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LANÇAMENTO DO CONTOS DE ALGIBEIRA no dia 6 DE DEZEMBRO, 21h30min, NO FRÁGIL, em LISBOA.

Esboço # 15 (Extended vocal remix)

MULHER: Tenho uma amiga que diz que se sente como uma empregada de pensão. O marido chega a casa, dá-lhe um beijo na face e depois fica por ali, sem saber bem o que fazer. É capaz de espreitar o frigorífico ou pegar numa banana e ficar a comê-la enquanto olha pela janela. Mas nada mais. Estão ali, juntos, só há uns vinte segundos e o silêncio já se tornou agressivo; e ela, para aliviar o ambiente, para espevitar o silêncio, pergunta-lhe que tal foi o dia, como correu isto ou aquilo. Na verdade, confessou-me ela, não está especialmente interessada em saber; e claro que ele não está muito motivado para contar. Mas lá vai dizendo qualquer coisa, sem nem sequer disfarçar o enfado com que o faz. Frases curtas, monossílabos, nada de muito elaborado. E ela de volta dos tomates ou do peixe, sem grande vontade de estar ali na cozinha, que é onde está quase sempre, mas também sem nenhuma vontade especial de estar noutro sítio qualquer. (Pausa breve. Leva a chávena de chá à boca.) E depois, regressa o silêncio. Diz que ele não faz esforço nenhum e ela também se cansa depressa. Os dois parados, distraídos com o objecto que calhem ter na mão. Então, finalmente, ele lá desaparece. Enfia-se no escritório e liga o computador. Da cozinha, ela ouve o zunido enquanto vai descascando batatas. Diz que já não tem nenhuma curiosidade de saber que faz ele ao computador, como se distrai, como gasta o seu tempo. (Pausa breve.) Ela lá continua a cozinhar, sem vontade mas também sem desagrado, a sentir-se como uma empregada do marido. Põe a mesa, espreita a televisão. Depois chama-o. Comem em silêncio, a ouvir o noticiário. Diz que nunca comentam as notícias, ouvem e pronto. Ele come depressa, com sofreguidão. A minha amiga achava que era com gosto mas depois percebeu que era só avidez; e diz que o marido nunca lhe elogiou os cozinhados. Come, se gosta; deixa, se não lhe apetece. Comentários, nada. (Pausa breve.) Ficam para ali, calados. Depois, dá o intervalo do noticiário e ele levanta-se. E ela, a empregada da pensão, lá fica a arrumar; ouve a segunda parte do noticiário, que é quando dão as notícias menos idiotas, desliga a televisão. Limpa o fogão, liga a máquina da louça. Às vezes liga a máquina da roupa, em simultâneo. E fica a fumar na varanda, a olhar para os carros que passam. Diz que se pergunta algumas vezes se algum daqueles carros pararia para lhe dar boleia. (Pausa breve.) Pensa em mudar de vida, às vezes. Fugir. Mas fugir para onde? (Pausa breve.) E que fazer, quando chegar lá?
(Todos se empenham em não olhar para ninguém, em evitar o olhar de alguém.)
MULHER: Um dia, perguntou-me se comigo era parecido. (Pausa breve.) Desatei a rir. (Sorri. Bebe mais um gole de chá.)
(O MARIDO agita-se quase imperceptivelmente mas com visível desconforto.)
MULHER (após um momento de silêncio): Diz ela que o que lhe custa mais é que o marido já nem se esforce em fingir interesse. As pessoas pensam que surpreenderem alguém a fingir é uma desgraça, uma falta de respeito, um motivo para choros e separações; mas ela não concorda. Acha que a partir de certa altura a existência de fingimento é uma espécie de revelação de empenho, de preocupação pelos sentimentos do outro. (Pausa breve.) Claro que surge sempre aquele momento em que já não há surpresa, em que as pequenas rotinas se vão repetindo rotineiramente, em que a previsibilidade se torna algo quase confortável. Mas se alguém se der ao trabalhar de fingir que poderá não ser sempre assim, ou até de fingir que mesmo que seja assim para sempre não faz mal, bom, diz ela, é porque merecemos o esforço; e que bem que isso saberia, que novidade seria. (Pausa breve.) Até porque a alternativa é continuar como empregada de pensão para sempre.
MARIDO (dirigindo-se à MULHER, num tom quase rude): E porque achas que a tua amiga merece mais que isso?
(A MULHER olha o MARIDO, pela primeira vez. Sorri, muito levemente. Depois afasta o olhar, ignorando-o.)
MULHER (dirigindo-se ao AMIGO): Sabes onde estávamos, quando ela me contou estas coisas?
(O AMIGO abana a cabeça, sem olhar a MULHER.)
MULHER: Na cozinha. (Ri.)
(O AMIGO sorri, desconfortável.)
MULHER: Ela ia falando e eu acenava com a cabeça. Descascava umas cebolas e assim, para uma sopa. E ela falava e falava e falava.
AMIGO: Precisava de atenção, de uma audiência.
MULHER: E não precisamos todos? (Pausa breve.) Deixei-a falar, até se cansar. Tentando perceber, tentando identificar-me com o que ouvia; ou evitando identificar-me, não sei. Como alguém que vai ao teatro e está ali na sombra, a escutar, assimilando. (Pausa breve.) E depois, sabes o que fizemos?
(Toca um telemóvel; o AMIGO retira-o do bolso e fica a olhar para ele, sem contrariedade nem excitação; esperando, simplesmente. A MULHER olha-o com curiosidade, o MARIDO também; depois acende um novo cigarro e olha a nuvem de fumo a subir. O telemóvel cessa de tocar mas o AMIGO continua a olhá-lo durante uns segundos; depois arruma-o no bolso.)
MULHER (dirigindo-se ao AMIGO): Vimos televisão. (Breve pausa.) Em silêncio.
AMIGO (com alguma timidez): Não tinham nada para dizer.
MULHER: Não tínhamos nada novo para dizer.
AMIGO: Por vezes, sentimos uma vontade de falar violenta; não é? Precisamos de nos ouvir falar, para confirmar que estamos vivos, que existimos, que ocupamos um espaço e um tempo, que fazemos alguma espécie de diferença. (Pausa breve.) Mas noutras alturas optamos pelo silêncio, porque preferimos esquecer que existimos. Preferimos esquecer o que somos.
MULHER: Estás a querer dizer que o problema é não conseguirmos gostar de nós próprios? Apreciar o que somos?
AMIGO (enfrentando o olhar da MULHER): Se calhar o que quero dizer é que todos temos uma necessidade um pouco mórbida de nos sentirmos especiais e únicos. (Pausa breve.) E depois há alturas da nossa vida, muitas alturas, em que ninguém está particularmente interessado em nos mostrar essa especialidade, ou pior: em que ninguém a vê, a sente. E, um pouco para nos defendermos, deixamos de procurar pessoas que nos mostrem o quanto somos especiais, preocupando-nos apenas em evitar pessoas que nos lembrem o quanto não somos especiais.
(O MARIDO ri com algum desdém, sem erguer o olhar. A MULHER bebe um gole do seu chá.)
AMIGO (com falso entusiasmo): Transformamos os outros em espelhos, é o que é. Olhamos alguém com esperança que esse alguém reflicta aquilo que acreditamos ter de melhor; mas se o que o outro reflecte é menos agradável, a culpa só pode ser do espelho. (Sorri, com algum desconforto.) Acreditamos, ou queremos acreditar, ou fingimos acreditar, que a nossa imagem nunca é má, não pode ser má; quem a reflecte é que a distorce.
(Ninguém se olha. Silêncio longo e opressivo.)
MULHER (em tom meditativo): E por isso receamos, tantas vezes, olhar os outros: com medo de nos encontrarmos a nós próprios. (Pausa breve.) E de não gostarmos do que encontramos.
AMIGO (quase triste, cabisbaixo): Não olhamos para não nos encontrarmos. E não gostamos de ser olhados, para que ninguém nos culpe pelo que possa encontrar.
MARIDO (com alguma indiferença): Então, quem tem sorte são os cegos. Não é?
(A MULHER e o AMIGO olham o MARIDO, com algum desagrado, um pouco surpreendidos. Pouco depois, e quase em simultâneo, começam a rir.)

