Olhar sem ver

(A partir de uma foto de sonja valentina.)




Aguardo junto da janela, à espera que chegues; estás atrasado, para não variar. Como sempre, olho lá para fora, para a rua e para o céu, para o vazio, para nada em concreto, apenas porque olhar para algures (olhar sem ver) é uma forma eficaz de distrair o pensamento, de ocupar a passagem do tempo. Por vezes, a cortina acaricia-me o rosto, movendo-se quase imperceptivalmente ao ritmo da minha respiração (como se houvesse uma tempestade dentro de mim, a querer sair; como se a minha expiração fosse um vento incontrolável); e nada mais acontece: pensamentos e expirações em turbulência, ténues movimentos, suspensão da vida.
Mas de repente, ao sentir a ocasional carícia da cortina na minha face, surge-me no espírito uma questão súbita e inesperada (como se alguém invisível a gritasse com tal veemência que fosse impossível fugir-lhe): porque haveremos de usar cortinas, porque nos protegemos da luz? Porque não procuramos a luz? Não seria esse um desejo mais natural, uma necessidade mais natural? Afinal, a luz nunca deveria ser demasiada, deveríamos viver sôfregos por ela. Mas não: usamos cortinas. Porquê?
Paro um momento para pensar (ou seja: excluo todos os outros pensamentos da minha mente), percebendo que não estou a ser ensombrada por uma fútil e passageira questão mas por várias e múltiplas perplexidades, que se vão desdobrando, enredando-me em dúvidas. Na verdade, gostaria de estar a conversar estes assuntos contigo. (Lembras-te quando passávamos noites a discutir aquelas irrelevâncias que tanto nos entusiasmavam e comoviam? Teremos alguma vez falado de cortinas? Certamente que sim, porque na nossa primeira casa optámos por não usar cortinados; lembras-te?) Mas estás atrasado, como sempre; e, por isso, terei que conversar sozinha; comigo própria.

Que absurdo é pensar em cortinas; ou talvez não. Na realidade, um pensamento é uma parte de nós, nasce de nós e apenas existe porque nós existimos; deveremos, por isso, assumi-lo como nosso, pois afinal é uma mera exteriorização do que somos; cada pensamento é um pedaço de nós, tal como as mãos, o cabelo, as unhas; ou, noutra dimensão, como cada palavra que dizemos, como o cheiro que emanamos, como cada acção que executamos. Nós somos tudo isso; não apenas corpo e espírito mas também som e cheiro, tudo o que fazemos e sentimos e pensamos.
Pensemos em cortinas, então. (Detesto tanto os teus atrasos.) Usamo-las para nos protegermos do exterior, para não nos revelarmos demasiado; não concordas? Mas a verdade é que queremos revelar-nos um pouco (ou não teríamos janelas; recusaríamos o exterior; tentaríamos permanecer encerrados em nós, fugindo do mundo); queremos revelar-nos parcialmente e as cortinas protegem-nos, impedem que sejamos vistos inteiros e nítidos; as cortinas deformam-nos, desfocam-nos. É para isso que servem, é por isso que as usamos. Mas há um preço, infelizmente: também impedem que o mundo nos chegue completo e inteiro, pleno, fulgurante; filtram o que recebemos do mundo. Ou seja (digo eu a mim própria): o que nos protege também nos empobrece. E fico um instante a imaginar o que responderias a isto. Talvez dissesses: sim, tens razão; o que nos protege do mundo também protege o mundo de nós; e é uma ideia algo perturbadora, não achas? O mundo lá passa, sem nos ver completos, sem nos perceber completos; vê as nossas cortinas, apenas – e falo em cortinas como poderia falar em máscaras, não é? Protegemo-nos do mundo e, por isso, o mundo vê-nos parcialmente, vê um fragmento, uma sombra, uma aparência de nós. Mas será isso que desejamos verdadeiramente? Manipulamos o que o mundo vê de nós e achamos isso inteligente e sensato, pragmático; mas sê-lo-á?
Continuo a olhar lá para fora (o mundo a passar por mim, totalmente indiferente) e reflicto nesta tua ideia, nesta ideia que tive por ti: protegemo-nos com máscaras, como protegemos as janelas com cortinas. E depois, assim de repente e sem aviso, deixo de pensar nisso; não me apetece. Não me apetece pensar seja no que for porque, afinal, os pensamentos também podem ser como cortinas: separam-nos da realidade. E quando deixo de pensar, há algo que se torna óbvio: não me apetece esperar mais. O que desejo verdadeiramente – percebo-o sem surpresa nem receio, sem entusiasmo ou incredulidade – é dispensar a protecção das cortinas e abandonar a penumbra do nosso quarto; o que desejo é enfrentar o mundo e saborear toda a sua luz; mostrar-me ao mundo completa e inteira, ser luz. É isso o que desejo, assim de repente. Acreditas numa coisa destas? Atrasas-te, a cortina toque-o o rosto, os pensamentos atropelam-se: e é tudo; mas o suficiente para que a minha vida mude.

