci numa crónica.» «Aproveita e manda um recado à tua mãe. Depois, ela pode comprar o jornal.» «Estás sempre a apalermar. Mas ok: mãe, gosto muito de ti.» «Estou apenas a contribuir para o aumento da tiragem do jornal.» «E se te deixasses de tretas e lhe contasses aquilo da Arquivo?» O Ricardo vira-se para mim: «Nunca te contei aquilo da Arquivo?» Não, nunca contara. «Oh pá, estava convencido que sim. A sério que não? Olha que é uma estória fixe. Então foi assim: estava lá à espera, sabes como é. Eles têm sempre o jornal nas mesas, certo? E eu ia passando as páginas, enquanto o Pedro não vinha. Calhou ser na semana em que tu escrevias. Então fiquei a ler a tua crónica. Era aquela em que falavas da nova peça. E quanto disseste aquilo da peça se passar no céu e haver lá um sequestro, desatei a rir. Agora repara na coincidência do caraças. Nessa altura, a Beatriz estava lá.» «Fui comprar uns brincos, para oferecer à minha prima.» «E quando eu ri bem alto, ela ouviu e ficou a pensar em quem seria o parvo que estava para ali a rir que nem um animal.» «A gargalhada chamou-me a atenção e olhei. E depois já sabes como são as coisas, às vezes há algo que nos prende o olhar.» «Eu prendi-lhe o olhar, é o que ela quer dizer.» «Então chegou o Pedro, que estava sempre a dizer oh Ricardo para aqui, oh Ricardo para ali. E assim, fiquei a saber o nome do animal.» «Quando ela chegou a casa foi procurar no Facebook todos os Ricardos de Leiria. E pronto: encontrou.» «Se não fosses tu, não estávamos aqui. Percebes?» «E agora vai lá escrever a crónica, ok? A ver se nos fazes rir.» «Isso é tudo aldrabice, certo?», pergunto eu. «Não és do tempo em que diziam: se aparece no jornal, só pode verdade?» E riem, trocando um dos seus olhares cúmplices.

Crónica para o Jornal de Leiria.

Postais pedidos



Enquanto passeiam, a menina encontra uma azeitona no chão. Pega-a delicadamente e aproxima-se do avô. «Que tens aí?», pergunta o avô. A menina estende-lhe a mão com a azeitona e sorri: «Uma árvore.»

Um sonho

... de Maraia.

Postais pedidos

Por vezes, apetece fazer qualquer coisa tonta... Por exemplo: enviar postais e imaginar o sorriso de quem os recebe.
Postais de papel escritos à mão. Com uma estória. Entregues por um carteiro.
Uma pausa nos gifs e memes e emojis e likes. E nos feeds.
Quem quiser, peça. E um dia destes receberá um postal. É só escrever para minimalistamini@gmail.com e esperar uns tempos.

Raiz


Exposição de Sandrine Cordeiro na Livraria Arquivo.
A partir de 2 de Novembro. 

Gato preto

Arte Pública Leiria. Um gato e um texto.

Não falta nada


"Nesta segunda visita ao ninho da criatividade e representação, O Nariz, levava comigo a curiosidade expectante gerada pela envolvência e pela novidade de visionar e ouvir a peça escrita pelo Paulo Kellerman, sabendo com antecipação que, depois desta ter sido lida por mim, a minha imaginação já criara cenários, vozes, sons e melodias, jeitos e trejeitos, movimentos e saltos de rompante ou amenizados, em suma, um pequeno mundo ao sabor dos meus peculiares pensamentos.

Dou por mim a questionar quanto ao facto de não ter sido fácil arrancar aos actores a anuência para apresentar ao público o que ainda era embrionário e sem estar completamente ensaiado e aprimorado com perfeição. Perfeição? (riso) Quem acredita nisso? Perfeito… Nunca o será. Haverá sempre algo que escapará intocável na sua magnífica imperfeição por uma das frinchas dessa madeira que reveste o palco: o improviso. A surpresa do improviso. A surpreendente arte do improviso. Sorrio.