Esboço # 16

– E depois?
– Uma noite estávamos no carro, de regresso de um sítio qualquer, de um restaurante ou assim, nada de especial: os dois calados, com pressa de chegar a casa, com vontade de dormir, de encerrar o dia e esperar pelo próximo. Íamos em silêncio, talvez um pouco distantes, cada um a pensar nas suas banalidades secretas e mesquinhas e irrelevantes; eu a conduzir, ela a olhar pela janela; carros a ultrapassarem-nos, camiões muito iluminados por todo o lado, semáforos intermitentes; o cheiro do perfume dela ainda muito intenso, quase desagradável. Não estávamos chateados ou amuados ou indispostos: apenas sem vontade de partilhar fosse o que fosse, de falar ou ser ouvidos, de pensar alto, de verbalizar sentimentos, estados de espírito, sensações insignificantes.
– Mas confortáveis.
– Sim, bastante. E como o rádio estava ligado, baixinho mas perceptível, havia música a preencher o espaço entre nós. Percebes? A acompanhar-nos. De certo modo, a unir-nos e a alienar-nos, em simultâneo.
– Isso acontece com toda a gente. Há sempre alguém que liga o rádio; que tenta desligar o silêncio.
– Então, íamos ali atrás de um camião vagaroso, no rádio uma música um bocado irritante mas que ela ia a assobiar, baixinho. Pressa de chegar, de estar noutro lado. E dei por mim a pensar num pormenor em que já reparara antes, noutras noites silenciosas, mas a que nunca dera grande importância.
– Qual?
– Sempre que entrávamos no carro, a primeira coisa que ela fazia, depois de apertar o cinto, era ligar o rádio. Sempre. Mesmo que estivéssemos a conversar ou a rir ou chateados ou com dor de cabeça. E de repente, percebi porquê. Percebi, simplesmente: sem que estivesse à procura de um explicação, sem sequer suspeitar que havia uma explicação, uma necessidade de explicação. Percebi.
– Porque se sentia desconfortável. E precisava de preencher o silêncio.
– Sim. Enchê-lo. Disfarçá-lo.
– Desligá-lo.
– Isso: desligar a intimidade. A proximidade.
– E como te sentiste, perante essa descoberta? Perceberes que a tua mulher não tinha nada para te dizer, não se sentia confortável na tua presença: ao ponto de precisar de preencher o silêncio com música, com vozes estranhas, com o barulho da publicidade. O que sentiste?
– Fiquei magoado, claro; senti-me enganado e despeitado, atraiçoado. Mas havia outro sentimento que se sobrepunha ao ressentimento, suplantando a dor. Que prevalecia.
– Alívio. Porque sentias o mesmo: também não tinhas nada para lhe dizer, e incomodava-te a obrigação de partilhar com ela o vazio, de assumir o silêncio; de enfrentar o fracasso evidente da vossa relação. Alívio por perceberes que a culpa não era apenas tua.
– Sim: divisão da culpa. Percebi, naquela noite escura, enquanto olhava para a traseira do camião vagaroso e aquele assobio alienado, indisposto com o perfume dela, que o problema não era apenas meu; que, afinal, sentíamos o mesmo, apesar de não sermos capazes de falar sobre isso. De não querermos falar sobre isso.
– E o rádio proporcionava-vos um adiamento. Podiam fingir que estavam concentrados na música, a partilhar um gosto comum, uma cumplicidade; confortáveis. Até podiam fingir acreditar que, de certa forma, havia ali uma intimidade agradável, um salutar à-vontade com a presença do outro, com o silêncio do outro.
– Quando o que acontecia, na realidade, é que tentávamos esquecer a presença do outro.
– Tentavam. E conseguiam?
(Mas ela entrou na sala, nesse momento. E eles ficaram a olhá-la, em silêncio.)

Esboço # 15

Chegas com o rosto cansado e abatido; beijas-me a face, mesmo junto aos lábios, por vezes sorris. Ficas uns segundos a olhar para mim, como se não soubesses que fazer; depois lamentas-te de qualquer coisa, sem grande convicção; não perguntas como foi o meu dia mas escutas-me, sem me olhares, enquanto vou falando. Inevitavelmente, canso-me do monólogo: de me ouvir, também de te importunar; e calo-me; o silêncio envolve-nos, agressivo.
Então, afastas-te com passos lentos e arrastados; espreitas o quarto do miúdo, vais à casa de banho. Por fim, sentas-te em frente do computador: e desapareces.
Continuo a preparar o jantar, temperando alface ou desfiando bacalhau, provando o arroz. Há alturas em que me pergunto quando terei deixado de ser tua mulher, aceitando resignadamente este papel de empregada de pensão que me atribuíste; mas, confesso, é raro: prefiro espreitar a televisão, distrair-me. E adiar só mais um dia a pergunta, a decisão: até quando?

Esboço # 14

Sim, suponho que terá havido outros sinais, antes; ténues revelações, ou mesmo inconscientes declarações de intenções futuras; talvez. Contudo, é apenas agora, neste preciso momento em que, rotineiramente, te aproximas para me beijar, que percebo. Há algo no teu olhar, um brilho diferente, fulgurante e desafiador, um brilho autêntico e ostensivo que te denuncia: estás apaixonada.
E, no mesmo instante, enquanto te vejo fechar os olhos suavemente, enquanto sinto o breve toque dos teus lábios, aceito a irremediável verdade: sim, estás apaixonada. Um segundo depois, quando já afastas o teu rosto, olhos ainda fechados, já tão distante, não resisto a perguntar-me: por quem?
Mas, na verdade, acho que nem quero saber.

Esboço # 13

Sento-me no sofá e fecho os olhos; respiro devagar, esperando que o corpo se recomponha, acalme; aguardando esse momento mágico em que deixarei de o sentir. Na mente, a repetição lentíssima do funeral, momento após momento; e a recordação do sofrimento que senti, apenas há alguns minutos: intensificando-se.
Abro os olhos. À minha frente, as tuas estantes de livros; centenas e centenas de volumes: o teu orgulho. Sorrio, melancólico: recordando-te na tua poltrona, com um qualquer destes livros nas mãos; e o teu olhar: tão feliz.
Volto a fechar os olhos, de súbito invadido pela tristeza, pela dor; pela revolta, também. E pergunto-me: para quê tanta leitura? Que diferença fez? Pergunto-te, apenas agora, demasiado tarde: Oh pai, não teria sido tão bom se o tempo que gastaste a ler todos estes livros tivesse sido passado comigo?

