
Galeria
















Andare dove? L’uomo nel paesaggio – Alberto Sughi
April in Paris – Eric Fischl
Artistin (Marcella) – Ernst Ludwig Kirchner
Automat – Edward Hopper
Compartment C, Car 293 – Edward Hopper
Due donne, Notturno – Alberto Sughi
Femme qui tire son bas – Henri de Toulouse-Lautrec
Holiday Inn afternoon – Andrew Valko
Il banco del bar – Alberto Sughi
Krefeld Project, bedroom scene 5 – Eric Fischl
Krefeld Project, living room scene 5 – Eric Fischl
La famiglia, l’amore – Alberto Sughi
Naufragio – Alberto Sughi
Sunlight in a cafeteria – Edward Hopper
Tell a marketer – Kenney Mencher
The raft – Eric Fischl
Underground fantasy – Mark Rothko
Esboço # 17
Só pode, então, ter sido por absoluta distracção que naquela monótona tarde de domingo começaram a falar (a chuva batia nos vidros com um ruído agressivo enquanto a televisão disfarçava a cinzentude da sala – das vidas – com explosões de cor regulares; e havia um cheiro peculiar e insidioso, estranho, que ambos – em separado – tentavam identificar). Sim, começaram a falar, palavra após palavra, dizendo e escutando, olhando; e depois: o diálogo foi crescendo lentamente, sereno e agradável.
Foi a primeira vez que falaram em divórcio.
# 53: Seis horas, quase sete
1.
Sim, suponho que continuo (ainda) à espera que chegues. Que venhas: e sorrias. Dirás (talvez) que tiveste saudades e olharás para mim em silêncio, durante um instante; e depois? Um beijo, breve, na face ou na testa ou no cabelo; e pegarás no meu copo de água, beberás um pouco. Depois, ficaremos em silêncio, olhando-nos sem pressa nem embaraço, confortáveis. Sem nada para dizer, para acrescentar.
2.
Enquanto fixo o olhar no vazio, por momentos incapaz de controlar (de perceber) os pensamentos que me distraem e alienam, lembro abruptamente o que me explicaram: o carro permaneceu durante horas debaixo das árvores (pinheiros, eucaliptos, ciprestes?), imóvel e silencioso, invisível, enquanto outros carros passavam pela auto-estrada, fulgurantes ou lentos, ruidosos (a noite avançava, escura e sombria, húmida); e tu: morto; eu: desmaiada; é o que contam (vozes sussurradas e pesarosas, comovidas), por isso talvez seja mesmo verdade. Estivemos ali todo aquele tempo (seis horas, quase sete), juntos; ambos mortos. Mas eu (dizem) decidi acordar (não sei bem porquê, para quê); e tu: não quiseste.
Olho em frente, refugiada nos óculos escuros (ofereceste-mos no meu último aniversário, lembras-te?) e envolvida pelo ruído matinal do café, enquanto vou pensando – uma vez mais – no que me contaram e explicaram, no que sou incapaz de recordar (pergunto-me como teria reagido se realmente tivesse acordado e te visse a meu lado, morto; talvez gritasse; talvez me deixasse morrer; talvez fugisse). E o cigarro vai-se esfumando, lentamente; talvez beba um pouco de água, daqui pouco. Passam pessoas perto de mim mas ninguém me olha. O chá deve ter arrefecido: esqueci-me de bebê-lo.
Continuo a olhar em frente, é tudo o que consigo fazer.
3.
Houve uma ambulância, disso lembro-me; depois, os corredores iluminados do hospital – paredes brancas manchadas pela humidade, cartazes de farmacêuticas; o rosto sorridente de uma enfermeira. E eu de olhos abertos mas sem ver nada, incapaz de perceber; gritos distantes, um riso dissimulado; o toque de um telefone, insistente. A enfermeira: sorrindo (dentes pouco cuidados, desagradáveis; e eu a perguntar-me: haverá algures um homem capaz de beijar esta boca, dia após dia?); e o sorriso a tornar-se vagamente desagradável, asfixiante.
