Sorrisos de manhã de domingo


(Uma velha estória, há muito esquecida e agora reencontrada; é uma interpretação de um dos meus quadros favoritos: Morning Sun, de Edward Hopper.) 


Agora, faço isto todas as manhãs: sento-me na cama e olho pela janela. Olho, simplesmente: à espera que o tempo passe, à espera que um sonho ou uma esperança ou uma oportunidade entre pela janela e me invada o corpo e a alma, trazendo consigo algum entusiasmo, algum prazer por estar viva e ter vida pela frente; qualquer coisa. Fico assim durante alguns minutos, enfrentando a luz do sol; olho, também, o céu, procurando no seu azul, nos seus múltiplos e indefinidos tons de azul, uma distracção do cinzento deste quarto, do cinzento da minha vida, do cinzento do meu futuro (e quando o cinzento da minha vida se mistura com o cinzento do céu sinto-me estranhamente acompanhada, menos só.) Depois, inevitavelmente, resigno-me: sei que nada acontecerá, que ninguém virá. E desisto; visto-me muito devagarinho concentrando-me em cada detalhe da roupa, da maquilhagem, dos acessórios, da escolha dos sapatos e do perfume; depois, devidamente camuflada, saio e enfrento o mundo; ou melhor: escondo-me do mundo, no mundo.
Mas são importantes, estes momentos: recordam-me como estou só; e, algo perfidamente, dão-me alento: porque é impossível piorar, é impossível ser mais infeliz, ou permanecer assim infeliz para sempre.

Por vezes, quando as fantasias nocturnas não se dissipam tão velozmente como deveriam, dou por mim a tocar-me, a acariciar-me, a confortar-me. Toco-me, para me sentir menos desprotegida, esforçando-me por acreditar que não estou só, que sou alguém; acompanho-me. Toco-me, também, para acalmar o corpo, para o serenar, para o saciar. Para o distrair.
Descobri na masturbação uma forma cruel mas eficaz de protecção; quando acalmo e anestesio o corpo com o prazer que eu própria lhe proporciono, deixo de sentir necessidade de sair deste quarto e partir em busca de alguém, de um qualquer homem anónimo, sem rosto nem nome, sem pretensões nem diálogos nem futuro, que me acalme e pacifique, fodendo-me com competência mas distanciamento. Porque certamente que o encontraria, encontrei sempre que quis, sempre que precisei. Encontraria; mas, e depois? Depois de satisfeito o corpo, pensaria – seria inevitável, penso sempre – que esse homem poderia, talvez, tentar serenar-me a alma, preenchendo-a com amor (amor… mas que coisa mais pomposa), ou simplesmente com carinho e cumplicidade e riso e alegria; pensaria que talvez ele se pudesse interessar por mim, e não apenas pelo meu corpo. Pensaria que talvez esse homem anónimo, competente mas desinteressado, pudesse tentar amar-me. Ou seja: iludir-me-ia; e sofreria. Porque, agora, parece que ninguém tenta amar seja quem for; já nem me lembro do último que tentou amar-me.

Um destes dias, quando olhava pela janela, perguntei-me: há quanto tempo não sou verdadeiramente amada? E fui saltando de companheiro em companheiro, recuando no tempo, especulando qual deles me poderia ter amado, tentando recordar quais deles me disseram amo-te, tentando adivinhar se algum dos que disse – poucos, tão poucos – teria sido sincero. A conclusão, desencantada e dolorosa, a que cheguei foi que, afinal, talvez nenhum me tivesse amado. Mas decidi ir um pouco mais longe, avançar mais por mim a dentro; e arrisquei perguntar-me se eu os teria amado, se teria amado algum dos homens da minha vida. E a resposta que chegou lá de dentro, bem do fundo de mim, foi: talvez não. Sem dúvida que desejei amá-los; e talvez tenha fingido amá-los, talvez tenha até acreditado que os amava. Mas não mais do que isso.
Então, enquanto me agarrava aos joelhos e sentia a pele fria, tão insuportavelmente fria apesar do calor do sol que entrava pela janela, desisti de fugir, não me apeteceu continuar a fugir; e permiti que a interrogação final, fatal, me atingisse: será que nunca fui amada apenas porque nunca amei? Levantei-me e caminhei devagar, muito devagar, entrei na casa de banho, fechei a porta. E chorei. Olhei-me no espelho e chorei, até deixar de sentir pena de mim própria.

