Amira

Crónica para o Jornal de Leiria.
# 81.

Por vezes, parece que o tempo pára












Para onde vai o tempo?
Uma edição da Rede Europeia Anti-Pobreza
Apesentação em 15/02/2020
(Fotos: Licínio Florêncio)

Banda sonora para 2020

She felt the pain of dreaming...

Estrelas

Uma animação de Maraia.

Envelhecer

Crónica para o Jornal de Leiria.
# 80.

Lullaby

Uma animação de Maraia.

Se aparece no jornal…

Estou com o Ricardo e a Beatriz numa esplanada da Praça. O Ricardo é um velho amigo e a Beatriz é a sua nova namorada; estão felizes e fazem as coisas que os namorados felizes costumam fazer: ignoram-me. Sigo distraidamente os seus olhares cúmplices e diálogos tontos, enquanto vou pensando na vida. «Eh pá, estás na lua ou quê?», pergunta de repente o Ricardo. Explico que estou a pensar num tema para a crónica do jornal. «Não é o fim do mundo, se o jornal sair sem o teu texto.» A Beatriz ri e dá-lhe uma palmada no braço: «Estúpido.» «Ele é que está sempre a dizer que se calhar ninguém lê as crónicas.» «Isso é normal, os escritores estão sempre com dúvidas; o teu papel como amigo é incentivar.» «E eu incentivo. Mas já andas nisto há quanto tempo? Quatro anos ou assim?» «Quase oito.», respondo eu. «Então começa a reciclar as antigas.» «És tão parvo, um escritor nunca faz isso.», defende-me a Beatriz. «Tens ideia de quantas crónicas já escreveu ele em que o tema é a atrapalhação porque não se lembra de nenhum assunto?» Vira-se para mim e pergunta: «Quantas?» «Algumas.», digo eu. «Vês? Algumas. E agora será igual. Quanto é que apostas que a próxima crónica vai ser sobre esta conversa?» «A sério? Nunca apareci numa crónica.» «Aproveita e manda um recado à tua mãe. Depois, ela pode comprar o jornal.» «Estás sempre a apalermar. Mas ok: mãe, gosto muito de ti.» «Estou apenas a contribuir para o aumento da tiragem do jornal.» «E se te deixasses de tretas e lhe contasses aquilo da Arquivo?» O Ricardo vira-se para mim: «Nunca te contei aquilo da Arquivo?» Não, nunca contara. «Oh pá, estava convencido que sim. A sério que não? Olha que é uma estória fixe. Então foi assim: estava lá à espera, sabes como é. Eles têm sempre o jornal nas mesas, certo? E eu ia passando as páginas, enquanto o Pedro não vinha. Calhou ser na semana em que tu escrevias. Então fiquei a ler a tua crónica. Era aquela em que falavas da nova peça. E quanto disseste aquilo da peça se passar no céu e haver lá um sequestro, desatei a rir. Agora repara na coincidência do caraças. Nessa altura, a Beatriz estava lá.» «Fui comprar uns brincos, para oferecer à minha prima.» «E quando eu ri bem alto, ela ouviu e ficou a pensar em quem seria o parvo que estava para ali a rir que nem um animal.» «A gargalhada chamou-me a atenção e olhei. E depois já sabes como são as coisas, às vezes há algo que nos prende o olhar.» «Eu prendi-lhe o olhar, é o que ela quer dizer.» «Então chegou o Pedro, que estava sempre a dizer oh Ricardo para aqui, oh Ricardo para ali. E assim, fiquei a saber o nome do animal.» «Quando ela chegou a casa foi procurar no Facebook todos os Ricardos de Leiria. E pronto: encontrou.» «Se não fosses tu, não estávamos aqui. Percebes?» «E agora vai lá escrever a crónica, ok? A ver se nos fazes rir.» «Isso é tudo aldrabice, certo?», pergunto eu. «Não és do tempo em que diziam: se aparece no jornal, só pode verdade?» E riem, trocando um dos seus olhares cúmplices.

Crónica para o Jornal de Leiria.

Postais pedidos



Enquanto passeiam, a menina encontra uma azeitona no chão. Pega-a delicadamente e aproxima-se do avô. «Que tens aí?», pergunta o avô. A menina estende-lhe a mão com a azeitona e sorri: «Uma árvore.»

Um sonho

... de Maraia.

Postais pedidos

Por vezes, apetece fazer qualquer coisa tonta... Por exemplo: enviar postais e imaginar o sorriso de quem os recebe.
Postais de papel escritos à mão. Com uma estória. Entregues por um carteiro.
Uma pausa nos gifs e memes e emojis e likes. E nos feeds.
Quem quiser, peça. E um dia destes receberá um postal. É só escrever para minimalistamini@gmail.com e esperar uns tempos.

Raiz


Exposição de Sandrine Cordeiro na Livraria Arquivo.
A partir de 2 de Novembro. 

