Paulo Kellerman é autor de sete peças, duas óperas e uma curta-metragem. Publicou vinte e dois livros em diversos géneros literários. Concebeu, coordenou ou participou em projectos com dezenas de criadores das mais diversas áreas artísticas. É responsável pelo projecto Fotografar Palavras, que desde 2016 envolveu mais de 330 criadores (fotógrafos e escritores) de 35 países, e foi co-fundador da editora Minimalista. Recebeu o Grande Prémio do Conto da Associação Portuguesa de Escritores.
# 75: Somos todos manequins
DEUS (admirado): Um manequim?
DEUS (curioso): E que fizeste com ele?
EU (nostálgico): Coloquei-o ao fundo do quarto, junto da janela; como se fosse uma planta frágil que precisasse de luz e de brisa, da ilusão de liberdade.
DEUS (insistente): Mas para que querias um manequim no quarto?
EU (simultaneamente enfático e sonhador): Para me acordar.
DEUS (desconcertado): Não percebo.
EU (pensativo, um pouco hesitante): Sentia-me acessório e irrelevante, dispensável. (Pausa breve.) As pessoas passavam por mim como se eu fosse invisível, como se não existisse; ou existisse mas não tivesse qualquer substância, qualquer interesse; como se fosse apenas parte do cenário, uma peculiar e inexplicável agregação de átomos, sem objectivo nem utilidade.
DEUS (num murmúrio): Um manequim.
EU (distante e abstraído, entregue à recordação): Todos os dias, antes de adormecer, olhava o perfil do manequim recortado pela frágil escuridão vinda da rua e tentava sentir o que imaginava que todas as pessoas sentiam em relação a mim. (Pausa breve.) E logo depois, de manhã, quando acordava, lá estava ele, imutável e discreto, um pouco sombrio, irrelevante e deslocado.
DEUS (algo condescendente): Indiferente.
EU (ignorando-o): Olhava o manequim enquanto me vestia, lento e abstraído, e perguntava a mim próprio: que poderei fazer hoje para que os outros não me vejam como um manequim, parte do cenário? Ou melhor: para que me vejam, simplesmente? Que posso fazer para que a minha vida não seja estática e redundante, como a existência deste manequim?
(Permanecemos em silêncio, sentados na esplanada quase vazia. Do outro lado da rua, uma mulher de olhar indiferente e gestos cansados continua a despir metodicamente os manequins em exibição numa montra; as peças de roupa vão-se amontoando no chão, desordenadas e irrelevantes, enquanto a nudez artificial dos manequins é exposta.)
EU (abstraindo-me dos manequins e incapaz de desviar o olhar da funcionária da loja que os vai despindo): Foi numa dessas manhãs, olhando o manequim silencioso, que comecei a desconfiar que talvez todas as vidas fossem redundantes e estáticas. (Pausa breve.) Todas e não apenas a minha.
(Aguardo o seu comentário, que pressinto; que desejo: apetece-me ser confrontado. Discutir. Mas ele ignora-me.)
EU (subitamente incomodado; arrependido de ter cedido à volúpia da confissão; mas incapaz de me conter): Pressenti, também, que talvez apenas varie o grau de empenho de cada um em fingir que não é assim. Percebi que não interessa que a vida seja interessante ou não, basta que pareça interessante.
(Sorrio, tentando disfarçar o incómodo. Ele permanece em silêncio, pensativo. Ou será que nem está a ouvir-me?)
EU (num tom forçadamente aligeirado): Somos todos manequins, afinal. O que muda é a roupa que cada um usa; o disfarce. (Pausa breve.) Camadas e camadas de subterfúgio mas, lá no fundo, permanece apenas madeira descolorida e grosseira, quase, quase apodrecida.
(A funcionária da loja desapareceu, levando consigo toda a roupa; apenas os manequins permanecem na montra, extáticos e um pouco obscenos. Há pessoas a passar pelo passeio, apressadas e melancólicas, tristes; mas nenhuma delas olha os manequins.)