Consubstanciação

(A partir de uma fotografia de Sónia Silva.)




- Já reparaste? Por mais próximos que estejamos, há sempre algo que se interpõe entre nós, que nos separa, que nos afasta; algo difuso e impalpável que impede que nos complementemos totalmente. Como se fosse um véu, quase invisível, quase incorpóreo, mas inquestionavelmente presente, tão sólido como uma parede. Estendo a mão e toco a tua pele, penso que estou a tocar a tua pele, chego até a sentir que toco a tua pele; mas não, na verdade não estou a tocar, a sentir. Porque há uma película insubstancial que se interpõe entre a minha pele e a tua, entre o meu olhar e o teu, entre o meu corpo e o teu; entre mim e ti. E por mais que tente aproximar-me, por mais que tente tocar, não consigo; parece impossível. Não sei de que é feito este véu; talvez esteja, na sua origem, relacionado com a tua resistência, com o teu medo, a tua distância; talvez seja tudo isso que de alguma forma se consubstancia em algo concreto e palpável, em algo tocável; como um véu, por exemplo. Mas estás a sorrir. Gostas desta palavra, não é? Eu gosto, também gosto. Con-subs-tan-cia. E, por acaso, representa aquilo que mais ambiciono: que o nosso amor se consubstanciasse, que nos consubstanciássemos. Percebes isto? Mas afinal parece que não é possível, parece que apenas aquilo que nos separa se consubstancia. Paciência. Afinal, passamos a vida envolvidos por véus, não é? Mesmo que consigamos despir todas as máscaras com que nos protegemos, parece impossível não manter alguns véus, nem que seja só um; parece impossível estarmos completamente despidos perante alguém. Mas, mesmo parecendo impossível, eu quero despir-me completamente, quero-te completamente despido. Percebes o meu problema? Quero impossíveis. E é por isso que vou rasgar este véu que nos separa; vou rasgar-te e quero que me rasgues porque apenas assim, rasgados, poderemos ser verdadeiramente completos. Não quero véus, quero que sejamos apenas nós.
- Não queres véus. Ok, percebo. Faz sentido. Mas agora pára um pouco para pensar, só um pouquinho. Está bem? Pode ser? Pensa nisto: até que ponto podemos conhecer o outro? E já agora, pensa também nisto: até que ponto o outro quer que o conheçamos? Acreditas mesmo que é possível o conhecimento total do outro? Acreditas que alguém deseje a nudez total e absoluta?
- Acreditava. Por acaso, acreditava. Até agora mesmo.

Símbolo de mudança


(Estória escrita a partir de uma foto de sonja valentina.)




- Uau. Adoro esses sapatos.
- Sim? Também gosto muito.
- Deves ficar estupenda com eles. Mas nunca te vi usá-los.
- Pois não. Nunca os usei.
- A sério? Nem acredito. Porquê?
- Não sei explicar bem. Tem a ver com o facto de serem especiais, acho eu.
- Como assim?
- Sabes como é, os dias são tão iguais que já nem conseguimos distingui-los; não achas? É como se a vida fosse a repetição de uma repetição, como se vivêssemos repetições infindáveis e inconsequentes; como se vivêssemos numa rotunda, sempre às voltas. E as memórias que se vão acumulando desses dias acabam por também ser repetições indistinguíveis e, portanto, quase irrelevantes. É um bocado triste, não é? Vivemos um presente tão repetitivo que o passado que vamos deixando para trás acaba por ser uma nulidade, uma ilusão, um equívoco. E, afinal, é o passado que nos dá um sentido de continuidade e evolução, sem consciência do passado a vida transforma-se numa mera colecção de momentos.
- Pois. Mas e os sapatos? Que tem tudo isso a ver com os sapatos?
- Não te rias mas acho que estou à espera que aconteça algo especial. E então, nesse dia, que não será uma simples cópia dos outros dias mas uma espécie de intervalo na repetição, usarei os sapatos. Nesse dia, conseguirei sair da rotunda e experimentar um caminho novo. E sentir-me-ei especial, não só por ser um dia especial mas também por usar uns sapatos que são especiais; as duas coisas tornar-se-ão indissociáveis. Percebes? Depois, quando o dia passar, terei para sempre uma memória inequívoca desse dia especial: bastará olhar os sapatos. Serão um símbolo de mudança ou algo assim.
- Que estranheza de teoria. E não bastava tirares muitas fotografias, durante esse tal dia especial? É para isso que existem as máquinas, posso emprestar-te a minha. Tem treze megapixéis.
- É, se calhar tens razão. Deixa lá, esquece. Já sabes que gosto de devanear.
- Olha, sabes o que estava a pensar? Na sexta-feira vou sair com aquele tipo de que te falei, o que conheci no facebook. O das motas, lembras-te? Vai levar-me àquele sítio novo, perto do rio; aquele onde vão as actrizes de telenovela, ando mortinha para ir lá. E estava aqui a pensar que os teus sapatos ficavam mesmo bem com o vestido que quero levar. Não queres emprestar-mos? Prometo que os devolvo impecáveis, nem dás por nada.