O céu está repleto de nuvens brancas e redondas que se arrastam com preguiça, resignadas e apáticas como transeuntes arrastando as all star e os saltos altos no corredor de um centro comercial numa manhã de domingo; a luz do sol da manhã invade o quarto, fraca e ténue, triste. E não há mais ninguém, apenas eu e a luz e as nuvens e a vontade de companhia. Sinto-me vazia, mais do que o habitual. Sinto a mente ziguezaguear, frenética e assustada, arrastando-me atrás de si, apetite após apetite; e o mais triste é que sei que me está a arrastar para lado nenhum. Apetece-me chorar; apetece-me rir; apetece-me abraçar; apetece-me morrer; apetece-me falar; apetece-me acreditar; apetece-me ser olhada; apetece-me uma surpresa; apetece-me arrebatamento; apetece-me o oposto de solidão e não sei o poderá isso ser; mais que tudo, apetece-me ser tocada.
Toco-me, então; não há mais ninguém para o fazer, agora, neste momento; por isso, toco-me a mim própria. Envolvo o seio na mão, aperto o mamilo. Fecho os olhos: e imagino-me beijada, imagino o meu mamilo acariciado por uma língua. Tento acreditar na fantasia, retirando da escuridão que me envolve o vislumbre de imagem de um qualquer rosto, percorro a memória em busca da recordação de uma boca que preencha e consubstancie o meu devaneio. E é então que, inesperadamente, me surge o teu rosto, o teu beijo; pela primeira vez em tantos, tantos anos penso em ti. E deslumbro-me com a nitidez das imagens, repentinas, imparáveis: nós os dois deitados na praia, cobertos de areia, arrepiados e desconfortáveis; a tua mão no meu seio, os teus dedos no meu mamilo; e depois, abrupto e desajeitado: lambeste-o, chupaste-o, mordeste-o. Pela primeira vez: para ti, para mim.
Lembras-te? Tínhamos dezasseis anos e queríamos ser médicos, ter filhos, comprar um barco, viver em África e escrever poemas, salvar o mundo, descobrir novos mundos; mas antes, queríamos, mais que tudo, descobrir os nossos corpos e levá-los ao limite. Fugíamos das aulas, escondíamo-nos na praia; e fazíamos amor, desajeitadamente e muito depressa, com uma intensidade quase doentia; depois, deixávamo-nos estar, disfarçando a decepção que sentíamos por o sexo nunca ser verdadeiramente reconfortante com longas conversas inconsequentes, desfilando fantasias que nem chegavam a ser utopias de adolescente, fantasias que não passavam de devaneios de criança. E depois, partíamos, de bicicleta, tão eufóricos quanto frustrados. Lembras-te?
A ti, amei-te; e tu, amaste-me. Tenho a certeza.
Não sei por que penso agora em ti, não sei por que nunca pensei em ti, até hoje. Largo o seio e levanto-me, aproximo-me da janela. Olho o mundo, lá fora: e não tenho medo, por um momento consigo não ter medo. Já amei, já fui amada; afinal, o que desejo não é uma impossibilidade: já aconteceu, pode repetir-se. E que se fodam todos os que me dizem que a felicidade, a minha felicidade, não virá na forma de um homem. Olho a cidade anónima e distante, expectante, subitamente convidativa; pergunto-me o que será feito de ti; pergunto-me se não estarás a olhar por uma qualquer janela, a pensar em mim.

Agora, faço isto todas as manhãs: sento-me na cama e olho pela janela. Penso em ti. Penso que talvez pudesse partir pela cidade fora, à tua procura; penso que, se o fizesse, certamente te encontraria; penso que, se nos encontrássemos, poderíamos tentar ser felizes, outra vez, mais uma vez. Penso que sou (sinto-me como) uma miúda de dezasseis anos, a alimentar devaneios inconsequentes: e não me importo.
(Quando passeio no centro comercial, ao domingo de manhã, já não olho tanto para o chão como fazem quase todas as outras pessoas, já não reparo tanto nos saltos altos e nas all star; olho os rostos (sim, atrevo-me a fazê-lo), olho-os simplesmente, durante uma fracção de momento; e surpreendo-me tanto, mas tanto, quando algum desses rostos, um dos que também não olha o chão, me sorri que não consigo deixar de sorrir também. Vou sorrindo, então: sorrisos de manhã de domingo; treinando para o dia em que finalmente te encontrar e me perguntares se ainda quero ir a África.)

