Uma força que vem de dentro, uma força que vem de fora


(Escrito a partir de uma série de fotos de Beta Domingues.)


Por vezes, sinto-me rodeado por escuridão. Como se ela me fosse engolir, como se ela me pudesse apagar. Percebes isto? Alguma vez sentiste igual? Há luz, há escuridão: e eu no meio. Debatendo-me mas, na verdade, impotente e desarmado. Que posso eu fazer contra a escuridão do mundo? Que posso eu fazer, se a escuridão nasce em mim? Não há forma de lhe fugir (por vezes, nem o desejo de lhe fugir; é isto o mais triste: nem o desejo de lhe fugir). E é então, nesses momentos, que sinto o peso do mundo sobre mim, há um desânimo que me comprime e angustia, é até possível que o meu corpo diminua um pouco, que pedaços microscópicos de mim sejam expelidos através da respiração; apenas a escuridão permanece no meu interior, intocável, cancerígena, enquanto tudo o resto vai sendo expirado lentamente.
Sinto o peso da escuridão esmagando-me o corpo (uma força que vem de dentro, uma força que vem de fora) e, quando isso acontece, quando me sinto rodeado pela escuridão, o olhar foge-me sempre, desesperado; refugia-se no chão.


 
O que não é necessariamente mau. Sabes que, por vezes, há padrões desenhados no chão – semiocultos, disfarçados, esboçados; imaginados? – que passam despercebidos a quem não olha durante o tempo suficiente, com a atenção suficiente, com o desespero suficiente? Estão lá mas não são vistos; excepto quando me sinto tão esmagado que sou incapaz de erguer o olhar, desviá-lo do fundo do chão. E então vejo, tenho mesmo de ver. Padrões desenhados no chão.
O peso da escuridão pode ajudar-me a ver mais claro. O desespero pode iluminar. Irónico, não é?



 
Há momentos em que preciso olhar o chão que me prende para sentir o apelo do voo; a necessidade do voo; a indispensabilidade do voo. Preciso firmar bem os pés no chão para conseguir voar.
Mais uma ironia, dirás tu.

 


Momentos em que percebo que os pés podem não ser raízes que me fixam e aprisionam; serão, talvez, raízes portáteis que podem erguer-me do chão, fazer-me caminhar. E caminhar é uma forma de voo. Não é? Caminhar, simplesmente. Por vezes, é tudo o que preciso fazer, tudo o que posso fazer: caminhar em frente, desenhando o meu próprio padrão no chão que piso, no chão em que voo.

 


Mas é impossível fechar os olhos enquanto se caminha. Então, caminho e olho o horizonte; contudo, mais tarde ou mais cedo, será impossível ceder à tentação de erguer o olhar até lá acima, bem alto. O céu é tão sedutor, não achas? Tão ilusoriamente sedutor. Na verdade, é lá que desejo voar, e não na terra suja. Correr no céu.
Desejo sofregamente o céu, a sua luz. Esquecendo que, no fundo, essa luz é uma escuridão; uma escuridão diferente daquela a que estamos habituados, uma escuridão que cega; uma escuridão que entra em mim porque que não consigo deixar de a inspirar após expirar o ânimo que ainda guardo.
Escuridão por dentro, escuridão em redor, escuridão por cima; e é fodido.

 


Esmagado entre chão e céu, balanceando entre escuridões antagónicas, vou caminhando; e talvez o caminho que ainda falta percorrer me conduza ao refúgio que procuro. Sabes como imagino o meu refúgio? Um sítio aberto e livre, simultaneamente céu e chão, onde todas as escuridões confluam e se anulem entre si; ou se equilibrem, pelo menos. Não desejo castelos nem fortalezas inexpugnáveis, não desejo desertos nem mares sem limites, não desejo imensidões inabitadas nem belezas esmagadoras nem prazeres intermináveis. Desejo, apenas, aquilo que o meu olhar e o meu espírito reconhecerão imediatamente como sendo presente e passado e futuro, indissociáveis. Um local que seja passado e presente e futuro; que seja tudo. Um ponto e uma linha, em simultâneo. Será esse o meu refúgio.



 
Sabes o que pensei no outro dia? O quanto preciso de música. Isso já tu sabes. Mas, pela primeira vez, pensei em música num sentido mais lato, não apenas em canções, não apenas naquela harmonia mágica entre vozes humanas e instrumentos musicais que pode causar estremecimento e arrepio e riso e choro e emoção pura e prazer, tanto prazer. Esse, afinal, é apenas um tipo de música.
Estava a pensar isso, em silêncio, respirando devagar e, de repente, percebi: há música no som da minha respiração; de qualquer respiração. E este é apenas um exemplo. No fundo, há música em tudo o que tem vida em si, em tudo o que vive verdadeiramente. Foi isso que pensei; uma tontice, portanto. Preciso de música desesperadamente porque a minha música interior talvez esteja (como eu) moribunda; e então, substituo-a.
E a escuridão recua um pouco.



Caminhar pé ante pé, de forma firme mas leve (raízes que voam), com um rumo definido mas sem prisões condicionadoras, deixando um rasto desenhado no chão; e escutando a música da minha própria respiração. Parece tão simples, não é? E é simples, sei que é simples; já fui assim, um dia. Lembro-me.

 


E agora vou lanchar, que já te aborreci demasiado…