Uma árvore a tentar correr

(Estória escrita a partir de uma fotografia de Sónia Silva.)






Imagina esta fotografia: uma árvore a ser fustigada pela tempestade; apenas isso, árvore e tempestade. Na tua opinião, quem domina a fotografia? Mesmo não vendo o vento, sabes que está lá, a sua presença é inquestionável; e, na verdade, sabes que é ele o grande protagonista, apesar de invisível; apesar de infotografável. Afinal, é sempre assim, não achas? Nas nossas vidas, quero dizer; o invisível ordena sempre mais. Mas de volta à fotografia. Sabes que há vento e que o vento está a abanar a árvore, é isso que vês, é essa a experiência de vida e do mundo que tens e que, consequentemente, projectas na fotografia: se uma árvore está vergada é porque o vento a inclina e ponto final, não pensas mais nisso. Mas e se olhares melhor, ou se olhares de outra forma? É esse o desafio, não é? Conseguir ver mais, ver melhor, ver diferente; ir além do óbvio, da aparência. Por exemplo: e se conseguires não ver o vento, se conseguires imaginar que não há vento nenhum na fotografia? Por que não aceitar que vês apenas uma árvore debruçada e nada mais? O senso comum diz-te que deve haver uma ventania infernal a fustigá-la, não é? E tu acreditas no senso comum; pronto, não há nada a fazer; o senso comum é como o vento: invisível mas imparável e, no fundo, quem mais ordena; uma espécie de raiz que nos prende à terra, mas daquelas raízes que já não alimentam, daquelas que apenas aprisionam. Mas sabes uma coisa? Que se foda o senso comum. Estamos a falar apenas de uma fotografia, não é? E a verdade é que por mais que olhes e tentes, não consegues sentir o vento; os teus preconceitos é que te dizem que há vento. Mas e se não houver? E se não havia vento no momento em que a fotografia foi tirada? Ora imagina lá. Consegues imaginar? Pois, o bom senso faz-te logo a pergunta óbvia: se não há vento, porque está a árvore inclinada, quase suspensa? Boa pergunta, não é? Sabes o que responderia, se me fizesses essa pergunta? Diria: está a tentar libertar-se; está a tentar erguer-se da terra e caminhar, afastar-se; a tentar arrancar-se do chão. Olhas a fotografia de uma árvore a ser agitada pelo vento; e se conseguires imaginar que, afinal, não há vento, aquilo que fica é a fotografia de uma árvore a tentar fugir. Uma árvore a tentar correr. Haverá algo mais triste e dilacerante, mais desconcertante, mais humano? Se calhar, não. Pensa nisso, então. Uma árvore a tentar fugir da terra que a prende. É essa a verdadeira fotografia, aquela que poucos percebem. E sabes o que te digo? É precisamente assim que me sinto, por vezes. Amarrado ao chão, prisioneiro do bom senso, do preconceito; agitado por uma tempestade imaginária, por ventos que não existem; de certa forma, amarrado e agitado por mim próprio. Ou, dizendo de modo mais rude: sinto que não sou o protagonista da minha fotografia, da fotografia da minha própria vida; o vento invisível é que o é. Percebes isto?