Esboço # 12

Quando te sentaste ao meu lado, senti o toque acidental do teu braço. Fiquei rígido, talvez um pouquinho ansioso: claro que não há nada mais excitante que um corpo desconhecido; o toque, a possibilidade, a descoberta. E permaneci imóvel, saboreando a tua presença.
O autocarro a avançar, lento; pessoas alheadas e indiferentes. Lá fora: a cidade a deslizar, longínqua. E de repente: começas a chorar; em silêncio, secretamente. Devagar, tão devagar.
Não sei porque o faço: mas estendo a mão e procuro-te.
Mais tarde: largas-me os dedos; depois, levantas-te. Sais: e a cidade continua a deslizar, desinteressada. Levando-te.
Não chegaste a olhar-me.

Esboço # 11

Penumbra e silêncio, o mundo tão distante, indiferente: e uma nova mulher no seu quarto. Estendia a mão, devagar, e tocava: sentindo na ponta dos seus dedos a pele dela.
Depois, despia-a. Devagar, peça a peça; estudava cada pormenor do corpo, com ansiedade e deleite: como se fosse o primeira mulher que via nua perante si. Por vezes acariciava-a, com timidez, quase com reverência; ou aproximava o rosto e observava, atento. Beijava, também: a coxa, o mamilo, o umbigo; mas sem sofreguidão nem impaciência.
Mas quando conhecia detalhadamente o corpo nu e a volúpia da revelação se dissipava, afastava-se delicadamente. Para ele, bastava. O prazer estava, todo, na descoberta de um novo corpo; fodê-lo aborrecê-lo-ia imenso.

Esboço # 10

Foi logo no primeiro dia de férias que, passando os olhos pelas velhas estantes, decidi reler alguns dos livros da minha juventude. Livros de outras férias: amarelecidos e com manchas, cobertos de pó; intocados há tanto tanto tempo.
Fui lendo, dia após dia, livro após livro. Evocando memórias e sensações, revivendo os longínquos dias em que aquelas mesmas linhas me insuflavam de ânimo e sonho, de esperança; de ilusão. Mas agora: apenas nostalgia; e a certeza, chocante, de que o tempo não volta atrás, não pára, não chega.
Os livros de volta às estantes, desordenados. E o Verão: perdido. Gasto.

Esboço # 09

Entro no escritório e digo bom dia; alguém responde, num murmúrio contrariado. Rostos fechados, cabeças cabisbaixas; o silvo dos computadores misturado com os gemidos das cadeiras, com o sussurro das respirações. Ligo o computador e aguardo, sem pressa: mais uma vez, a sensação de que precisa de mais tempo para arrancar, que demora.
No outro dia, senti algo semelhante em relação ao elevador: mais vagaroso, como se estivesse cansado; e também o autoclismo: tanto tempo para encher. Tudo mais demorado; ou serei eu: mais lento em relação à vida? Ou mais impaciente em relação ao mundo?
Com pressa: de quê?

Esboço # 08

Senti algum alívio quando percebi que começavas a desinteressar-te por fazer amor comigo. Já não te aproximavas, não me tocavas, não me beijavas; permanecias no teu canto da cama, imóvel e rígido, respirando devagar; depois: adormecias. E eu ficava um pouco triste; só um pouco, quase nada.
Quando o corpo começou a exigi-lo, experimentei satisfazer-me sozinha. Pensava em ti, fantasiava o teu desempenho; e tocava-me. Na verdade, não te recordava: reinventava-te. De certo modo, continuava a fazer amor contigo; mas de uma forma mais confortável e livre; sim: mais satisfatória.

Esboço # 07

Havia uma actriz que todos elogiavam pela excelência dos seus desempenhos; mas ela estranhava: porque o que louvavam era, afinal, a sua capacidade de fingir, mentir, iludir: de não ser ela própria.
Sim, percebera há muito que a sua vida era um extenso catálogo de fingimentos: para cada circunstância escolhia a personagem adequada e encarnava-a. Actriz a tempo inteiro, na verdade.
Até que, certo dia, apaixonou-se. E disse-lhe: amo-te tanto. Ele encolheu os ombros, indiferente: como poderia adivinhar que ela efectivamente (e talvez pela primeira vez) sentia o que dizia?

Esboço # 06

Estava um pouco assustada, quase apreensiva; havia, também, uma ponta de remorso, a consciência a incomodar. Mas quando, finalmente, entrou no elevador do hotel, sentiu, mais que tudo, excitação.
No quarto, deixou que o seu amante a despisse lentamente, embalado pelo entusiasmo da descoberta de um novo corpo. Depois, fizeram sexo demoradamente, concretizando semanas de fantasias.
Quando terminaram, ele caminha pelo quarto; liga a televisão; pega no telemóvel e fala com alguém do banco. E ela, decepcionada, pensa: se quisesse apenas foder, ficava em casa. Depois, di-lo.

Esboço # 05

Estão num bar, rodeados por fumo e gargalhadas estridentes. Olham-se por acaso e estudam-se mutuamente. Um deles levanta-se, caminha até ao outro. Sorrisos, bebidas partilhadas. O primeiro toque. E o olhar: convidando, aceitando.
Entram no hotel em silêncio, um pouco apressados, tentando dissimular a ânsia. Beijam-se; despem-se; fodem.
Depois: deitados, ainda um pouquinho ofegantes; confortáveis, quase saciados. E alguém pede, num murmúrio: diz que me amas; o outro corresponde, sem embaraço: amo-te. E adormecem, talvez felizes.
Não chegaram a dizer os respectivos nomes.

Esboço # 04

Ouço-os em redor do meu caixão, falando baixinho. Lamentam-se, dizem que é injusto, tão injusto. Ficam calados durante uns instantes, talvez olhando para o chão, talvez perguntando-se que horas serão; e depois repetem: tão injusto.
Alguém diz, pesaroso: teve uma vida simples e monótona, tão altruísta. Ninguém responde: e o silêncio incomodando. Novo lamento: uma vida de sacrifício, para que fossemos felizes. Depois, uma confissão inesperada, quase inaudível: tanto que a amávamos.
E eu no meu caixão, quietinha. Um pouco surpreendida: amavam-me? E só agora é que mo dizem?

Esboço # 03

Dizia ela: apaixonei-me pelo teu sorriso. E eu deslizava a mão pela sua pele, acariciando; em silêncio. Cheiro de sexo, penumbra. E ela a dizer, baixinho: só pensava em ti, no teu sorriso. O seu mamilo, ainda rígido, esmagado contra o meu peito; quase, quase desconfortável. Respirações lentas, preguiçosas. E a sua voz, insistente: o teu sorriso excitava-me tanto. Uma dor nas costas; aborrecimento: já? Ela, repetindo-se: nas imaginas quanto me excitava.
E eu com vontade de perguntar: mas que intimidade se pode ter com um sorriso? E acrescentar: como se faz amor com um sorriso?