Gato preto

Arte Pública Leiria. Um gato e um texto.

Não falta nada


"Nesta segunda visita ao ninho da criatividade e representação, O Nariz, levava comigo a curiosidade expectante gerada pela envolvência e pela novidade de visionar e ouvir a peça escrita pelo Paulo Kellerman, sabendo com antecipação que, depois desta ter sido lida por mim, a minha imaginação já criara cenários, vozes, sons e melodias, jeitos e trejeitos, movimentos e saltos de rompante ou amenizados, em suma, um pequeno mundo ao sabor dos meus peculiares pensamentos.

Dou por mim a questionar quanto ao facto de não ter sido fácil arrancar aos actores a anuência para apresentar ao público o que ainda era embrionário e sem estar completamente ensaiado e aprimorado com perfeição. Perfeição? (riso) Quem acredita nisso? Perfeito… Nunca o será. Haverá sempre algo que escapará intocável na sua magnífica imperfeição por uma das frinchas dessa madeira que reveste o palco: o improviso. A surpresa do improviso. A surpreendente arte do improviso. Sorrio.

Para mim que assisti à leitura pública da peça, foi gratificante sentir e perceber que acima de tudo há um gosto e uma entrega ao projecto que não é de um, mas de todos, com as diferenças inerentes à personalidade de cada um e que por vezes, imagino eu, colidindo entre si, fazendo contudo parte de toda esta criação.

Quem escreve, quem encena, quem representa revê-se em determinadas passagens, palavras, cenas, ou diálogos e sente que é algo de si que ali está e fica entusiasmado e inquieto ao mesmo tempo, aguardando pela reacção do público. Eu ri, sorri, chorei de rir, cantarolei acompanhando a cantoria, calei e fiquei pensativa. Emocionei. Indaguei em silêncio.

Não vou, nesta minha divagação, escrutinar quanto a pormenores relativos à encenação, à representação, à noite, ao espaço, mais haverá quem o faça com outros conhecimentos técnicos… apenas vou evidenciar que a entrega a que se assistiu, não é apenas uma questão de generosidade individual, estamos ali porque acreditamos na diferença, na partilha de experiências, nos momentos de amizade.

Conseguem-se presenciar (no palco e no público) tantos momentos e tão únicos e diversificados de quadrantes sociais e humanos, de conhecimentos, de profissões, de talentos, de estatutos, que num repente inusitado, colocam-nos nesse básico e linear papel humano que é o nosso, em que perante a morte, mesmo sendo nesse em que as realidades se encaram de forma diferenciada, acabam no fundo por ser iguais ao que somos: pó de um corpo, energia de uma alma.

Não posso deixar de referir que o inconformismo que caracteriza e alimenta muitos de nós está muito bem aflorado, somos espicaçados (quem não gosta desta palavra?!): não ao comodismo, não à indiferença, não ao marasmo, não ao ser porque sim, não ao estar por estar… há algo que nos espera, é preciso sair e procurar.

Escrevinhei, não tem muitos dias, algo que me parece pertinente para o momento:
Na natureza a inspiração… no espaço a dimensão. E ambas sem limites.

(Obrigada a todos pela oportunidade…)"

Texto de Cristina Vicente
Foto de Carla de Sousa

A primeira vez








Falta aqui qualquer coisa
Leitura pública no dia 11/10/2019
Espaço O Nariz, Leiria
Fotos de Carla de Sousa

