# 29: Auscultadores

1.
Lá estavas a examinar os livros, um pouco curiosa, um pouco enfadada; olhavas demoradamente, por vezes pegavas um, abrias ao acaso, lias umas frases, espreitavas a etiqueta do preço, pousavas. Não parecias procurar algo em particular; talvez estivesses apenas a matar tempo, ou a aguardar a chegada de alguém; ou talvez esperasses ser surpreendida por algum dos livros, talvez esperasses ser subitamente arrebatada por umas linhas lidas ao acaso, sussurradas pelo destino.
Fui olhando, com curiosidade; espiando. Começando a gostar de ti.

2.
Muitas pessoas entre nós, conversas e risos: e tu completamente indiferente, alheada; mesmo quando alguém passava junto de ti e te tocava, não olhavas. Pegavas nos livros, simplesmente; sem reverência, sem aquela devoção algo aflitiva que alguns desesperados dedicam aos livros. Por vezes, esticavas um braço para pegar um livro mais distante e a manga da T-Shirt subia, revelando uma pequena tatuagem. Vi-a diversas vezes, sentindo-me desagradado: surpreende-me que mulheres bonitas deteriorem o seu corpo com manchas de tinta, com pedaços de latão, que escondam metade do rosto com óculos de sol ridículos, que segurem um cigarro entre os dedos convencidas de que isso é um gesto de sedução. Estive quase a afastar-me, decepcionado, quase vencido pelos meus preconceitos. Mas entretanto percebi que te afastavas da zona da literatura, levando um livro na mão. E segui-te, impelido pela curiosidade de descobrir qual fora, afinal, a tua escolha.

3.
Dirigiste-te para a zona da música, onde caminhaste entre os expositores, pegaste alguns CD’s, espreitaste as promoções. Consegui então espreitar a capa do livro que pegavas; e não me decepcionaste. De novo curioso, de novo seduzido, estudei-te com mais atenção; a saia solta, revelando joelhos magros; a T-Shirt justa, delineando os seios; um cinto coberto de brilhantes; pulseiras, anéis; elegância cuidada, sedução discreta. Fui imaginando um quarto vasto e elegante, coberto de sol: e tu nua, escolhendo cada peça de roupa, cada acessório; preparando-te para enfrentares o mundo, discreta e bela. Inacessível.
Seleccionaste um CD e procuraste um posto de escuta, onde permaneceste alguns minutos a ouvir o teu CD, dançando quase imperceptivelmente. Depois, juntaste-o ao livro e afastaste-te em direcção à área de pagamento. Saia a balouçar, tilintar de pulseiras, cabeça erguida, passos firmes. Fiquei a olhar-te, enquanto te afastavas: memorizando o teu corpo. Despedindo-me.

4.
Regressei ao posto de escuta que ocuparas, onde a tua selecção ainda estava activa; fiquei a ouvir, sentindo a volúpia de estar a ser tocado por um objecto que acabara de ser tocado por ti. E aí permaneci muito tempo, sentindo-te através dos auscultadores, tocando-te (recebendo o teu toque) através dos auscultadores. Pensando que há sempre intermediários, há sempre mediadores que nos unem mas, simultaneamente, impedem a entrega total; porque tudo o que nos aproxima de alguém pode representar, também, uma última defesa, uma derradeira possibilidade de fuga, de adiamento, de suspensão. Como os corpos: permitem que os usemos para concretizar o amor que sentimos pelo outro, para satisfazer o desejo que sentimos pelo outro; mas são precisamente os corpos que nos impendem de alcançar o amor pleno, o amor além-corpo que secretamente ambicionamos, o amor utópico que deveria existir para além do corpo, da morte, do tempo. O amor infinito.
Apertei os auscultadores contra as orelhas e fechei os olhos. Pensando: tranquiliza-nos saber que nunca seremos totalmente de alguém; mas entristece-nos saber que aqueles que amamos nunca serão totalmente nossos.

5.
Antes tinha fantasias normais. Olhar-te-ia e imaginaria como seria afastar-te o vestido e lamber-te o mamilo, imaginaria a sua textura, o seu sabor, a sua consistência, a sua elasticidade; imaginaria os teus suspiros, os teus gemidos, os teus silêncios; imaginaria que me apertarias contra ti, talvez com violência, talvez com impaciência, talvez com ternura. Imaginaria a suavidade das tuas coxas, a firmeza das tuas nádegas. Imaginaria a cor das tuas cuecas, imaginaria que seriam fáceis de despir. Imaginaria como seriam os teus pêlos púbicos, se seriam incomodativos quando beijasse o teu sexo. Imaginaria como seria foder-te no banco traseiro do meu carro, nas casas de banho deste centro comercial. Imaginaria o teu riso, no fim.
Antes. Agora, cansei-me de fantasias que jamais se concretizarão. Olho alguma mulher bonita, como tu, e imagino como se chamará. Nada mais.