Saio sem sequer trancar a porta, corro pelas escadas e abandono o prédio, atravesso a rua como se fugisse a um qualquer perigo indefinido (ou como se corresse em direcção à felicidade?); mas depois paro, simplesmente paro: e fico a olhar para a nossa janela, vendo-a como nunca a vira antes, vendo-a do lado de fora. Estou parada no meio do passeio, há pessoas indiferentes e apáticas a passarem por mim (desviando-se, sem me tocarem; porque atemorizará tanto o toque de um estranho, o toque a um estranho?); o céu brilha, o ar resplandece de luz. E eu aqui parada, olhando a nossa janela: como se olhasse algo desconhecido e enigmático, algo que não fosse meu; tentando perceber como seria estar do lado de lá da cortina; tentando ver-me como os outros (o mundo) me veriam; olhando-me a mim própria – à versão pública de mim própria – mas sabendo que existe uma cortina pelo meio, a separar-nos. Perguntando-me: porque insistimos em manter duas versões de nós próprios, uma íntima e outra pública, versões irremediavelmente separadas por espessas cortinas inamovíveis? Porquê?
Eis-me, assim, chegada a este inesperado momento. Parada no passeio e sentindo a brisa no rosto, o vestido a esvoaçar ligeiramente, a luz a rodear-me, a envolver-me, a acariciar-me, a clarear-me, a inebriar-me: olho com ternura a nossa janela, a nossa cortina (sim, como se fosse uma despedida); mas não se trata de olhar sem ver, desta vez é algo diferente; olho e vejo mesmo. Vejo a realidade, sem o filtro de cortinas ou máscaras; apenas a realidade concreta e real, materializada numa banal janela, numa perspectiva diferente da mesma banal janela de sempre. E tu continuas sem chegar, atrasado; sempre apressado, apesar de irremediavelmente atrasado em relação à vida, a mim. Mas – e enquanto consciencializo isto talvez esteja a sorrir, o que é um pouco triste – o teu atraso deixa subitamente de ter qualquer importância; porque quando chegares, já não estarei à tua espera.

Consubstanciação

(A partir de uma fotografia de Sónia Silva.)