Esboço # 02

Caminhava pela rua e, por vezes, espiava os homens que passavam; olhava, dissimuladamente: e imaginava como seria fazer sexo com alguns deles. Uma distracção inócua e inconsequente, talvez apenas uma forma infantil de me conhecer, de me testar. Perguntava-me, quase excitada: como seria? Depois, esquecia.
Fantasiava, portanto. Mas um dia, enquanto desço uma rua movimentada, ocorre-me: afinal, quantos destes homens que observo também me observarão? Quantos espreitarão o meu decote e imaginarão o sabor do meu mamilo? Quantos quase se excitarão comigo?
Nenhum?

Esboço # 01

O elevador pára e entras. Vejo um fulgor de contrariedade no teu rosto, logo depois um sorriso esforçado. Vivemos no mesmo prédio há meses e nunca nos tínhamos cruzado; mas há uma convivência algo mórbida a unir-nos: apenas um andar divide as nossas vidas, insuficiente para impedir vozes, risos, gritos, gemidos de chegarem ao outro lado. Desconhecidos: e íntimos.
Desconforto. Olhares rígidos. Embaraço. Silêncio. E o elevador: tão lento. Claro que não falamos: que poderíamos dizer? Mas há uma dúvida que me angustia: e se te tocasse? Que aconteceria, se cedesse a essa tentação?

# 51: Unidos na separação

1.
Pouso o livro em cima da cama, mesmo junto da tua mão, e fecho os olhos durante um instante. Escuto o silvo da tua respiração, que continua hesitante, contrariada, arrastando-se sem vontade nem objectivo; como a minha. Estou cansada, uma vaga dor de cabeça corrói-me o confortável estado de indiferença e apatia que tem marcado estes dias, forçando-me a um indesejável estado de vigilância, de consciência, de aceitação, recordando-me que tenho de permanecer viva, agir e pensar, sentir.
Abro os olhos, tentando não denunciar a esperança nem a ansiedade que não consigo deixar de acalentar; tentando não sentir, incapaz de não sentir. E procuro-te: mas claro que não te moveste um centímetro, que nada mudou. Continuas a morrer, devagarinho.
Apenas mais uns segundos que passaram: para nada.
Pego no livro e recomeço a leitura, em voz quase murmurada, sem expressão nem vivacidade, apenas pronunciado as palavras, sem as perceber, sem as saborear, sem as sentir. Gastando-as.

2.
Lembras-te?
Sentavas-te junto de mim, recostando-te nas almofadas; aconchegava-me ao teu corpo, segurava o livro contigo; e esperava. Ruído da televisão, distante; um carro que passava mesmo por baixo da janela; um cão a ladrar; a máquina de lavar roupa a estremecer, na cozinha; a mãe na casa de banho, a água a correr. Então, começavas a ler uma das minhas estórias de princesas: e eu escutava, com atenção. Por vezes, ria; interrompia, para perguntar qual o significado de uma palavra – e tu explicavas, quase sempre com paciência; ou pegava a tua mão, quando me assustava. Ias lendo e eu suponho que passava o tempo a perguntar-me quando conseguiria ler as minhas estórias, quanto tempo faltaria para conhecer as letras e perceber os seus segredos, se alguma vez conseguiria ler tão bem como tu.
Escutava-te, sentindo-me tranquila. Muitas das estórias já as conhecia bem, talvez até me aborrecessem um pouco. O que me agradava, afinal, era simplesmente ouvir-te, sentir a tua presença, saborear a tua atenção.
Depois, levantavas-te e arrumavas o livro; puxavas os cobertores, aconchegavas-me; davas-me um beijo na testa, acariciavas-me o cabelo; dizias: vou vestir o pijama, já venho.
E eu ficava à tua espera. Ruído da televisão, distante; um carro que passava mesmo por baixo da janela; um cão a ladrar; a máquina de lavar roupa a estremecer, na cozinha; a mãe na casa de banho, a água a correr. E voltavas sempre; claro que eu já tinha adormecido mas o importante é que voltavas sempre, noite após noite.

3.
A enfermeira entra e olha para os monitores, faz uns ajustes inconsequentes aqui e ali, suponho que apenas para justificar a sua presença. Abre um pouco da janela, numa tentativa impotente de tornar a noite menos sufocante, de dissipar um pouco o calor. Vejo algumas gotas de suor, minúsculas e tão, tão inestéticas, na sua testa, e também no lábio superior; os cabelos estão um pouco desgrenhados, dando-lhe um ar algo selvagem, pouco profissional: e ainda seis horas pela frente, até acabar o seu turno. Não deve vestir nada por baixo da bata, as saliências provocadas pelos mamilos são obscenamente identificáveis sob o tecido. E tem um relógio no pulso direito, lindíssimo; a marca de um anel, identificando-a como casada, talvez feliz. Passa por mim sem me olhar, uma vez mais; a sua indiferença agride-me um pouco, surpreende-me a sua postura ofensiva. Ou será apenas desinteresse?
Uma filha que lê, em voz alta e monótona, ao seu pai moribundo. Patético, certamente. Mas tão difícil, talvez impossível, que é ser não patético.

4.
Lembras-te?
Fizemos um calendário, juntos. Desenhámos os dias, as semanas, os meses. Disseste: quando chegar este dia, já consegues ler. E eu acreditei.
Contava os quadradinhos, que eram muitos. Por vezes, escolhia um livro, pensava: este vai ser o primeiro que vou ler. E depois, mudava de ideias.
Mas duas semanas mais tarde (acho que foram duas semanas), perdi o calendário.

5.
De repente, reparo que o que estou a ler me parece vagamente familiar; e no instante seguinte, percebo que me estou a repetir, que estou há não sei quanto tempo a ler a mesma página. Interrompo a leitura, assustada. E um medo inesperado trespassa-me, vertiginosamente: e se a minha leitura, a minha presença, está, simplesmente, a aborrecer-te, a incomodar-te, a importunar-te?
Começo a chorar, histericamente. Olho em volta, sentindo-me perdida e desamparada, abandonada e esquecida pelo mundo, impotente. As perguntas de sempre, repetindo-se: que fazer?, para onde fugir?, como suportar? Rodeada pelo silêncio lúgubre do hospital, sozinha; e tu, imóvel: para sempre. Sinto-me, não consigo deixar de me sentir, a criança indefesa e assustada que – possivelmente – nunca deixei de ser; e pergunto-me, apenas por hábito, sabendo que não obterei resposta: quem me protegerá, agora?

6.
Lembras-te?
Depois, um dia, aprendi a ler. Continuavas a sentar-te junto de mim, recostando-te nas almofadas; aconchegava-me ao teu corpo, segurava o livro contigo; mas agora eras tu que esperavas. E eu lia, devagar mas com confiança, certa de que tu sabias que o aprendera a fazer apenas para te impressionar, para te agradar. Lia: sabendo que enquanto o fizesse jamais ficaria sozinha.
Por vezes, adormecias. Interrompia a leitura durante um bocadinho, talvez sorrisse; e depois, continuava a ler, feliz e orgulhosa, tranquila. Sentindo-me acompanhada.