Legenda # 06: Filmes palermas


(Escrito a partir de uma fotografia de Sofia Mota.)

É então que me abraças pela primeira vez. E sinto que acontece algo semelhante ao que sempre vi nos filmes palermas (tu sabes o quanto gosto de filmes palermas, não sabes?): um daqueles momentos em que parece que o mundo pára durante um fragmento de segundo e tudo se suspende em redor; claro que sabemos muito bem que o mundo, na verdade, não parou, pois o mundo não é nada de paragens, mas de certa forma deixou de nos importar que ande ou não ande; portanto, é como se tivesse mesmo parado. Parvo, não achas? A verdade é que esta fantasia acaba por ser uma forma de libertação ingénua mas eficaz, porque é em instantes assim que nos desembaraçamos momentaneamente do mundo e dos seus constrangimentos. Talvez por isso goste de filmes palermas: lembram-nos coisinhas elementares e essenciais, há muito esquecidas porque sempre as escondemos sob camadas de racionalização e filosofia e presunção e complexidade; coisinhas mesmo, mesmo simples que deveriam ser evidentes e inquestionáveis mas que ocultámos de tal forma, com tanta dedicação e empenho, com tanta eficiência, que esquecemos as coisinhas em si e apenas nos lembramos das camadas que fomos amontoando; porque, na verdade, somos pessoas que precisam de camadas, muitas camadas, pois acreditamos que elas podem disfarçar – ou mesmo preencher, quem sabe – os nossos vazios existenciais e o facto de, afinal, sermos um pouquinho ocos.
Portanto: o mundo pára quando sinto todo o teu corpo envolver o meu, complementando-o e prolongando-o, dando-lhe uma nova dimensão e realidade, uma nova espessura; um propósito. Sim, sei que isto já nem é conversa de filme palerma mas, bem pior, discurso de telenovela; mas que queres? É o que sinto. Que estou a ser tocada não pelos teus dedos ou pelos teus lábios mas pela totalidade do teu corpo. E penso: ah, então é para isto que o meu corpo serve, era disto que estava à espera. Porque há qualquer coisa de desestruturante e arrebatador, de desconcertante, numa primeira vez; é o primeiro abraço que me dás e por mais vezes que se repita, sei que nenhuma dessas réplicas se aproximará da intensidade inicial; portanto, de certa forma também é o último abraço, porque os que vierem posteriormente serão outra coisa qualquer, serão algo diferente, serão imitações e tentativas.   
O abraço dura uns segundos; mas tentar medir ou quantificar a felicidade é um disparate, é um vício dos infelizes; claro que não interessa quanto tempo tenha durado um momento de felicidade, na verdade tudo interessa excepto isso. Mas confesso que, por vezes, tenho pensamentos tolos. Por exemplo: que giro seria se houvesse uma medida para a felicidade – o teu beijo proporcionou-me três quilos ou setecentos bytes ou meio mililitro ou vinte watts de felicidade. Se assim fosse, até se poderia estabelecer um qualquer mercado de trocas, sistemas de crédito, um índice na bolsa, empréstimos bancários específicos, avaliações das agências de rating; enfim, poder-se-ia matematizar a felicidade e comercializá-la. (Poderias até perguntar, se fosses tão tolo como eu: sabes quanto me deves, por estes segundos de felicidade que te dei?) Tolices, enfim. Não ligues.
Portanto, não importa que o abraço tenha durado apenas uns segundos: o mundo pára e isso é que conta. Depois, passados os tais segundos que não interessam, termina o abraço ao mesmo tempo em que os relógios retomam o seu monótono tiquetaquear (eu sei: estou a dizer que o tempo parou mas, simultaneamente, os segundos continuaram a passar; pois, uma parvinha). Claro que o parque, onde tudo isto ocorre, está cheio de vida; há, por exemplo, outros casais de namorados (para mim, é o abraço que oficializa o início do nosso namoro; é neste pedacinho de parque verde e solarengo, aqui mesmo ao lado de um repuxo que inesperadamente entra em funcionamento, que nos transformámos em namorados, e não me chateia que toda a gente considere esta palavra, este conceito – namorados – um arcaísmo, uma ingenuidade, um romantismo de poeta, uma irrelevância; sei que agora vivemos no mundo facebookiano das relações, no mundo concreto do sexo; mas eu quero ser namorada e ter um namorado). Mas não só, há também uma miríade de velhinhos solitários, de crianças barulhentas, de cães e pássaros, de bichinhos invisíveis, de pessoas desinteressadas, de borboletas. E o azul do céu e o verde das árvores, o cheiro da relva e das plantas e do algodão doce da barraquinha lá do fundo, o zumbido do calor (é a primeira vez que percebo que o calor zumbe): tudo a envolver-nos, a compor o nosso cenário, a emoldurar o nosso abraço; tudo infinitamente distante mas, simultaneamente, parte da nossa realidade, de nós. Como se o nosso abraço abrangesse, também, o mundo.