- Já reparaste? Por mais próximos que estejamos, há sempre algo que se interpõe entre nós, que nos separa, que nos afasta; algo difuso e impalpável que impede que nos complementemos totalmente. Como se fosse um véu, quase invisível, quase incorpóreo, mas inquestionavelmente presente, tão sólido como uma parede. Estendo a mão e toco a tua pele, penso que estou a tocar a tua pele, chego até a sentir que toco a tua pele; mas não, na verdade não estou a tocar, a sentir. Porque há uma película insubstancial que se interpõe entre a minha pele e a tua, entre o meu olhar e o teu, entre o meu corpo e o teu; entre mim e ti. E por mais que tente aproximar-me, por mais que tente tocar, não consigo; parece impossível. Não sei de que é feito este véu; talvez esteja, na sua origem, relacionado com a tua resistência, com o teu medo, a tua distância; talvez seja tudo isso que de alguma forma se consubstancia em algo concreto e palpável, em algo tocável; como um véu, por exemplo. Mas estás a sorrir. Gostas desta palavra, não é? Eu gosto, também gosto. Con-subs-tan-cia. E, por acaso, representa aquilo que mais ambiciono: que o nosso amor se consubstanciasse, que nos consubstanciássemos. Percebes isto? Mas afinal parece que não é possível, parece que apenas aquilo que nos separa se consubstancia. Paciência. Afinal, passamos a vida envolvidos por véus, não é? Mesmo que consigamos despir todas as máscaras com que nos protegemos, parece impossível não manter alguns véus, nem que seja só um; parece impossível estarmos completamente despidos perante alguém. Mas, mesmo parecendo impossível, eu quero despir-me completamente, quero-te completamente despido. Percebes o meu problema? Quero impossíveis. E é por isso que vou rasgar este véu que nos separa; vou rasgar-te e quero que me rasgues porque apenas assim, rasgados, poderemos ser verdadeiramente completos. Não quero véus, quero que sejamos apenas nós.
- Não queres véus. Ok, percebo. Faz sentido. Mas agora pára um pouco para pensar, só um pouquinho. Está bem? Pode ser? Pensa nisto: até que ponto podemos conhecer o outro? E já agora, pensa também nisto: até que ponto o outro quer que o conheçamos? Acreditas mesmo que é possível o conhecimento total do outro? Acreditas que alguém deseje a nudez total e absoluta?
- Acreditava. Por acaso, acreditava. Até agora mesmo.

Símbolo de mudança


(Estória escrita a partir de uma foto de sonja valentina.)




- Uau. Adoro esses sapatos.
- Sim? Também gosto muito.
- Deves ficar estupenda com eles. Mas nunca te vi usá-los.
- Pois não. Nunca os usei.
- A sério? Nem acredito. Porquê?
- Não sei explicar bem. Tem a ver com o facto de serem especiais, acho eu.
- Como assim?
- Sabes como é, os dias são tão iguais que já nem conseguimos distingui-los; não achas? É como se a vida fosse a repetição de uma repetição, como se vivêssemos repetições infindáveis e inconsequentes; como se vivêssemos numa rotunda, sempre às voltas. E as memórias que se vão acumulando desses dias acabam por também ser repetições indistinguíveis e, portanto, quase irrelevantes. É um bocado triste, não é? Vivemos um presente tão repetitivo que o passado que vamos deixando para trás acaba por ser uma nulidade, uma ilusão, um equívoco. E, afinal, é o passado que nos dá um sentido de continuidade e evolução, sem consciência do passado a vida transforma-se numa mera colecção de momentos.
- Pois. Mas e os sapatos? Que tem tudo isso a ver com os sapatos?
- Não te rias mas acho que estou à espera que aconteça algo especial. E então, nesse dia, que não será uma simples cópia dos outros dias mas uma espécie de intervalo na repetição, usarei os sapatos. Nesse dia, conseguirei sair da rotunda e experimentar um caminho novo. E sentir-me-ei especial, não só por ser um dia especial mas também por usar uns sapatos que são especiais; as duas coisas tornar-se-ão indissociáveis. Percebes? Depois, quando o dia passar, terei para sempre uma memória inequívoca desse dia especial: bastará olhar os sapatos. Serão um símbolo de mudança ou algo assim.
- Que estranheza de teoria. E não bastava tirares muitas fotografias, durante esse tal dia especial? É para isso que existem as máquinas, posso emprestar-te a minha. Tem treze megapixéis.
- É, se calhar tens razão. Deixa lá, esquece. Já sabes que gosto de devanear.
- Olha, sabes o que estava a pensar? Na sexta-feira vou sair com aquele tipo de que te falei, o que conheci no facebook. O das motas, lembras-te? Vai levar-me àquele sítio novo, perto do rio; aquele onde vão as actrizes de telenovela, ando mortinha para ir lá. E estava aqui a pensar que os teus sapatos ficavam mesmo bem com o vestido que quero levar. Não queres emprestar-mos? Prometo que os devolvo impecáveis, nem dás por nada.