7.
A enfermeira pega-me pelos ombros, com uma gentileza firme e profissional que me surpreende, que agradeço. Caminhamos para fora do quarto, lentamente, em silêncio; ainda choro, apoiada no seu corpo, manchando a sua bata com as minhas lágrimas. Conduz-me até uma sala de espera deserta, excessivamente iluminada: e ficamos ali paradas durante uns segundos, sem saber o que fazer, sem objectivo nem destino, talvez à espera que o choro cesse, ou a manhã chegue, ou o mundo acabe. Ainda penso, por um instante, que me vai abraçar, confortar-me com a solidariedade do seu corpo, da sua proximidade, da sua disponibilidade, apertar-me contra o seu peito; mas não o faz, claro que não o faz.
Ouço os seus passos no corredor, afastando-se. Gostava tanto que se sentasse junto de mim; talvez até pudesse pegar-me a mão; e sorrir, só uma vez, seria suficiente. E eu, então, falaria baixinho, só para ela – ou talvez só para mim. Confessaria que me custa perder o meu pai, perder-te, porque ficarei inapelavelmente mais sozinha no mundo, que a tua morte me custa (apenas?) pelo que significa e representa para mim. Confessaria, com alívio, isto: o que me custa verdadeiramente não é a tua morte mas as suas consequências na minha vida. Partilharia com ela, uma desconhecida, este meu profundo e abjecto egoísmo e, por um instante, sentiria a sua compreensão ou, pelo menos, a sua solidariedade. Apertar-me-ia a mão, em silêncio, recordando-me que há sempre, algures no mundo, uma possibilidade de companhia, de não- solidão; talvez falássemos sobre o seu relógio, muito tempo depois; ou de outra banalidade qualquer. A noite a avançar, lenta; o calor sufocando-nos. Momentaneamente unidas.

8.
Lembras-te?
Houve um dia em que não me apeteceu ler alto, não me apeteceu ler para ti. Não sei porquê, ou talvez simplesmente pelo mais cruel dos motivos: por nada. Tu percebeste: e deixaste de vir.
Quase tudo como antes: ruído da televisão, distante; um carro que passava mesmo por baixo da janela; um cão a ladrar; a máquina de lavar roupa a estremecer, na cozinha; a mãe na casa de banho, a água a correr. Eu a ler baixinho, só para mim; e tu, do outro lado do mundo, no teu quarto, a ler baixinho, só para ti. Unidos na separação.

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Gonçalo M. Tavares apresenta “Os mundos separados que partilhamos” (Deriva), de Paulo Kellerman.
Paulo Kellerman apresenta “Breves notas sobre medo” (Relógio d’ Água), de Gonçalo M. Tavares.
Dia 28 de Junho, às 18h30, na Livraria Bulhosa (Entrecampos), em Lisboa.
Obrigado a todos os que quiserem e puderem aparecer.

# 49: Óculos, relógios, perfumes

1.
Vou passando as páginas da revista. Textos inconsequentes que não consigo ler até ao fim; fotografias agressivas que me assustam um pouco; e publicidade: óculos, relógios, perfumes. Uma psiquiatra (lindíssima, um sorriso tão, tão sereno: terapêutico) que diz: parece que já não importa o que somos, só interessa o que parecemos; e na página seguinte: publicidade a óculos de sol, mulheres sensuais e petulantes; gente que parece feliz.
Pouso a revista e recosto-me no sofá, tentada a fechar os olhos.
Mas ouço a chave na porta. Entras, sorris; sorrio, em resposta. Pousas a pasta, beijas-me a face. Perguntas se estou bem, respondo que sim. E depois: nada. Absolutamente assustador este momento em que temos de nos confrontar, em que não podemos fugir ao outro; temos de nos olhar nos olhos e inventar algo para dizer, confirmar a nossa intimidade; adiar um fim que não desejamos. Ainda nos olhamos; mas por vezes, como hoje, não sai nada. Ficou a intenção, o esforço, a tentativa: e já não é pouco.
Separamo-nos em silêncio. Pouco depois, ouço o silvo do computador; o teclar frenético; um suspiro inconsciente, tão revelador. Sento-me no sofá, pego na revista. Óculos, relógios, perfumes.

2.
Comes devagar, com ponderação. Elegante, um pouco afectado; penso que ainda me comovo com a tua vaidade ingénua, inofensiva. E vais falando, tanto. Escuto-te, por vezes sorrio; abano a cabeça ou encolho os ombros. Não te calas, gostas tanto de falar. Gastar palavras: uma outra forma de não dizer nada; de silêncio. Recordo o quanto gostava de te ouvir, o quanto me seduzia a tua verborreia exibicionista; e sorrio, incrédula: mudei tanto.
Pegamos na louça e arrumamos a cozinha, em conjunto. Tal como um casal recém-casado, que não suporta um momento de separação, ou de individualidade. Vais falando, sem que te escute verdadeiramente. Impressiona-me um pouco a quantidade de coisas inconsequentes e irrelevantes que consegues dizer; pior: não consigo recordar a última vez em que me disseste algo importante. Pergunto-me: o que poderia ter sido?
Depois, de repente: o silêncio. Cansas-te de me entreter. E logo depois (sempre latente): o embaraço, que jamais confessaríamos, de ter de estar juntos, dias após dia; para sempre. Insistimos em partilhar as vidas: porque todas as alternativas possíveis são piores, mais difíceis. Não: menos fáceis.
Pouco depois: o silvo distante do computador, o teclar frenético. E o sofá, a revista; óculos, relógios, perfumes.
Vida familiar.

3.
Sinto a carícia do lençol na coxa e, inesperadamente, apetece-me. Cedo ao desejo, à ânsia; desisto de qualquer tentativa de adormecer e preparo-me para esperar, não demasiado ansiosa. Imóvel, em silêncio, respirando devagar; antecipando a possibilidade. O corpo tenso, expectante.
Espero por ti. Com esperança que venhas em breve, com a cabeça cheia de imagens dos corpos de pobres adolescentes envelhecidas que persegues, por vezes, nos sites pornográficos. Que venhas, excitado: e te alivies em mim.

4.
Acho que estou a gritar, não sei se palavras ou sons e gemidos, grunhidos; não sei o que digo nem o que sinto. Não importa, nada importa neste momento. Apenas interessa o prazer que sinto, este prazer fugaz mas totalitário que é afinal uma forma de alienação total, de esquecimento do mundo, de suspensão da vida, de imortalidade do corpo. Nada importa, agora: apenas este descontrolo momentâneo, total e irreversível, talvez irrepetível. Porque cada vez é como a primeira, cada vez poderá ser a última.

5.
Sais suavemente de dentro de mim, sem pressa. Suspiras longamente e afastas-te com cuidado, quase com delicadeza, de modo que os nossos corpos não se toquem verdadeiramente; no momento imediato, esqueces-me.
E eu: agradecida. Ainda me sinto anestesiada, o corpo lânguido e confortável, regressando preguiçosamente do torpor. Agrada-me que não arrisques uma tentativa de conversa, que não forces uma intimidade inconsequente e desnecessária, que não procures prolongar artificialmente este momento de partilha. Entendemo-nos bem, finalmente; mesmo sem necessidade de o confessar, percebemos que o amor já terminou; e, silenciosamente, concordamos nisto: não precisamos dele. Basta-nos a previsibilidade da presença do outro, o conforto de nos sabermos acompanhados, compreendidos, desculpados. Silenciosamente: porque se concretizássemos estes sentimentos em palavras sentiríamos indignação e repugnância.
Aprendemos a dispensar as rotinas dos amantes exaltados, as inábeis e comoventes tentativas de adivinhar os desejos do outro, de agradar e surpreender, de encantar; concordamos, finalmente, que o que prevalece é o que cada um retira do outro e não tanto o que proporciona; porque o que proporciona é tudo o que o outro quiser retirar. Sem subterfúgios nem encenações, sem sentimentalismos nem vergonhas. Fodemos simplesmente, com maturidade e abnegação, confortavelmente; e nunca foi tão bom, tão recompensador, tão pleno. Para ambos.