Se falasses neste momento, talvez dissesses: “Olha que é só um abraço, nada mais.” Talvez não o digas mas pensarás que tudo isto não tem assim tanta importância; afinal, quantas pessoas abraçaste, antes de mim? Talvez este momento signifique pouco para ti, talvez nada saibas de filmes palermas. Poderia perguntar-te o que sentes mas receio uma decepção, e afinal ainda é demasiado cedo para decepções; e se respondesses, por exemplo, “Estou com fome” ou “Dói-me um joelho”? Se dissesses algo que denunciasse que nem reparas na minha presença, quanto mais no meu abraço? Não, prefiro não arriscar. Claro que este momento é nosso e não apenas meu, que de certa forma me estou a apropriar dele e a transformá-lo naquilo que mais me convém. Mas não é isso a paixão? A ilusão de que o outro possa sentir precisamente o mesmo que sentimos? A projecção daquilo que sentimos no outro, como se ele fosse um mero espelho? Ah, mas desculpa, que me estou a afastar do mundo dos filmes palermas e a ceder a uma espécie de cinismo elementar e inconsequente. Sorry. Se não te vou dizer nada disto, porque estou a pensá-lo?
O que gostaria mesmo era de me abstrair deste momento e observá-lo (sim, como se visse um filme), para conseguir analisá-lo detalhadamente; ser espectadora de mim própria, deste fragmento da minha vida – desculpa: da nossa vida. E perceber tudo, não apenas a tua reacção (o grande problema dos abraços é que nunca conseguimos perscrutar o olhar de quem nos abraça, perceber exactamente o que o outro sente enquanto nos aperta contra o seu corpo). Perceber mesmo tudo; por exemplo: que pensarão as pessoas que nos rodeiam, se por acaso nos olharem? E porque não olham, porque não param para ver? Porque são tão indiferentes a um abraço que, afinal, é capaz de imobilizar o mundo? Porque serão as pessoas indiferentes à felicidade alheia?
Gostava, então, que este pedaço da minha vida fosse um filme; uma cena num filme palerma. Ou um quadro do Monet ou do Macke, que andavam sempre a pintar gente em parques: a minha felicidade em forma de cor, exposta (pendurada) na parede de um museu para toda a gente apreciar. Gostava que houvesse uma forma de fixar este momento, de fixar este abraço, de fixar esta memória, de fixar esta sensação de mundo parado, de fixar esta felicidade, de fixar este princípio de amor, de fixar o prazer que sinto quando estas gotas de água fresca vindas do repuxo tocam as minhas pernas nuas, de fixar este desejo absurdo de permanecer fixa. Gostava, sim.
E lamento que entre toda esta multidão que saltita preguiçosamente pelo parque, daqui para ali e dali para acolá, sem objectivo nem pressa, não exista nenhum daqueles fotógrafos que sempre andam pelos parques a apontar as suas máquinas à banalidade da vida com o secreto, ambicioso e generoso desejo de transformar os monótonos detalhes do quotidiano em beleza pura (como se as máquinas fotográficas fossem uma espécie de varinha mágica). Porque se estivesse um qualquer fotógrafo a vaguear aqui pelo parque, certamente não resistiria (nunca resistem) a fotografar o nosso abraço; e teríamos, então, uma prova deste momento especial em que fizemos o mundo parar; uma prova a que poderíamos regressar mais tarde, as vezes que desejássemos, quando não conseguíssemos acreditar que fora possível sermos tão felizes; e diríamos: foi mesmo verdade, aconteceu. O nosso abraço não seria uma cena de filme nem seria uma pintura; seria melhor: uma fotografia. Sabes porquê? Porque efectivamente a máquina pode ser uma varinha mágica pois existe magia na forma como alguns fotógrafos conseguem captar e fixar sentimentos; afinal não seria por acaso que há muitos, muitos anos uma ou outra pessoa receava ser fotografada porque temia que a fotografia lhe roubasse um pedaço da alma. E será que não rouba mesmo? Irias certamente rir se te dissesse como até desconfio que se calhar rouba, e que se roubar não faz muito mal porque assim poderemos guardar esse pedacinho de vida cuidadosamente; ficaríamos a conhecer o seu aspecto e forma, a sua localização. E não seria isso tranquilizador? Afinal, a fotografia dá substância ao sentimento, de alguma forma materializa-o; e é essa a sua magia.
Vou pensando tudo isto, que são divagações que me bailam pela cabeça e que gostaria de partilhar contigo; mas receio fazê-lo, ainda receio fazê-lo. E se respondesses com desplante e indiferença, com uma qualquer inconveniência? Por exemplo: “Chiça, parece que tens doze anos ou assim.” Ou: “Olha, o que eu queria mesmo era ir foder um bocado.” Poderias dizer algo do género, não poderias?
Por isso, vou permanecendo calada, sentindo o momento, apropriando-me dele e fazendo-o apenas meu, transformando-o em memória; saboreando o abraço, a paragem do mundo, o cheiro a algodão doce. E és tu quem finalmente quebra o silêncio, depois de o abraço se dissipar. Dizes: “Porque não vamos ver um filme? Um daqueles muito palermas em se chora um bocadinho e se sorri muito. Apetece-te?”