6.
Acabei por comprar o mesmo CD, o mesmo livro.
Não voltei a ouvir o CD e o livro desinteressou-me completamente a partir da vigésima linha. Mas ambos me lembram que tu existes, algures. Uma pessoa concreta. Uma possibilidade: tocámo-nos, por momentos, unidos por uns auscultadores; e poderia ter acontecido, pode sempre acontecer mais qualquer coisa.

# 28: Areia (lado B)

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# 27: Areia (lado A)

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# 26: Os gemidos da princesa

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# 25: Outras felicidades

1.
Posso, finalmente, fechar os olhos. A fraca luz amarelada que assombrava o quarto desaparece; agora, perante mim, dentro de mim, apenas há escuridão. Sinto o conforto do nada, da ausência. Mas, por nenhum motivo lógico, absurdamente, surge-me um pensamento inesperado; penso: a escuridão é o negro; e o negro não é a ausência de cor; o negro é a sobreposição de todas as cores. Penso: o negro não é o vazio; e a totalidade.
Não sei por que motivo penso isto, de onde vem; mas no exacto momento em que consciencializo este pensamento, algo estranho, inesperado, acontece. Na escuridão, surge uma luz. Um pontinho de branquidão, que cresce e cresce e cresce. Num instante, a escuridão transforma-se numa brancura insuportável. E tudo o que posso fazer é abrir os olhos. Fugir: da ausência.
Acolhe-me a luz amarela. Forço-me a manter os olhos abertos. Sinto medo. Incompreensão. Dúvida. E um desejo incómodo, inconscientemente consciente, de experimentar de novo. Vontade de fechar os olhos: e saborear a volúpia da luz, do nada. Mas não o faço. Adio. Decido: deixar-me-ei embriagar de desejo, de vontade, de expectativa. Saberei esperar.
Entretanto, ele continua a ressonar. E não me sinto incomodada.

2.
Levanto-me, com cuidado. Caminho, em silêncio, ainda sem saber onde vou, onde quero estar; acompanhada por uma sombra disforme, sentindo a sua presença, sentindo-me menos só. Paro junto à porta, indecisa. E durante alguns instantes, ouço o ressonar monótono. Imagino: e se os ressonares dos homens forem, na verdade, uma linguagem secreta, dirigida a seres secretos, com objectivos secretos, com potencialidades secretas? Um modo de comunicar com os anjos, por exemplo. Diálogos pedagógicos, uma forma simples de cada humano comunicar com o seu anjo da guarda e, assim, tentar resolver problemas quotidianos. Porque não? Sorrio. Agrada-me esta ideia disparatada. E tento imaginar de que se lamentará ele; mas, depois penso: não, não quero saber, não me interessa. (Será que ele já não me interessa?)
Afasto-me silenciosamente, dou por mim na cozinha. Sento-me à mesa, como fazem as mulheres infelizes nos filmes americanos. Mas não fumo. Prefiro beber leite gelado, por uma palhinha. Se tivesse uma guitarra, tocava-a; se tivesse uma piscina, nadava-a; se tivesse um bolo de chocolate, comia-o; se tivesse uma flor, cheirava-a; se tivesse um balancé, usava-o; se tivesse um espelho, sorria-lhe. Penso: tanto que me falta. Penso: quando conseguir dormir, ressonarei com o meu anjo e pedir-lhe-ei tudo isto. Pequenas banalidades, grandes prazeres. Balancés e bolos de chocolate e guitarras. Peço pouco, eu.
Não me sinto só, acompanha-me o leite que vou bebendo. Mas há, também, a minha sombra, que se vai movendo langorosamente; e o cheiro do meu corpo, que me excita um pouco. Descubro, com alguma surpresa: mesmo que desejasse, jamais conseguiria estar sozinha, completamente sozinha. E assusto-me um pouco, incomoda-me esta falta de privacidade.
Continuo a beber leite. Tentando afogar as dúvidas, os medos, as contradições. À espera.