Para mim que assisti à leitura pública da peça, foi gratificante sentir e perceber que acima de tudo há um gosto e uma entrega ao projecto que não é de um, mas de todos, com as diferenças inerentes à personalidade de cada um e que por vezes, imagino eu, colidindo entre si, fazendo contudo parte de toda esta criação.

Quem escreve, quem encena, quem representa revê-se em determinadas passagens, palavras, cenas, ou diálogos e sente que é algo de si que ali está e fica entusiasmado e inquieto ao mesmo tempo, aguardando pela reacção do público. Eu ri, sorri, chorei de rir, cantarolei acompanhando a cantoria, calei e fiquei pensativa. Emocionei. Indaguei em silêncio.

Não vou, nesta minha divagação, escrutinar quanto a pormenores relativos à encenação, à representação, à noite, ao espaço, mais haverá quem o faça com outros conhecimentos técnicos… apenas vou evidenciar que a entrega a que se assistiu, não é apenas uma questão de generosidade individual, estamos ali porque acreditamos na diferença, na partilha de experiências, nos momentos de amizade.

Conseguem-se presenciar (no palco e no público) tantos momentos e tão únicos e diversificados de quadrantes sociais e humanos, de conhecimentos, de profissões, de talentos, de estatutos, que num repente inusitado, colocam-nos nesse básico e linear papel humano que é o nosso, em que perante a morte, mesmo sendo nesse em que as realidades se encaram de forma diferenciada, acabam no fundo por ser iguais ao que somos: pó de um corpo, energia de uma alma.

Não posso deixar de referir que o inconformismo que caracteriza e alimenta muitos de nós está muito bem aflorado, somos espicaçados (quem não gosta desta palavra?!): não ao comodismo, não à indiferença, não ao marasmo, não ao ser porque sim, não ao estar por estar… há algo que nos espera, é preciso sair e procurar.

Escrevinhei, não tem muitos dias, algo que me parece pertinente para o momento:
Na natureza a inspiração… no espaço a dimensão. E ambas sem limites.

(Obrigada a todos pela oportunidade…)"

Texto de Cristina Vicente
Foto de Carla de Sousa

A primeira vez








Falta aqui qualquer coisa
Leitura pública no dia 11/10/2019
Espaço O Nariz, Leiria
Fotos de Carla de Sousa

Falta aqui qualquer coisa

Estamos no céu. Numa espécie de loja do cidadão, a funcionária de serviço discute com uma estagiária sobre os problemas e os desafios de se morrer e ir para o céu. Entretanto a repartição abre ao público e os utentes vão desfilando com os seus requerimentos e reclamações. Há uma cantora que pretende organizar um arraial ou uma jovem que se queixa de ter morrido demasiado cedo; preenchem os formulários adequados e aguardam. Depois surge uma sequestradora. Transforma todos os presentes em reféns e exige falar com deus. É-lhe explicado que se quer falar com deus, basta rezar. Responde que a reza é sempre um monólogo e ela pretende dialogar; que o problema do mundo (e do céu) é que todos falam mas ninguém ouve. A tensão cresce, a confusão instala-se, a discussão generaliza-se. Como sempre acontece nos momentos menos oportunos, surge uma inspecção. A desordem aumenta, o conflito é permanente. E então surge finalmente deus, acompanhado da secretária. Entre discussões e reflexões, cantorias e piadas, tensões e relaxamentos, os diferentes monólogos vão-se tentando aproximar e conciliar de modo a formarem diálogos. Todos se revelam imperfeitos, todos se sentem incompletos, todos se queixam; porque falta sempre qualquer coisa. Este é um breve resumo da peça “Falta aqui qualquer coisa”, que escrevi para O Nariz – Teatro de Grupo. Está a ser ensaiada e deverá estrear no início do próximo ano; por enquanto, haverá uma leitura pública no dia 11 de Outubro (22h, Espaço O Nariz). Tal como acontecera antes, com a peça “Libelinhas”, deslumbra-me a magia de alguém pegar num texto que escrevi e lhe dar vida, corpo e som, intensidade e espessura, riso e cor, movimento, humanidade. Há uma generosidade nestas pessoas que me comove sempre; durante algumas horas por semana, suspendem os seus problemas, as suas dores, os seus prazeres, as suas prioridades; e apesar das diferenças, unem-se para criar algo comum, algo que contém um pouco da sua individualidade e da sua personalidade, da sua alma. No início há apenas palavras escritas; a arte de encenador e actores está em transformar essas palavras num espelho vivo, onde cada espectador se pode encontrar. E espera-se que cada espectador, tal como a sequestradora da peça, busque diálogos e não se resigne a monólogos; que perante a peça, encontre uma forma de interagir com aquelas personagens, com aquelas ideias, com aqueles sentimentos; que não se limite a escutar, ver, sentir; mas que responda, que reaja, que se manifeste. Que ria. Que dialogue. Porque talvez nos falte sempre qualquer coisa, a todos; e isso une-nos: a busca, a necessidade de compreender, de pertencer. Talvez o conforto seja nosso inimigo; porque enquanto nos falta alguma coisa, não nos resignamos a parar. É isso que nos desassossega e inquieta; e talvez seja isso que nos faz mover e avançar. Haverá sempre quem escreva ou represente, quem leia ou assista a espectáculos teatrais; quem procure construir diálogos. Porque falta sempre qualquer coisa; e ainda bem.