6.
Estou quase a adormecer, serenada pelo conforto que ainda sinto disseminado por todo o corpo, quando começas inesperadamente a contorcer-te, primeiro com preguiça e contrariedade e, logo depois, com algum frenesim. Quando te olho, identifico algo inesperado no teu rosto: dor; e logo depois: medo.
Assusto-me. Ou talvez seja apenas contrariedade, o que sinto.
Fecho os olhos, durante uns instantes; aguardo, refugiando-me na escuridão, no silêncio, na inércia: sem esperança. Não precisamos de falar, há anos que lemos artigos de revistas, vemos programas de televisão, ouvimos discursos de técnicos de saúde; há anos que esperamos que aconteça algo assim. Abro os olhos, procuro os teus: e encontro-os fechados. Já.

7.
Levanto-me e cambaleio pelo quarto, sentindo o chão áspero nos pés descalços; procuro o telemóvel e explico a uma senhora muito calma e sorumbática que estás a morrer. Depois, pouso o telemóvel e refugio-me na janela, que abro um pouco. Vento, escuridão. Um gemido quase envergonhado, tímido: e admiro-te, contrariada. Estás a morrer com dignidade.
Que disparate: não estás nada a morrer. A ambulância está a caminho; salvar-te-ão.
Talvez seja melhor começar a pensar em vestir-me.

8.
Apareceram três bombeiros. Dois pegam em ti e carregam-te até ao elevador, em silêncio; depois, mudam de ideias e avançam para a escada, sem excessiva pressa. Não voltaste a abrir os olhos, paraste de te contorcer há muito; não gemes. Não incomodas.
O outro bombeiro olha-me: como se estivesse com vontade de me falar, de me perguntar por que motivo não estou a chorar; ou talvez tenha gostado de um qualquer pormenor de mim, do meu corpo (o cabelo, a elegância dos dedos?). Pergunto-me, um pouco envergonhada, se terá reparado no cheiro a sexo que ainda paira pelo quarto. E quase sinto embaraço.
Descemos os dois no elevador, desconfortáveis. Conto os segundos que passam. No espelho, o reflexo das nossas costas. Um suave zumbido descendente. Talvez alguém ainda acordado no prédio, a ver o AXN. Apetecia-me dizer qualquer coisa, falar um pouco; ser escutada. E chorar? Não, acho que não.
A porta abre, saio. Não era o quarto que cheirava a sexo, afinal: é o meu corpo. E o bombeiro, mais tarde, lá no sítio onde os bombeiros guardam as ambulâncias, dirá aos colegas: estavam a foder.
Pois estávamos.

9.
A ambulância avança com rapidez nas estradas desertas. Cá de dentro, o ruído da sirene parece particularmente lúgubre, um grito estridente que não diminui, não se afasta, empenhado em perseguir-me impiedosamente. Mas se as estradas estão desertas, para que serve a sirene?
Estás praticamente inconsciente, não te moves; os olhos não voltaram a abrir, o que me assusta, o que me alivia (e era tão confortável, se conseguisse ficar desesperada); observo, com inesperada apatia, quase com resignação, como o senhor da ambulância anda de volta de ti, um pouco frenético, um pouco indiferente. Há solavancos repentinos, violentos. Penso: foi uma sorte que tenham mandado a ambulância e não aqueles médicos de emergência; assim, não morrerás na nossa cama; não: morrerás longe. E eu poderei voltar.
Fecho os olhos, tento escapar à perseguição da sirene. Sinto uma desconfortável viscosidade, embrulhada numa ténue cócega: um pouco do teu esperma que ainda andava por dentro de mim, acariciando, e escorrega, agora; uma mancha nas cuecas: o que resta de ti.

10.
Imagino uma sala de espera deserta. Revistas abandonadas em cima de uma mesa; e eu a perguntar-me: qual devo pegar? Um segurança que passa por vezes, imitando o porte marcial que aprendeu em filmes idiotas, e me olha com alguma curiosidade, não muita; e que depois, logo depois, deixa de aparecer: desinteressado. Silêncio, que num hospital é sempre assustador. Luz fortíssima. Cartazes publicitários de farmacêuticas: famílias felizes, idosos sorridentes, bebés fotogénicos; e conselhos, tantos conselhos. Um médico de bata desalinhada que passa a rir para o telemóvel. Um grito abafado, vindo de longe, talvez imaginado. E a indecisão, persistente: em que revista devo pegar?
Muito tempos depois: alguém que entra (talvez uma mulher um pouco mais nova que eu, não muito bonita), passos decididos e seguros, bata imaculadamente branca (talvez uns óculos Gant, um relógio Lacoste; ou óculos Lacoste e relógio Gant?), um sorriso inexistente (mas haverá sempre a possibilidade de um sorriso, desde que haja vontade); parará junto de mim, não demasiado próximo; e não me tocará, em circunstância alguma. Dirá: lamento. Ou então: lamento muito. E ficarei a olhá-la, ali tão próxima, nem intimidada nem seduzida, tentando adivinhar qual o perfume que usa (talvez Light Blue de Dolce & Gabbana) e incapaz de perceber se sinto alívio, se sinto desespero. Depois, logo depois, afastar-se-á (passos decididos e seguros) e eu ficarei a pensar que talvez o desespero seja, afinal, uma forma de alívio. Jamais saberei o seu nome; dela, recordarei apenas: óculos, relógio, perfume.
A sala de espera: ainda deserta. Revistas abandonadas. E silêncio, que num hospital é sempre assustador.

11.
O ruído da sirene já faz parte de mim, serei incapaz de lhe fugir nas próximas horas. Acho que a desligaram: mas continuo a ouvi-la. Para sempre, talvez.
Todos imobilizados: tu, eu, o senhor da ambulância; à espera. Lá fora, a noite cerrada protegendo o sono dos homens, das mulheres. Também para mim é esse, por vezes, tantas vezes, o melhor momento de cada dia: a inconsciência do sono, o adiamento, a possibilidade de suspensão. Protegida pela escuridão, de volta ao silêncio primordial de que devia ser feito a vida. Segura; inofensiva.
Resisto à tentação de te olhar, enquanto me pergunto se irás mesmo morrer. E, logo depois, macabramente, penso no funeral. Visualizo-o: não sei onde. Muita gente que virá, certamente. Abraços, pessoas que não conheço apertar-me-ão contra os seus corpos; e de certa forma, será bom; erótico, até. Quanto custará? Talvez o preço de uma boa viagem. E o choro insuportável da tua mãe, lamuriando-se, culpando-se. Murmúrios de padre, rezas. Ainda há quem saiba rezar? E eu a ver-te desaparecer, envolvido pela terra castanha, imunda. Sentirei dor: amei-te tanto, um destes dias. E desânimo: agora, recomeçar tudo, algures, com alguém tão diferente de ti mas, afinal, tão parecido, quase igual; repetir tudo. Alívio, também: uma pausa para respirar. Espero que não chova. E o coveiro, talvez um ex-toxicodependente, algures num canto, apoiado numa enxada, a espreitar os traseiros das mulheres, ou dos homens: à espera. E a roupa? Negra, claro. Deveria comprar uns óculos escuros; Dior, talvez.
Mais um solavanco, uma travagem repentina. E a sirene: cá dentro.
Sim, é possível que já estejas morto.

