Loucura

Vou até à janela para ver o mundo passar. E ele passa, vagaroso e indiferente. Talvez já tenha tido a esperança que, um dia, me levasse consigo; mas para onde me levaria? E eu gostaria de ter ido? Não sei. Da minha janela vejo o céu azul e sinto o sol no rosto. Por mais longe que o mundo me levasse, não seria sempre o mesmo sol a aquecer-me a pele? Sorrio enquanto penso isto, e é bom quando uma pessoa consegue sorrir sozinha; apesar de haver quem chame a isso loucura. Talvez ainda possa ir pelo mundo fora, em busca de outros sóis; talvez baste acreditar e imaginar que é possível. Se existe o desejo, haverá sempre a possibilidade? Por agora não quero pensar em possibilidades, basta-me sentir a realidade concreta deste sol no rosto. Para onde irá toda esta luz que a minha pele absorve? Tanto sol que apanhei ao longo da vida, certamente que o interior do meu corpo será muito iluminado, resplandecente de luz; se tiver de ser operada ainda vou cegar os médicos. Sorrio de novo, enquanto olho a rua em busca de gente. Sempre gostei de observar pessoas, sempre gostei de lhes escutar as conversas e, através das suas vozes, conhecer-lhes os pensamentos e os sentimentos. Mas agora são raras as pessoas que passam por esta rua; e as que passam nunca conversam. Não entendo por que motivo não falam, não entendo por que motivo calam os seus pensamentos; se não são verbalizados, para onde irão todos esses pensamentos que as pessoas têm dentro de si? Permanecerão aprisionados nos corpos para sempre? Formando gases, talvez. Escuto o silêncio da rua, respiro o cheiro das árvores que estão lá mais à frente. Respirá-las é uma forma de as guardar, a verdade é que tenho florestas inteiras dentro de mim; mas ninguém sabe. Talvez seja por ter tanta luz no meu interior, as árvores dão-se bem com a claridade. Sorrio. Penso tanta tolice, são sucessões de pensamentos tolos que chegam não sei de onde e me fazem sorrir. Talvez por ser essa a única forma que os pensamentos têm de sair para o mundo: agora que a trombose me levou a capacidade de falar, resta-me sorrir. E por isso, sorrio; é como se fosse uma libertação. Mas continua a não passar ninguém na rua; o céu mantém-se azul, indiferente aos meus sorrisos. Se todas as pessoas do mundo fossem cegas, haveria quem sorrisse? Ou deixariam de o fazer, por não existir quem pudesse ver esses sorrisos? Não sei; as perguntas sempre me agradaram mas as respostas causam-me azia, são como portas que se fecham com estrondo. O que sei é que gosto de sorrir ao céu azul, apesar de ele nunca me sorrir de volta. Sinto-me livre quando o faço. Olhar e sorrir, é tudo o que me resta fazer. E esperar. Espero mas a rua permanece deserta. Desconfio que estar à janela é como olhar para o futuro; mas hoje o futuro não virá. Talvez esteja confusa e me tenha baralhado, talvez não seja domingo, talvez os netos afinal não venham. Talvez o futuro seja feito de esperas. E enquanto se espera, o mundo continua a passar; vagaroso e indiferente.

Crónica para o Jornal de Leiria.

Novembro


Calendário Improviso.
Doze textos para doze fotos de Sílvia Bernardino.