Legendas anteriores:
#05: A partir de um desenho de João Concha
#04: A partir de uma fotografia de Julieta Domingos
#03: A partir de uma fotografia de Cátia Biscaia
#02: A partir de uma fotografia de Francisca Moreira
#01: A partir de uma fotografia de Lara Jacinto

Nota fotográfica

Fotografia e literatura. Maravilha... :)
Aqui.

Bilhete de identidade


Estória velhinha (vê-se logo pelo título, que já nem existem bilhetes de identidade), baseada no quadro "Sunlight in a cafeteria", de Edward Hopper.


ELA (um pouco embaraçada): Obrigada. (Pausa breve.) Tu também.
(ELE sorri, com tristeza; ela desvia o olhar.)
ELE (sem a olhar): Tenho feito algum exercício.
ELA (com alguma surpresa, talvez fingida): A sério?
ELE (com displicência): É. (Pausa breve. Apoia as mãos na cadeira, revelando a sua predisposição em prolongar a conversa. ELA, sentada, olha-o momentaneamente e volta a desviar o olhar, talvez incomodada com a imposição da presença dele; aguarda, resignada.) Meti-me num ginásio e comecei a gostar daquilo, nem sei bem porquê. Estar para ali a esforçar o corpo, a apreciar o cansaço e assim, sempre me pareceu uma coisa um bocado estúpida; mas, ao mesmo tempo, é libertador. (Pausa breve.) É esquisito, não sei explicar. Uma espécie de intervalo da vida e da rotina e dos problemas, percebes?
ELA (encolhe os ombros, tentando manter-se imparcial, não revelar desinteresse ou curiosidade): Nunca fui a ginásios. (Mexe distraidamente o jornal que tem à frente, que estava a ler antes de ele a abordar.) Fico-me pela parte do estúpido.
(ELE sorri, desconfortável; vê como ela vira a página do jornal, com enfado; como se estivesse aborrecida; ou desinteressada da sua presença; move-se, denunciando algum nervosismo, apoiando o peso do corpo nas costas da cadeira.)
ELE (num tom de voz velado): Estás à espera de alguém?
(ELA abana a cabeça, sem o olhar; volta outra página do jornal.)
ELE (tentando parecer entusiasmado): Aposto que também vieste tratar do bilhete de identidade. Aquilo ali está complicado, não sei a que horas nos despachamos.
(ELA olha-o durante um momento, talvez preparando-se para dizer algo; mas permanece calada, como se se arrependesse do seu pensamento, da sua intenção.)
 ELE (receoso, quase tímido): É curioso, não é? Estamos divorciados há… quê? Sete meses?
ELA (num tom gélido, traindo a sua pretensão de desinteresse): Nove.
ELE (ignorando a frieza dela): Nove meses. E escolhemos precisamente o mesmo dia para vir mudar o estado civil, no bilhete de identidade. (Pausa breve.) Como se tivéssemos combinado.
(Olham-se em silêncio, embaraçados e tímidos.)
ELE (um pouco ansioso): Posso sentar-me aqui?
(ELA encolhe os ombros. ELE hesita durante alguns segundos; depois, arrasta a cadeira e senta-se. Permanecem em silêncio, sem se olharem. Pouco depois, aproxima-se um funcionário do café; olha-os em silêncio, simultaneamente expectante e desinteressado.)
ELE (dirigindo-se ao funcionário): Uma torrada e um sumo de maçã, se faz favor.
(O funcionário olha a mulher, que acaba por abanar a cabeça. Afasta-se, em passos lentos e arrastados.)
ELA (após um longo silêncio; tom seco, como se se obrigasse a falar): Ginásios e torradas. Tens mesmo uma vida nova. (Pausa breve.) E que mais mudou, nestes nove meses?
ELE (num tom baixo e hesitante, envergonhado): Já não estou com ela.
(ELA olha-o, surpreendida; esboça um breve sorriso de surpresa e incredulidade. ELE evita o seu olhar.)
ELA (também num tom mais baixo, apreensivo): Já não estás com ela?