12.
O bombeiro despede-se com alguma brusquidão, talvez irritado com a minha indiferença, talvez aborrecido por não estar a dormir ou a foder uma namorada escanzelada, talvez apenas mal-educado por natureza ou feitio. Fico a vê-lo afastar-se, passos pouco elegantes, costas arqueadas; ainda não desapareceu da minha vida e já não consigo lembrar-me do seu rosto.
A senhora do guichet de atendimento não disse boa noite, quando cheguei; agradeci-lhe a atenção, a obrigação de reagir a qualquer espécie de civilidade ou cortesia ser-me-ia dolorosa. Agora espreita-me, analisando-me a postura, avaliando-me o comportamento; retribuo o olhar, apenas por distracção, e logo me aborreço. Pergunto-me: qual a percentagem de vezes em que olhamos alguém sem que esse olhar contenha uma qualquer componente de cariz sexual? Uma inconsciente avaliação de possibilidades, talvez; ou mesmo uma cedência temporária e inconsequente à fantasia. Sim: qual a percentagem?
Sento-me na cadeira mais afastada que encontro e olho o monte de revistas abandonadas numa mesa, mesmo à minha frente. Talvez pegue numa, daqui um pouco; passar o tempo; distrair a mente; invejar os outros; ou, simplesmente, procurar os óculos de sol ideais.

13.
Uma mulher com bata de médica entra de repente na sala de espera e procura-me com o olhar; depois, avança com firmeza na minha direcção. É baixa e um pouco atarracada, mais de quarenta anos; pele morena, cabelos muito curtos; e uma expressão cansada, dolorosamente cansada. Fico a vê-la aproximar-se, espero-a sem medo nem entusiasmo, evitando pensar no que me vai dizer, preparada para ouvir; reparo que não usa óculos; nem relógio. E perfume, usará? Dentro de momentos, saberei.

# 48: (Mais) Cinza no chão

1.
Quando vejo o rosto do rapaz mesmo junto do vidro do carro, sobressalto-me. Por um segundo, não sei quem será ou que desejará; mas logo depois, um fulgor de compreensão invade-me, ao recordar onde estou e o que me preparo para fazer.
Digo que não, não preciso de ajuda com a bagagem. O sorriso do rapaz perde intensidade mas não desaparece por completo; e na sua face, ainda imberbe mas já angustiada, percebo (reconheço) a decepção que já não dói por ser tão repetida, tão familiar, o encolher de ombros psicológico de quem já desistiu de acreditar, a inevitável e silenciosa resignação por, uma vez mais, ser considerado insignificante, negligenciável, incomodativo. Afasta-se, talvez exibindo um farrapo de sorriso de plástico.
Quando desaparece na porta, volto a recolher-me em mim; concentro-me, forço-me a agir. E num ímpeto, permitindo que o corpo sobressalte a minha própria alma, abro a porta e saio.

2.
Lá está o rapaz, em sentido, mãos atrás das costas, sorriso impecável. A pouca distância, o balcão; e por trás dele, a recepcionista; outro sorriso de plástico. E enquanto me aproximo, penso: é lindíssima; como se a sua beleza fosse relevante para a minha felicidade.
Boa tarde, boa tarde. Tem reserva?, não. Pretende ficar quantas noites?, uma.
Estende um impresso e uma caneta, mergulha no computador. O sorriso ainda não desapareceu. Preencho os dados que me são solicitados, letra após letra; depois, obrigo-me a erguer a cabeça e enfrentar a mulher. Que me encara: olhos brilhantes, sorriso perfeito. Pede o bilhete de identidade, compara os dados com os que acabei de escrever. E por um segundo, o sorriso desaparece. Adivinho porquê: pergunta-se por que motivo alguém aluga um quarto de hotel na própria cidade onde vive. Sinto-me incapaz de a encarar e é então que os meus olhos descem pelo seu corpo. Olho, aprecio, memorizo. Depois, regresso ao seu rosto: e lá está o sorriso. Pergunto-me: onde aprenderão a sorrir com tal perfeição?
Longa lengalenga: o pequeno-almoço é servido às e temos health club e a piscina pode ser e o bar abre. Não ouço o que diz: concentro-me apenas no movimento dos seus lábios; abstraio-me do que me rodeia, desligo o som. Apenas me interessam aqueles lábios, movendo-se e movendo-se e movendo-se. Sei que mais tarde, envolto no escuro, evocarei este momento; e então, memória e fantasia mesclar-se-ão numa simbiose perfeita; fecharei os olhos: e os seus lábios continuarão a mover-se, envolvendo não palavras mas partes do meu corpo.

3.
É o ruído seco da chave a embater no balcão que me devolve à realidade. Sobressalto; algum embaraço; quase vergonha; e decepção. Recolho a chave, o bilhete de identidade. O rapaz está a abrir-me a porta do elevador; pergunto-me se me acompanhará; e antevejo o terror de estar trancado num elevador com um desconhecido de sorriso permanente. Digo obrigado e encolho-me num canto do elevador, à espera. Mas ele fecha a porta com suavidade e com suavidade o elevador sobe.
Caminho pelo corredor, explorando as portas. Encontro, abro, entro.
Quarto simpático. Infinitamente desumano, hermeticamente fechado a qualquer resquício de presença humana. Fecho a porta, dou uns passos, sento-me na beira da cama. Pergunto-me: e agora?

4.
Poderia encher a banheira de água quente e deixar-me anestesiar pelo conforto tépido de uma placenta improvisada. Depois, o tempo passaria devagarinho, irrelevante; poderia masturbar-me lentamente, acariciando-me com cuidado, sentindo o prazer de me poder tocar sem enfrentar o receio de uma possível intromissão, sem sentir culpa nem vergonha. Olharia o meu pénis semi-erecto e não me custaria imaginar os lábios da recepcionista sorridente a envolvê-lo, engoli-lo com alguma voracidade, com alguma indiferença; depois, fecharia os olhos e concentrar-me-ia em fantasiar o seu corpo, a suavidade da sua pele, o secretismo do seu cheiro. Ejacularia, por fim. E o pénis murcharia de imediato, pequenos farrapos brancos de esperma flutuariam pela água; sentiria nojo e repulsa, um desagradável embaraço; e culpa. Levantar-me-ia com gestos deselegantes e apressados, sairia da banheira; aguardaria que a água escorresse, pegaria um bocado de esperma teimoso, que a água não teria arrastado consigo, com papel higiénico.
Teriam passado alguns minutos, talvez meia hora; mas continuaria precisamente como antes: e agora?