Crónica para o Jornal de Leiria.

2

Janelas que se abrem, sorrisos que nascem.




Janelas que não se fecham, sorrisos que permanecem.

O mito da criação

Havia um jovem deus que vivia num sítio pouco conhecido do universo. Certa vez cometeu um desvario que irritou os pais e foi castigado; deveria passar um dia longe de casa. Para cumprir a punição, optou por um pequeno planeta abandonado, de que nada se sabia porque ficava distante. Não era uma escolha óbvia, sendo o seu objectivo deixar a mãe um pouco ansiosa; desse modo, talvez ela abreviasse a duração do castigo. Lá foi cumprir a sua penitência; contudo, logo se arrependeu da escolha: era um sítio sem vida nem emoção, sem diversidade, onde dominava o azul dos oceanos e o castanho da terra; e nada mais existia. Deambulou por ali sem propósito nem objectivo, apenas para passar o tempo. Mas como tantas vezes acontece, o aborrecimento gerou acção. Quis atenuar o tom monótono daquela paisagem. Porque sim. Porque podia. E assim fez: imaginou umas criaturas simples mas belas que se ergueriam do solo em direcção às nuvens e se agitariam suavemente ao ritmo do vento. Inundou o planeta de árvores; o verde passou a ser uma das cores dominantes e o sussurro das folhas a agitarem-se propagou-se em todas as direcções. O jovem deus contemplou a sua criação e durante algum tempo sentiu-se bem consigo próprio. Mas depois interrogou-se sobre as limitações do que fizera. Cada árvore estava fixa num local e impossibilitada de se mover, pelo que apenas podia contactar com as suas vizinhas; e se determinada árvore quisesse estabelecer relações com uma outra árvore que vivia distante? Pareceu-lhe que a melhor forma de ultrapassar esta limitação seria criar um modo de as árvores comunicarem à distância, transmitindo entre si mensagens e emoções. E assim nasceram os pássaros. Passeou pelas florestas e viu como ficavam repletas de aves de todas as cores e formatos, que se agitavam de ramo em ramo, elegantes e alegres, transportando os recados das árvores, criando uma sonora rede de infinitas conexões; enchendo o ar de música. Entusiasmou-se com o seu poder e foi adicionando novas criações, imaginativas mas pragmáticas, sempre em função das árvores e das suas necessidades. Foi assim que, por exemplo, surgiram os macacos para colherem as frutas ou as iguanas para controlarem o excesso de folhas ou tantos outros animais que desempenhavam tarefas específicas. E se uma árvore morresse? Deveria permanecer indefinidamente no local onde vivera? Achou que não. Sempre que uma árvore morresse deveria ser cuidadosamente recolhida, transportada, homenageada; e para desempenhar essa delicada função, surgiram os homens. A sua criação, nascida do aborrecimento, aperfeiçoava-se. E estava tão entretido que até se irritou um pouco quando a mãe o chamou; a estratégia resultara e o castigo fora abreviado. Mas a verdade é que estava orgulhoso: dera uma nova vida àquele planeta e dispusera as coisas de forma a que essa vida se desenvolvesse harmoniosa e durável, autónoma; feliz. Pensou: é bom ser um deus. E regressou a casa, logo esquecendo o planeta das árvores.