3.
Sinto os segundos passarem. Quase os consigo ver, aproximando-se, um após outro. Todos em filinha. Tímidos. Desinteressados. Seguindo a sua rotina milenar: cada um chega, toca-me, entrega-me a sua carga (hoje, trazem-me serenidade) e afasta-se. Nunca se despedem. E por mais que me esforce, sou incapaz de sentir saudades dos que partiram; ou curiosidade, pelos que ainda chegarão. Já não há surpresa, apenas cansaço.
De repente, sinto-me saturada do sabor do leite. Levanto-me, lavo o copo; aprecio a carícia da água fria nas mãos, o contacto líquido na pele. Deixo-a correr, prolongo. Depois, volto a sentar-me, forço o olhar a vaguear pela cozinha. Fixo-me nos azulejos brancos, conto-os, procuro imperfeições, imagino-os cobertos por desenhos de criança. Toco-os, primeiro com a ponta dos dedos, depois com a face. Sinto-me tonta; e gosto. Depois, canso-me.
Decido: apetece-me a varanda. E já cá estou, olhando a noite. Procuro janelas iluminadas, não encontro. E uma estranha tristeza invade-me, por não ter com quem partilhar esta noite. Concentro-me, tentando escutar os murmúrios dos casais que se amam, que se fodem, por esses quartos escuros, nesses sofás iluminados por explosões de cor da televisão silenciosa, nas bancadas de cozinha, ao lado dos microondas e das torradeiras. Mas não consigo ouvir nada. Penso: por estes dias, já ninguém faz amor; demasiada preguiça, talvez cansaço; indiferença; doenças fingidas, depois confessadas ao anjo de serviço através de envergonhados ressonares.
Conto estrelas. E imagino-me a tocá-las, agarrá-las, acariciá-las. E cheirá-las. Pergunto-me: qual será o cheiro das estrelas? Penso nisso. E sinto o vento fresco despegar-se da noite, aproximar-se, tocar-me. Enrolar-me o cabelo. Acariciar-me a ponta do nariz. Segredar-me aos ouvidos.
Apetece-me música. Procuro a lua e encontro-a lá longe, tímida, discreta, cansada. Penso: a lua está com o período. Mesmo assim, não resisto; peço: canta-me. E ela canta.
Sinto-me tão parva. E não é mau, não é nada mau.

4.
Agora, há uma janela iluminada. Ainda tento imaginar quem estará para além daquelas paredes, fantasiar um corpo, uma insónia, uma dor, um sorriso. Mas não sou capaz. Não me interessam fantasias, devaneios. Não me apetecem fingimentos. Sorrio, na escuridão. E digo a mim própria, em voz baixa, baixinha, em voz secreta, só minha: não quero mais masturbações.
E saio da varanda, entro na cozinha aos saltinhos. Tão feliz.
Sinto os pés nos mosaicos, a carne quente acariciando o frio, aquecendo o frio. Sinto volúpia, excitação. O sangue corre-me nas veias com frenesim, eufórico e descontrolado. Descontrolando-me. Querendo sair, soltar-se. E voar.
É o que me apetece. É o que farei, depois de lhe falar.

5.
Regresso ao quarto. Luz amarela, lutando contra as sombras; ressonar, lutando contra o silêncio. E o tempo imobilizado, à espera. Aproximo-me, cautelosa. Tentando convencer-me: sou um fantasma. E é em voz de fantasma que lhe falo. Em silêncio, digo-lhe que.

6.
Vou partir, amor.
Fizeste-me tão feliz. Correste pelo mundo e agarraste todos os pedaços de felicidade que foste encontrando, coleccionando, acumulando; guardaste-os, para depois me ofereceres cada um deles, embrulhado em papel de sorriso, embelezado por laços de carícias. Deste-me felicidade e eu recebi-a. Nem te agradecia; mas tu vias o meu sorriso e dizias: pareces o arco-íris. E eu abraçava-te.
Fui feliz contigo. Mas tenta perceber.
Agora, apetecem-me outras felicidades. Outras, diferentes. Aquelas que ainda não conheço. Aquelas que tu também não conheces e, por isso, apenas por isso, não me podes oferecer. Percebes? Apetece-me experimentar felicidades, aprender felicidades, descobrir felicidades, trocar felicidades, inventar felicidades.
Fizeste-me feliz. Mas, agora, quero mais.