(ELE abana a cabeça, lentamente, com desânimo; ou talvez vergonha. Ouve-se um estrondo inesperado, talvez devido à queda de um copo; mas ambos mantêm os olhares fixos e absortos, indiferentes.)
ELA (num tom simultaneamente embaraçado e curioso): Quanto tempo viveram juntos, afinal?
ELE (após um longo silêncio): Umas semanas, não sei bem quantas. (Pausa breve.) Nove ou dez, talvez. Ou menos.
ELA (tentando dominar uma súbita indignação, um prenúncio de fúria): Só? (Pausa breve.) Mas porquê? (Pausa breve.) Porquê?
ELE (hesitante): Suponho que nos cansámos. (Pausa breve.) Que me cansei.
(O funcionário surge, de súbito, junto da mesa, surpreendendo-os a ambos. Pousa a torrada e o sumo em frente do homem, com gestos vagarosos, descuidados, e fica a olhá-los, durante alguns instantes; depois afasta-se. Num gesto automático, talvez inconsciente, o homem pega um pedaço de torrada, que tem um aspecto seco e queimado, e dá uma dentada; engole com dificuldade e pousa o pedaço que tinha na mão. A mulher tem estado a olhá-lo, fixamente, acusadora e expectante.)
ELA (irritada e incrédula): Cansaste-te?
(ELE encolhe os ombros, embaraçado. Permanecem em silêncio, afastados e distantes, desconfortáveis.)
ELA (muito tempo mais tarde, quase num murmúrio): Cansaste-te. (E, de súbito ri; uma gargalhada breve e explosiva, ansiosa, libertadora.)
(ELE olha-a e sorri, com tristeza. Bebe um gole de sumo. Volta a pegar um pedaço de torrada, que logo pousa.)
ELA (olhando a chávena de chá que tem à sua frente, vazia.) Acho que vou ver como está a fila. (Não se move, como se pretendesse que ele a contrariasse, impedisse a sua partida.) Mas a manhã já está perdida. (Começa a dobrar o jornal.)
(De súbito, a mulher levanta-se, desajeitada e impulsivamente. ELE fica a olhá-la, vendo-a afastar-se em direcção ao balcão do café; paga, pergunta qualquer coisa ao funcionário, que primeiro encolhe os ombros e depois abana a cabeça. Depois, regressa à mesa. Olham-se durante um instante, desconfortáveis. Ele permanece sentado, ela de pé. Como se estivessem ansiosos por se despedirem mas não quisessem tomar a iniciativa; ou como se, secretamente, não se quisessem despedir mas temessem que o outro o percebesse.)
ELE (num tom sonhador, sem a olhar): Estava a olhar para ti e a pensar que… sei lá. (Pausa breve.) A pensar disparates.
(ELE olha-a, como se procurasse um incentivo a continuar; ELA, contudo, mantém-se rígida e inexpressiva.)
ELE (tímido e inseguro): Não sei. Acho que se não nos conhecêssemos e estivéssemos os dois aqui ao mesmo tempo, neste café. (Pausa breve.) Assim como estamos mas cada um sentado na sua mesa, cada um distraído com os seus problemas e pensamentos, sem nada a unir-nos. Sem um passado comum. Percebes? Perfeitamente desconhecidos e anónimos.  
(ELA agora olha-o, curiosa.)
ELE (hesitante): Se isso acontecesse. (Pausa breve.) Acho que não conseguiria tirar os olhos de ti. (Pausa longa.) Acho que acabaria por me levantar e meter conversa. Tentar.
(ELA sorri, contrariada. Depois, arruma a cadeira a que está apoiada, a mesma onde antes estivera sentada. Olha-o, em silêncio.)
ELA (num tom provocatório, quase amigável): E eu talvez correspondesse ao teu interesse. (Pausa breve.) Mas depois, eventualmente, acabavas por te cansar. (Sorri.) Outra vez.
(ELE encolhe-se quase imperceptivelmente, como se tivesse sido atingido por um golpe traiçoeiro, como se estivesse a ser atacado.)
ELA (quase jovial): Vou andando. (Olham-se, embaraçados e constrangidos; ELA hesita durante um instante; depois, avança um passo.) Gostei de te ver.
(ELA caminha com alguma ansiedade, subitamente apressada; passa mesmo junto dele, quase o tocando.)