Crónica para o Jornal de Leiria.

O corpo sonha








O CORPO SONHA
Um conto + sete ilustrações originais

Com Maraia
Edição artesanal limitada e numerada
Nove euros


(Pedidos: minimalistamini@gmail.com) 

Espairecer

Há uma imensidão de árvores nos dois lados da estrada que percorro há quilómetros; por cima, o céu azul. E nada mais. Paro na berma, num recanto que poderia servir para fazer piqueniques ou dormir uma sesta. Saio do carro e caminho ao acaso, espreguiço-me ruidosamente; o canto de pássaros preenche o ar, faz-me companhia; poderia ser interessante passar o resto da tarde a tentar identificar cada som, a tentar imaginar o que cada pássaro estará a dizer. Parecem cânticos, e se cantam certamente estarão felizes. Olho o céu e depois as árvores. Se queremos conhecer verdadeiramente uma pessoa olhamo-la nos olhos; e se queremos conhecer verdadeiramente uma árvore, onde a olhamos? Caminho. Respiro o cheiro das árvores, que é o cheiro mais tranquilizador que alguma vez existirá. Regresso ao interior do carro e abro as janelas, convidando árvores e pássaros a entrarem. Deixo-me estar quieto e de olhos fechados; sem pressa nem ansiedade, tentando decifrar a linguagem dos pássaros. Quando reabro os olhos, vejo o velho; caminha na berma oposta da estrada arrastando uma bicicleta, vagaroso e desalentado. Os nossos olhares cruzam-se mas não existe comunicação, não entendo o mistério do seu olhar. Prossegue, indiferente à minha presença. Depois, pára; após uma hesitação, pousa a bicicleta no chão e atravessa a estrada. Diz: «Boa tarde, amigo; tem um cigarrinho?» Respondo que não fumo. Ele fica um segundo a olhar-me e depois ri. Diz: «Não faz mal, que eu também não fumo; era só para meter conversa.» Não sei o que responder. Diz: «Não falo com ninguém há mais de uma semana.» E desvia o olhar, envergonhado. Pergunto-lhe para onde vai com a bicicleta; responde: «Para lado nenhum, ando apenas a espairecer.» Depois, ganha balanço e não se cala durante um bom bocado. Fala dos filhos que emigraram, da mulher que já morreu, da aldeia que desertificou; fala de como gosta de percorrer a floresta a ouvir os seus barulhos, das tardes que passa a pescar num ribeiro; fala das saudades que tem de jogar às cartas e de discutir sobre bola. Após um silêncio, acrescenta: «Também tenho saudades de ver o mar. Há mais de vinte anos que não o vejo. Mas não posso ir de bicicleta.» E ri. Durante um instante, fantasio: podia oferecer-me para o levar a ver o mar; talvez uns duzentos quilómetros, ida e volta; porque não? Mas ele acorda-me do devaneio: «E você, faz o quê?» Escritor, respondo. E agora sou eu que desvio o olhar, envergonhado. Diz: «Ah, isso é uma coisa boa. Eu mal conheço as letras e tenho pena.» Ficamos a olhar um para o outro, sem saber o que dizer. À nossa volta, o cântico dos pássaros. Diz: «Você, que é escritor e sabe coisas, consegue entender o que dizem os pássaros? Gostava de saber, parecem sempre tão felizes.» Sinto uma vontade inexplicável de lhe dar um abraço; mas sei que não o farei. Abana a cabeça e diz: «Digo cada maluqueira, você não ligue. Faça boa viagem, sim?» Recupera a bicicleta e afasta-se, enquanto eu penso nos abraços que ficam por dar.

Crónica para o Jornal de Leiria.