5.
Fumo lentamente, cigarro após cigarro, permitindo que a cinza caia no chão, formando montículos na alcatifa; sinto um desprezível prazer por ter a certeza que não surgirás, de um momento para o outro, erguendo obsessivamente o teu aspiradorzito portátil, decidida a eliminar as provas da minha presença, da minha existência, numa acusação silenciosa e cobarde. Não: aqui, estou seguro.
Olho pela janela; e lá longe, à distância de um grito, o nosso prédio, a nossa varanda, a nossa janela: e tu na nossa cama, talvez a dormir. Apenas umas ruas, uns prémios a separar-nos; contudo: tudo a separar-nos.
Sim, talvez durmas. Não fazes ideia onde estou; e, afinal, tão próximo: como se te preparasse uma emboscada, ou tentasse proteger-me de ti. Amanhã, talvez confesse que passei a noite aqui, perto, pertinho, quase contigo; e aproveitarei para explicar que vim passar a noite num hotel porque não tive coragem de te encarar e dizer-te que não te amo, já não te amo, nem sei se alguma vez te amei; dizer-te, também, que não tenho, não consigo ter, paciência para te olhar, para te ouvir, que já não consigo suportar o teu cheiro, que me arrepia a perspectiva de ter de te tocar; dizer-te que temos de nos separar imediatamente porque, caso contrário, sou capaz de começar a odiar-te.
A noite arrasta-se, a escuridão do quarto de hotel conforta-me; luzes que apagam aqui e ali, carros que vão passando; tu a tentar adormecer, aí; risos distantes, embriagados; gente feliz, algures; eu a tentar acumular coragem, a fantasiar o que te diria se tivesse coragem. A noite a arrastar-se, interminável. E a cinza: acumulando-se no chão.

6.
Apenas as explosões de cor que chegam da televisão iluminam a minha noite; e sinto um estranho conforto por fazer parte da escuridão, do silêncio; como se fosse parte da inexistência, apenas um pedaço de nada. Por vezes, consigo descobrir uma estrela entre as camadas de nuvens escuras, pequenos pontos brilhantes insurgindo-se contra o poderio do negrume, do vazio, do esquecimento. Brilham por um instante; e desaparecem.
Já não tenho cigarros.
Olho a janela escura do nosso quarto, lá longe. E imagino-me deitado na minha cama, a olhar as janelas do hotel, esta mesma janela; imagino-me a imaginar: homens e mulheres, troca de prazeres, vidas secretas. Imagino-me deitado na minha cama, envolto pela mediocridade da minha vida, pela escuridão da minha existência, a fantasiar o glamour da vida dos outros, das outras vidas, de todas as vidas excepto da minha; e enquanto acaricio o cabelo com as mãos (gestos automáticos, robóticos: sem sentido nem objectivo), recapitulo os devaneios a que me entreguei nalgumas noites de insónia, acompanhado pelo monótono estertor da tua respiração, aprendendo a suportar o teu ressonar discreto, o contacto permanente da tua pele quente, as cócegas dos teus cabelos demasiado longos no meu pescoço.
Agora e aqui, revivo todas as noites em que me imaginei num quarto deste hotel, protegido por este vidro descaracterizador: um outro eu. Recordo como me reconstruía, detalhe após detalhe; e renascia neste quarto, neste exacto quarto que tão bem conhecia apesar de nunca o ter visitado, acompanhado por uma qualquer mulher sem rosto mas de corpo muito concreto (e voz profunda e riso gutural); adormecia enquanto aperfeiçoava os pormenores desse corpo e acordava pouco depois, encharcado de esperma, desconfortável e culpado; acordava: mas não me movia, para não perturbar o discreto ressonar que ainda me ligava à realidade, à sanidade; e esperava que a noite percorresse o seu lento caminho, levando-me consigo.
Hoje, estou finalmente deste lado da janela; e nada melhorou.

7.
Por vezes, sinto que sou transparente. Sinto que não tenho pele a envolver o meu corpo nem carne a proteger a minha alma; talvez seja de vidro, apenas vidro. Transparente: olhem-me e conhecer-me-ão.
E incomoda-me esta consciencialização de fragilidade e transparência. Por exemplo, agora: desço no elevador, caminho pela recepção, encosto-me ao balcão; e temo que todos estes olhares predadores trespassem o vidro que protege a minha essência e partilhem das minhas vergonhas. Não consigo erguer o olhar e enfrentar o mundo, nem o alívio de saber que a recepcionista de serviço não é a mesma das minhas fantasias suaviza o meu martírio. Pago e quase corro, quase tropeço. Fujo.
O mesmo rapaz de ontem abre-me a porta. E sorri.

8.
Dou despropositadas voltas ao bairro, em busca de um lugar para estacionar o carro; depois desisto, deixo-o no parque subterrâneo do centro comercial. Caminho a pé, protegendo-me do olhar de quem por mim passa, escondendo-me. Já decidi que talvez conte tudo: não te amo, quero acabar com isto, não me perguntes porquê, blá blá blá e mais blá. O sol bate-me na cabeça, torna-se incomodativo. Pergunto-me se chorarás. Talvez te diga: mas não vês que sou um homem de vidro, que sou transparente, que basta olhares para dentro de mim e perceberes o quanto não te amo?
Caminho, lento, quase paro. Pergunto-me: mas haverá necessidade de ser cruel? De certo que não, respondo-me. Ensaio: olha, não sei como explicar, não sou capaz, nem sequer vou tentar. Pedirei desculpa. Direi, como diz a gente de plástico dos filmes americanos: fiquemos amigos. E imagino o teu olhar baço, assustado, indignado. Sinto um arrepio. Apresso o passo. Vontade de acabar com isto.
Pergunto-me: se cair, partir-me-ei?

9.
O coração bate depressa, ansioso ou assustado, sei lá. Tento pensar em banalidades: conta do telemóvel para pagar, consulta no cardiologista na sexta-feira, o carro a precisar de pneus novos, há tantos meses que não vou ao cinema. Coisas assim. E depois: lá está o prédio.
E o meu coração: também será de vidro? Entro e pergunto-me: que dirás quando me vires, acusar-me-ás de quê, estarás infinitamente chateada ou apenas indiferente? Já se vê.

10.
Ensaio: olha, queria dizer-te uma coisa, desculpa ser assim tão de repente.
Abro a porta: e logo te vejo; sorris. Poderias invectivar-me, gritar, bater e arrancar-me cabelos (vê-se tanto, nas telenovelas), poderias dizer uma banalidade do género mas quem pensas que és, para me tratares assim? Poderias ter reagido com indignação, humilhar-me, desprezar-me. Mas não, nada disso; simplesmente, sorris: não sei porquê, para quê. E perante esse inesperado sorriso, perante esse inequívoco testemunho de amor e perdão, ou de desespero e solidão, tudo o que sou capaz de balbuciar é: olha, queria dizer-te uma coisa; tive saudades tuas. É tudo o que consigo dizer: uma mentira.
Jamais seria possível dizer qualquer outra coisa. Jamais será.

11.
Troco de roupa enquanto te ouço, sem fazer ideia de que falas.
Saio até à varanda e olho. Lá está a janela do hotel: onde sempre esteve, onde sempre estará. Do interior do quarto, vem o zumbido da voz; zumbindo e zumbindo e zumbindo. Lá de baixo, o zumbido do trânsito. Misturam-se, os zumbidos: já não os consigo distinguir. Penso: quando falas, pareces um automóvel com o cano de escape roto. Rio por um momento, sentindo-me desprezível; depois reduzo para um sorriso. Quando sinto que o rosto voltou ao seu estado natural de rigidez e apatia, volto para dentro. Sento-me no sofá e acendo um cigarro.
A cinza vai caindo no chão.