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Apenas de Passagem: Exposição + Ebook
Por agora, fica mais um exemplo.
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(O homem está sentado num dos troncos, numa postura descontraída. Como se assim estivesse desde sempre, como se assim pretendesse continuar indefinidamente.)
DEUS (desinteressado): Que tem de especial?
EU (sem retirar os olhos do homem): Repara no que faz, sempre que se aproxima alguém.
(Ambos o espiamos; uma mulher aproxima-se e passa, apática e distante.)
EU (entusiasmado): Viste?
DEUS (algo agastado): Não. O quê? De que falas?
EU (paciente, talvez um pouco sobranceiro): O sorriso.
DEUS (após uma breve hesitação): Sim, sorri sempre que alguém se aproxima.
EU (excitado): Pois sorri. Mas ninguém repara nele; ninguém vê os sorrisos.
DEUS (olhando o homem com mais atenção, mais interesse): E apesar disso, sorri.
(Mais alguém que se aproxima; ambos nos preparamos para apreciar o novo sorriso do homem, expectantes.)
EU (pensativo): Porque sorrirá?
DEUS (num tom sonhador, que me surpreende): Talvez porque não consiga evitar fazê-lo.
EU (após uma longa pausa): Mas não faz sentido.
DEUS (sorrindo, com tristeza): Sentido? (Olha-me, com curiosidade; penso que irá dizer algo mas percebo a sua hesitação, a sua desistência. Mantém-se em silêncio durante muito tempo, contemplando o horizonte. Depois acrescenta, num tom displicente; ou provocatório?) Talvez seja essa a sua função.
EU (admirado): Sorrir?
DEUS (num tom introspectivo, como se falasse consigo próprio): Sim, sorrir sempre. (Hesita. Embaraçado?) Até que alguém precise desse sorriso.
EU (curioso): Mas que faria esse alguém com o sorriso?
DEUS (olhando-me): Que faria? Corresponder-lhe-ia. (Sorri.) É para isso que servem os sorrisos, para que alguém sorria de volta.
EU (incapaz de sorrir, de inventar um sorriso, de fingi-lo): Ou talvez a motivação seja outra.
(Permanecemos em silêncio; gostaria de corresponder ao seu sorriso mas não consigo fazê-lo.)
DEUS (perscrutador, ignorando o meu momentâneo e despropositado agastamento): Qual?
EU (num tom fantasista): Talvez sorria simplesmente à espera que alguém lhe pergunte por que motivo está a sorrir.
DEUS (surpreendido; verdadeiramente curioso na minha resposta): E que responderia, se alguém perguntasse?
EU (olhando o homem e reparando como a sua expressão é apática e impassível quando não está a sorrir): Não faço ideia. Talvez algo banal, talvez algo genial. Talvez nada.
(Ambos olhamos o homem, estranhando que ninguém se aproxime há algum tempo, que ninguém venha e lhe proporcione uma oportunidade de sorriso.)
DEUS (surpreendendo-me): E se experimentássemos perguntar-lhe?
(Muito tempo depois, sou eu o primeiro a levantar-me.)
Obrigado, Gato
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Apenas de Passagem: Exposição + Ebook
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EU (olhando-o com curiosidade, perguntando-me se estará mesmo interessado em saber): Os seus sonhos.
(Continuamos a avançar, em silêncio. A mulher parece ter alguma dificuldade em sustentar o peso do saco que transporta às costas; mas ninguém se aproxima para a ajudar, ninguém a olha sequer.)
DEUS (olhando o saco): Não percebo. Que queres dizer com isso?
(Apetece-me sorrir; mas não o faço.)
EU (num tom sério, pedagógico; talvez um pouco condescendente): É uma tradição antiga que existe nalgumas aldeias desta parte do país; quando aprendem a escrever, as crianças são encorajadas a registar em pedaços de papel aquilo que mais desejam, aquilo com que sonham. (Pausa breve.) Aquilo que esperam do futuro.
DEUS (interrompendo, ligeiramente agastado): Para quê?
EU (encolhendo os ombros, num tom algo displicente): Quem sabe, talvez apenas para exercitarem a escrita. Mas há crianças que vão crescendo e mantêm o hábito. (Incapaz de contrariar o tom provocatório.) Talvez apenas para que com a passagem do tempo e a dureza da vida não esqueçam aquilo que é importante. O que as motiva a viver.
DEUS (agastado): As pessoas não vivem apenas para concretizar os seus sonhos, as suas fantasias.
EU (num tom desinteressado): Talvez não. Por isso é que para muitas pessoas vai bastando sonhar; vão simplesmente acumulando sonhos, esquecendo-se ou desinteressando-se de os concretizar. (Pausa breve.) Basta a possibilidade.
DEUS (após uma hesitação, apontando a mulher que se afasta lentamente): Como ela?
EU (encolhendo os ombros): Há pessoas que acreditam que aquilo que possuem de mais precioso nas suas vidas são os sonhos que foram acumulando, tudo aquilo que ambicionaram e desejaram para si mas não alcançaram. (Observando a marcha da mulher.) E ainda persiste a tradição de oferecer os sonhos de toda uma vida, simbolicamente guardados em pedaços de papel, ao primeiro neto que nasce na família.
DEUS (ligeiramente comovido): Uma espécie de herança, de passagem de testemunho.
EU (num tom sério, quase solene): Aquilo que de mais precioso possuem. A possibilidade de uma vida melhor.
(Ficamos a ver a mulher afastar-se, arrastando-se com esforço. Quando acaba de cruzar a praça, imobiliza-se durante um momento, talvez para se orientar.)
DEUS (impressionado): E acumulou todos estes sonhos? (Abanando a cabeça, ligeiramente triste.) Quilos e quilos de sonhos.
(Observamos a mulher, atentos e respeitosos, certos de que em breve seguirá pela travessa que conduz à maternidade, onde o recém-nascido a aguardará. Mas quando finalmente retoma a caminhada, a mulher avança na direcção do mercado, onde entra sem hesitação. Deus olha-me, confuso e interrogador; e quase se indigna, quando depara com o meu sorriso e percebe a sua ironia. Quando se descobre enganado.)
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13 de Junho, 17h30 | Auditório APEL
Leituras Cruzadas - Fernando Pinto do Amaral e Paulo Kellerman
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