#textos-que-valem-livros

"Desequilibra-me o caminho por onde insistes em me levar. Desconheço a melhor maneira de o percorrer ou se chegará a ter um fim. Perseguem-me os olhos que sempre foram calor, libertando-me na esperança de nunca me verem partir. Onde já tudo foi pressa, agora, reside a lentidão. Calma que prossegue numa réstia de vontade de avançar.
Talvez desconheças, mais do que eu, esta viagem. Talvez me tenhas arrastado sem dares conta que o fizeste. Movimentos em sentidos opostos deixam-me entre paragens que me fazem despertar. Olho à volta e desconheço onde estou, ou qual parte de mim aqui se encontrará. Existirá um lugar onde permanecemos inteiros? Algum lugar de onde nunca almejamos sair? Onde estás quando te chamo? Onde estás quando me abandonas ao frio, sem uma mão para segurar, petrificada no receio de ignorar se vais voltar? A espera numa bipolaridade de emoções que arrasam o que neste instante se ergueu.
Chegará o instante em que a alma abandona o corpo, em que regressarei sozinha de ti mas mais comigo do que nunca. Coração que acredita é impossível de abismar. Outros serão o abismo de si mesmo, arruinados na luxúria da própria contemplação. Corações que batem para se sentirem respirar desconhecendo que existir é aumentar respirações.
Há dimensões que só na humildade seremos capazes de alcançar. O meu mundo tão maior do que o teu. Como se vive numa loucura impossível de controlar? Perdes-te numa não semelhança que persistes em perscrutar criando a ilusão que a perdida sou eu. Imperfeições revestidas na perversidade de não se conseguirem inverter. Sentidos, que ferem pela mágoa de não conceberem o sentir, anestesiam cada uma das partes que mais faziam viver.
Fica. Fica no limite que não te cansas de dilatar. Não se retorna ao que está cada vez mais longe…"

Texto de Catarina Vale

Libelinhas


«Neste sábado amanhecido não me perco em "lirismos e divagações", nem sequer caindo nas memórias dos glutões do Tide, ou na leitura rida da "Maria"... ecoam-me no pensamento algumas frases lidas e riscadas no livro há uns tempos e ouvidas esta semana na correspondente peça de teatro. Escrita e representada de forma espectacular, devo dizer...
Sendo a sua décima apresentação, "Libelinhas" levou-me na passada quinta-feira àquele que é o ninho que a aconchega, o fantástico espaço "O Nariz", em Leiria. Como foram as sessões anteriores? Não sei muito bem e sabê-lo não fará mudar o que senti, aquele era o momento em que eu estava presente...
A foto que partilho, ainda as cadeiras vazias, mostra pouco do lugar em si... cadeiras que depois foram sendo ocupadas por luz, pensamentos, risadas, silêncios... cada qual preenchia o seu espaço de acordo consigo e com o que absorvia da envolvência. Eu estava em lugar privilegiado, abarcava tudo e sentia as vibrações das emoções, minhas e dos outros.
Estas libelinhas são qualquer coisa fora de série, fartei-me de rir, logo a seguir a ter o pensamento embargado, flutuei entre os palavrões que ali ficam tão bem, as personagens que vão entrando e saindo, envolvi-me nos seus diálogos, nos seus mundos de medos, ambições, egocentrismo velado, sentido de humor... São irritações, são afectos, são verdades e evidências. Presentes... 
Se no livro podia parar e reler e porque o encanto da leitura está em cada um descobrir os caminhos por si, aqui os sentidos eram necessários para que as sonoridades, os cheiros, as vibrações, os olhares, prendessem o pensamento. Os actores são incríveis, vivem, sentem e expressam... Vale a pena estar por cada frase, cada palavra, cada carácter representado...
Independentemente do que cada um é (eu e os outros), esta peça consegue espicaçar, faz rir logo a seguir a ter as lágrimas quase a cair, não há vidas cor-de-rosinha e mais, somos todos solidários até ao momento em que a tal de solidariedade não colide com o nosso umbigo... pois é.

Já vai longa a minha escrita e poucos haverá com vontade de ler, no entanto destaco as frases que assinalei quando li a peça e que mantenho:
"Pedir... uma forma de submissão. Perder liberdade?"
"Som da respiração... banda sonora da vida..."
"o poder da comunicação através da respiração..."
"silêncio partilhado..."
"em que pensará uma pessoa que tem a vida adiada..."
"o que seria de nós se não fossem as coisas tontas...."
"... óculos da beleza"
"Sorrir é uma das três melhores coisas..."
"...laços invisíveis..."