Novo ebook: Foto sínteses


Devagarinho mas lá avança um novo ebook. Será constituído por uma série de micro-contos originais escritos a partir de trabalhos de cinco fotógrafas surpreendentes:

Cansaço

Uma estória antiga, retirada de um dos livros. Escrita a partir do quadro "Artistin (Marcella)", de Ernst Ludwig Kirchner



1.
Receio que entres inesperadamente na sala e me encontres – de novo – assim: melancólica e distante, quase triste, encavalitada no sofá e enroscada a mim própria, de olhar perdido na janela, no horizonte longínquo, em nada. Porque talvez não te conseguisse mentir – uma vez mais –, quando me perguntasses a origem desta passividade, o motivo deste auto-afastamento (como lhe chamaste na última vez em que discutimos; lembras-te?). Sim, talvez não conseguisse: porque, afinal, mentir-te exige-me um esforço maior, cada vez maior, do que a simples e espontânea admissão da verdade; e não sei – já não sei – se justificas esse esforço, esse empenhamento.
Confesso (por enquanto: apenas a mim própria) que não percebo porque motivo tenho continuado a esforçar-me, a investir em ti e nesta relação; não percebo porque razão tenho insistido em fingir, ou em acreditar. Não percebo mesmo, sou incapaz de entender. Porque a verdade, a tal verdade que talvez te confessasse se entrasses agora aqui e me olhasses com a tua habitual sobranceria e displicência, com a tua habitual falta de atenção, é que estou cansada. Sim, suponho que talvez te falasse do meu cansaço, se entrasses agora, precisamente agora; um cansaço múltiplo e abrangente, caleidoscópico e labiríntico, formado por inúmeros e minúsculos cansaços, por vezes antagónicos, por vezes complementares. E entre eles (nem sequer o mais corrosivo, devo admitir): o cansaço de ti.

2.
Fecho os olhos durante um momento, escutando os ténues sons da rua, indícios vagos de vidas distantes e irrelevantes; um bebé que chora, o riso estridente e desagradável de uma mulher, música num telemóvel; o rumor do trânsito; um grito imperceptível, uma sirene, um avião longínquo; outro riso, também de mulher.
Volto a abrir os olhos: cansada de os ter fechados. Espreito a porta e aguardo, sem ansiedade ou apreensão, sem expectativa: apenas porque é suposto aguardar algo, a cada momento que passa, em cada momento que se vive. Coço distraidamente o interior da coxa, sentindo algum desconforto em tocar a minha própria pele; e penso em me levantar do sofá e caminhar até à janela, olhar o avião que – ainda – passa algures, quase imperceptível; ou ir à cozinha, beber água. Caminhar um pouco pelo apartamento; e regressar ao ponto de partida, regressar aqui, ao meu sofá: depois de gastar – consumir; preencher – mais alguns minutos de vida.
Sinto, com surpresa, uma inesperada e difusa vontade de te ver e de te olhar e de te falar e – até – de te sorrir: sempre seria – serias – uma distracção, momentânea mas talvez eficaz; porque, afinal, estou tão – tão – cansada de mim própria. Mas o desejo (ou o prenúncio de algo que quase chegou a ser um desejo) logo se dissipa, inconsequente e supérfluo; deixando-me ainda mais vazia.

3.
Depois, logo depois, aborreço-me de espreitar a porta. E fecho os olhos: cansada de os ter abertos.