Falta aqui qualquer coisa

Estamos no céu. Numa espécie de loja do cidadão, a funcionária de serviço discute com uma estagiária sobre os problemas e os desafios de se morrer e ir para o céu. Entretanto a repartição abre ao público e os utentes vão desfilando com os seus requerimentos e reclamações. Há uma cantora que pretende organizar um arraial ou uma jovem que se queixa de ter morrido demasiado cedo; preenchem os formulários adequados e aguardam. Depois surge uma sequestradora. Transforma todos os presentes em reféns e exige falar com deus. É-lhe explicado que se quer falar com deus, basta rezar. Responde que a reza é sempre um monólogo e ela pretende dialogar; que o problema do mundo (e do céu) é que todos falam mas ninguém ouve. A tensão cresce, a confusão instala-se, a discussão generaliza-se. Como sempre acontece nos momentos menos oportunos, surge uma inspecção. A desordem aumenta, o conflito é permanente. E então surge finalmente deus, acompanhado da secretária. Entre discussões e reflexões, cantorias e piadas, tensões e relaxamentos, os diferentes monólogos vão-se tentando aproximar e conciliar de modo a formarem diálogos. Todos se revelam imperfeitos, todos se sentem incompletos, todos se queixam; porque falta sempre qualquer coisa. Este é um breve resumo da peça “Falta aqui qualquer coisa”, que escrevi para O Nariz – Teatro de Grupo. Está a ser ensaiada e deverá estrear no início do próximo ano; por enquanto, haverá uma leitura pública no dia 11 de Outubro (22h, Espaço O Nariz). Tal como acontecera antes, com a peça “Libelinhas”, deslumbra-me a magia de alguém pegar num texto que escrevi e lhe dar vida, corpo e som, intensidade e espessura, riso e cor, movimento, humanidade. Há uma generosidade nestas pessoas que me comove sempre; durante algumas horas por semana, suspendem os seus problemas, as suas dores, os seus prazeres, as suas prioridades; e apesar das diferenças, unem-se para criar algo comum, algo que contém um pouco da sua individualidade e da sua personalidade, da sua alma. No início há apenas palavras escritas; a arte de encenador e actores está em transformar essas palavras num espelho vivo, onde cada espectador se pode encontrar. E espera-se que cada espectador, tal como a sequestradora da peça, busque diálogos e não se resigne a monólogos; que perante a peça, encontre uma forma de interagir com aquelas personagens, com aquelas ideias, com aqueles sentimentos; que não se limite a escutar, ver, sentir; mas que responda, que reaja, que se manifeste. Que ria. Que dialogue. Porque talvez nos falte sempre qualquer coisa, a todos; e isso une-nos: a busca, a necessidade de compreender, de pertencer. Talvez o conforto seja nosso inimigo; porque enquanto nos falta alguma coisa, não nos resignamos a parar. É isso que nos desassossega e inquieta; e talvez seja isso que nos faz mover e avançar. Haverá sempre quem escreva ou represente, quem leia ou assista a espectáculos teatrais; quem procure construir diálogos. Porque falta sempre qualquer coisa; e ainda bem.

Crónica para o Jornal de Leiria.

2

Janelas que se abrem, sorrisos que nascem.




Janelas que não se fecham, sorrisos que permanecem.

O mito da criação

Havia um jovem deus que vivia num sítio pouco conhecido do universo. Certa vez cometeu um desvario que irritou os pais e foi castigado; deveria passar um dia longe de casa. Para cumprir a punição, optou por um pequeno planeta abandonado, de que nada se sabia porque ficava distante. Não era uma escolha óbvia, sendo o seu objectivo deixar a mãe um pouco ansiosa; desse modo, talvez ela abreviasse a duração do castigo. Lá foi cumprir a sua penitência; contudo, logo se arrependeu da escolha: era um sítio sem vida nem emoção, sem diversidade, onde dominava o azul dos oceanos e o castanho da terra; e nada mais existia. Deambulou por ali sem propósito nem objectivo, apenas para passar o tempo. Mas como tantas vezes acontece, o aborrecimento gerou acção. Quis atenuar o tom monótono daquela paisagem. Porque sim. Porque podia. E assim fez: imaginou umas criaturas simples mas belas que se ergueriam do solo em direcção às nuvens e se agitariam suavemente ao ritmo do vento. Inundou o planeta de árvores; o verde passou a ser uma das cores dominantes e o sussurro das folhas a agitarem-se propagou-se em todas as direcções. O jovem deus contemplou a sua criação e durante algum tempo sentiu-se bem consigo próprio. Mas depois interrogou-se sobre as limitações do que fizera. Cada árvore estava fixa num local e impossibilitada de se mover, pelo que apenas podia contactar com as suas vizinhas; e se determinada árvore quisesse estabelecer relações com uma outra árvore que vivia distante? Pareceu-lhe que a melhor forma de ultrapassar esta limitação seria criar um modo de as árvores comunicarem à distância, transmitindo entre si mensagens e emoções. E assim nasceram os pássaros. Passeou pelas florestas e viu como ficavam repletas de aves de todas as cores e formatos, que se agitavam de ramo em ramo, elegantes e alegres, transportando os recados das árvores, criando uma sonora rede de infinitas conexões; enchendo o ar de música. Entusiasmou-se com o seu poder e foi adicionando novas criações, imaginativas mas pragmáticas, sempre em função das árvores e das suas necessidades. Foi assim que, por exemplo, surgiram os macacos para colherem as frutas ou as iguanas para controlarem o excesso de folhas ou tantos outros animais que desempenhavam tarefas específicas. E se uma árvore morresse? Deveria permanecer indefinidamente no local onde vivera? Achou que não. Sempre que uma árvore morresse deveria ser cuidadosamente recolhida, transportada, homenageada; e para desempenhar essa delicada função, surgiram os homens. A sua criação, nascida do aborrecimento, aperfeiçoava-se. E estava tão entretido que até se irritou um pouco quando a mãe o chamou; a estratégia resultara e o castigo fora abreviado. Mas a verdade é que estava orgulhoso: dera uma nova vida àquele planeta e dispusera as coisas de forma a que essa vida se desenvolvesse harmoniosa e durável, autónoma; feliz. Pensou: é bom ser um deus. E regressou a casa, logo esquecendo o planeta das árvores.

Crónica para o Jornal de Leiria.