7.
Abro a janela, um pouco. O ar fresco vem e inunda-me, fazendo-me sentir fria, por dentro. Apetece-me fechar os olhos mas temo a luz da escuridão. Penso: se os fechar, não conseguirei voltar a abri-los. Tento concentrar-me no silêncio, procurando descobrir sons; mas o ressonar é omnipotente, engole todas as possibilidades de ruído, todos os possíveis testemunhos de vida, de outras vidas, que possam existir (mas duvido que existam, neste momento duvido) para além desta janela. Sinto que o egoísmo me corrói, sei que a minha libertação será a sua condenação. Mas nem procuro soluções, sei que não existem. Tudo o que posso fazer é engolir a dor, guardá-la dentro de mim, aconchegá-la (tratá-la bem: para que não me incomode). Seguir o meu destino, selando o seu.
Sinto a brisa da noite. Procuro outros vestígios de companhia; e encontro: a minha sombra, esperando-me; o meu cheiro, intenso; o ar que expiro, os ruídos do meu estômago, a saliva que engulo. Sinto-me menos só, agora. E seguindo um impulso que sou incapaz de contrariar, fecho os olhos; quando a brancura começa a invadir-me narcoticamente, liberto-me, esqueço-me; grito-lhe, silenciosamente.

8.
Vê se percebes, amor.
Eu quero voar. Quero fechar os olhos, abrir os braços e voar, subir e subir e subir, atravessar nuvens e sentir a sua humidade na ponta da língua, trespassar o azul do céu com o azul dos meus olhos, e continuar, sempre, por aí acima. Quero sentar-me na lua e sentir o cheiro das estrelas. Quero ser engolida por um buraco negro, ser perseguida por uma estrela cadente. Quero espreitar o interior dos satélites, dançar nas suas asas.
E depois, regressar. Conhecer os mares, nadá-los, aprender os seus fundos. Perseguir peixes, ser engolida por uma baleia e adormecer no seu estômago. Descobrir grutas subterrâneas, desenterrar tesouros fabulosos. Encontrar o equivalente masculino das sereias (tritões, não é?) e fazer amor sobre as algas, vez após vez. Ou simplesmente: respirar dentro de água.
Quero deitar-me na erva fofa de uma campo verde e fechar os olhos, ouvir o sopro do vento acariciar as árvores; ser engolida pela escuridão, respirar devagarinho, saborear a paz; e sentir que o tempo vai parando: como se o mundo esperasse por mim. Percebes isto? Sentir que o mundo espera por mim. Sentir que sou tão importante para o mundo que ele espera por mim.
E depois, agradecer-lhe: devorando-o. Sei lá: subir árvores, andar de bicicleta, roubar nêsperas e atirar os caroços a quem calhar, colher flores, aprender a linguagem secreta dos gatos, fazer pão e comê-lo com manteiga, rasgar os livros de que não gosto, tocar violino no cimo de uma montanha, fazer aviões de papel e atirá-los do alto de um farol, escrever poemas eróticos e declamá-los a desconhecidos, colher caracóis nas bermas das estradas e depois libertá-los nos pomares, brincar com bonecas, abordar pessoas desconhecidas e adivinhar-lhes os nomes, caminhar pelos passeios e sorrir a quem passa.
Quero percorrer o mundo, cada centímetro do mundo, e apropriar-me dele, fazê-lo meu. Quero devorar vida, engolir felicidade; e depois, devolvê-la, através dos olhos, a quem amo, a quem um dia odiei. Quero beber a beleza do mundo e dos homens, embriagar-me de beleza, ser beleza. Destilar beleza. E depois, morrer: saciada. Deitar-me novamente na erva fofa do mesmo campo verde e fechar os olhos, ouvir o sopro do vento acariciar as árvores; ser engolida pela escuridão, respirar devagarinho, saborear a paz; e sentir que o tempo vai parando, parou: para sempre.
Percebes, amor?
Quero tão pouco, afinal. Não achas?

9.
Grito-lhe mas ele não ouve. Abro os olhos e contemplo o seu sono. Odeio a sua distância. Levanto-me e caminho até ele, baixo-me, os nossos rostos quase se tocam. Ressona menos, agora. E o ar quente que liberta pelo nariz traz-me o seu cheiro mais secreto, mais meu. Penso: amo-o tanto. Penso: mas não chega.

# 24: Os corpos que desejas

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# 21: As sirenes (2006 Remix)

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# 20: Como nos filmes pornográficos

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# 19: O menino que queria subir ao céu

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# 18: Um relógio a tiquetaquear

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# 17: Muito pouco, quase nada

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# 16: Morning sun

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# 15: Ai

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# 14: O último sorriso da minha mãe

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# 13: The sun rising

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# 12: Amanhã, quando me tocares

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# 11: Gostava que me fizesses sorrir

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# 10: Os azuis do céu

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# 9: Repetição de repetições

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# 8: Um sorriso que me faz vacilar

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# 7: Arrotos da alma

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# 6: O sorriso do teu marido

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