Por último, agradeço a quem tornou este momento possível: Paulo Kellerman (escritor), Pedro Oliveira (encenador), Ana Moderno, Bruno Jerónimo, Liliana Gonçalves, Sónia Pedrosa, Tânia Chavinha, Vânia Jordão (actores). E um obrigado especial à Anabela Gonçalves.»

Foto e texto: Cristina Vicente

Pensamentos de avião



Instalação com Sílvia Bernardino.
Festival A Porta 2019

Splash






Piscina Oceânica de Oeiras.

A casa

Chegava todos os sábados de manhã pouco depois da livraria abrir. Deambulava entre os móveis num caminhar lento, pegava num livro ao acaso e abria-o, lia algumas frases, pousava, pegava noutro. Fazia coisas peculiares como passear o dedo pelas capas ou cheirar as páginas; como se namorasse os livros e para os conhecer verdadeiramente precisasses de os tocar com todos os sentidos. Por fim, optava por um e levava-o consigo. Sentava-se na cafetaria, pedia um café e começava a ler. E era como se o livro se apoderasse dela, controlando-a. O seu corpo transformava-se num reflexo do que lia, as suas expressões revelavam o que as palavras lhe transmitiam. Vivia o que lia, convertendo as palavras em expressão, em gesto, em respiração. Havia pessoas por ali que a espreitavam, talvez curiosas, talvez fascinadas; tentavam ler no seu rosto o que poderia estar escondido no livro, como se esse rosto fosse uma janela para um mundo misterioso. (Ou um espelho?) Quem a olhava percebia que, para aquela mulher, ler era uma forma de viver. Como se cada livro fosse um catálogo de possibilidades, um arquivo de emoções e pensamentos onde mergulhava para, momentaneamente, ser e sentir e pensar e sonhar diferente; não para fugir ao mundo mas para se reencontrar a si própria de modos alternativos, para descobrir em si novos caminhos, novos sonhos, novas liberdades. Como se cada livro fosse uma casa: simultaneamente um refúgio e um espaço potenciador de novas possibilidades, de novos encontros, de novos voos. Uma casa-aeroporto. Vivia os livros, e o seu rosto espelhava essa vivência; era por isso que a observavam. Porque ela não excluía ninguém da sua casa. Prosseguia a leitura até meio da manhã, altura em pousava o livro e pedia um pastel de nata. Trocava sorrisos com quem calhasse, conversava com algum conhecido que por ali estivesse, ria alto. Depois, pagava o livro que estivera a ler e levava-o consigo; como se já fosse parte de si. Saía. E o lugar que ocupara permanecia vago durante algum tempo, ninguém saberia explicar porquê. Talvez porque quem ficava sentia que, com a sua presença, ela deixara um pouco de si na livraria. Como se ainda ali estivesse. 

(Texto oferecido aos leitores da Livraria Arquivo no dia 23 de Abril de 2019, assinalando o Dia Mundial do Livro. Crónica para o Jornal de Leiria.)

Almas Desligadas












Com Ana Gilbert.
Moinho do Papel, em Leiria. Até 31 de Maio de 2019.
Curadoria e improvisação: Sílvia Bernardino
(Fotos: Ana Gilbert)

Almas expostas


Moinho do Papel, em Leiria.
Com Ana Gilbert.
Curadoria e improvisação: Sílvia Bernardino
Cartaz: Bruno Jerónimo

Serviços máximos de felicidade









Exposição Almas Desligadas e Outras Histórias.
Com Ana Gilbert.
Galeria Indoor, Rio de Janeiro.

Alegria no trabalho


Libelinhas. Nona apresentação. 07.04.2019.
Foto: Vitória Condeço.
Uma produção O Nariz.

E outras histórias

Almas Desligadas e Outras Histórias reúne algum do trabalho fotográfico de Ana Gilbert numa exposição que está patente na Galeria Indoor (Rio de Janeiro). Com curadoria de Rococó Clean, inclui diverso material originalmente criado para um projecto que realizámos em conjunto em 2018, Almas Desligadas. Este projecto reunia excertos do meu romance Serviços Mínimos de Felicidade e fotografias de Ana Gilbert.