Reparo, depois, que tenho a roupa rasgada; mas não me assusto (o que é estranho), tento simplesmente pensar no que poderá ter acontecido, recordar; apetece-me perguntar mas um pressentimento malévolo impede-me de fazê-lo, retrai-me; e, na verdade, não saberia o que perguntar. A enfermeira afastou-se e está, agora, a conversar com outra enfermeira; ainda sorri. Passa um médico, sem pressa, que não me olha. Ouço o ruído de uma sirene, muito distante, aproximando-se. Um ressonar longínquo, o apito regular de um qualquer aparelho hospitalar. Não sei quanto tempo terá de passar até alguém, finalmente, me explicar o que estou a fazer num hospital, estendida numa maca.
4.
A uma mesa do canto do café está sentado um rapaz de cabelos longos e brilhantes – reparo numa borbulha, desagradável, na testa; e há uma cicatriz quase imperceptível no lado esquerdo do nariz; tem um portátil à frente e bebe chá, em goles muito espaçados. Olho as suas mãos, os dedos finos e compridos, muito brancos: suponho que gostava de senti-los a percorrer a minha pele (acariciando), a minha carne (excitando); mas depois, logo depois, o pensamento desfaz-se, o desejo dissipa-se (na verdade, não chegou a existir). Poderia continuar a olhá-lo indefinidamente, com curiosidade, quase com interesse – aprendendo, até, a apreciar as suas imperfeições (a borbulha, a cicatriz, todas as outras); perguntando-me o que pensaria de mim, se por acaso me olhasse; talvez lhe sorrisse, se os nossos olhares se cruzassem; mas: e depois?
(Ou talvez pudesse pegar no telemóvel e ir percorrendo os nomes que guardo na agenda de contactos, tentando lembrar-me de todas as pessoas que fazem parte da minha vida: e perguntando-me se alguma delas estará a pensar em mim, interessada em ouvir-me.)
Há menos gente no café, agora. Lá fora, o sol brilha com excessivo fulgor. Acho que vou acender outro cigarro; e talvez o fume.
5.
Há, então, uma médica que se aproxima; sorri, penso que contrariada, triste. É muito nova, com um aspecto quase adolescente; mas, apesar disso, o seu olhar parece-me estranhamente tranquilo e maturo; permanecemos em silêncio durante um instante, à espera de algo indefinido (sinto o seu perfume discreto e enigmático; tão agradável); percebo que ela aguarda uma pergunta minha, a que certamente responderá com serenidade e afecto; mas (ainda) não sei que pergunta deva fazer. E os segundos vão passando, inconsequentes (perdidos); a fragrância do seu perfume a aproximar-nos. Então, sinto uma ponta de incómodo e apetece-me desviar o olhar, afastar-me e afastá-la; mas não chego a fazê-lo. Porque antes ela estendeu a mão e pousou-a no meu rosto, acariciando-me a face.
É ela que me fala do acidente, pela primeira vez; que me explica como fiquei uma eternidade (seis horas, quase sete) nos destroços do automóvel, talvez desmaiada, talvez em choque; que me conta (voz terna e pausada, embaladora; e a mão, pressionando) que morreste. Depois: um silêncio longo e desconfortável, tenso. Apenas então retira a mão da minha face, interrompendo a carícia; olha-me durante um momento e depois afasta-se, com passos lentos mas firmes, deslizando pelo corredor iluminado; fico a olhar para as suas costas, para o ritmo e simetria do movimento dos seus braços (ainda sentindo o seu toque suave), até que desaparece numa porta que, após a sua passagem, se fecha sozinha, ficando a balançar durante alguns segundos; e a presença do seu perfume dissipando-se no corredor, na minha memória.
6.
Vou esperando, sem impaciência. Alguma gente espalhada pelo café, indiferente e desinteressada; o tempo a passar, lento e regular, compassado, sem destino nem objectivo. O riso abafado (envergonhado?) de alguém; murmúrios de pessoas que falam baixinho, como se o que têm a dizer fosse um precioso e frágil segredo.
Reparo que, agora, há um homem de aspecto sorumbático e nervoso sentado junto ao rapaz do portátil; reparo, também, que os dedos finos e compridos, muito brancos, estão pousados na mão do homem. Tão patético que é o amor, a agressividade da sua ostentação; mas sinto inveja. Depois, logo depois, ignoro quem me envolve (as personagens que compõem este meu cenário) e volto a retirar-me do mundo; refugio-me em mim, nos pensamentos e nas memórias, nas dúvidas.
Olho a entrada, para além da entrada; sim: ainda espero que chegues. E então, quando chegares, depois de me sorrires e de me beijares e de me sorrires de novo, após o silêncio se instalar confortavelmente – há muito que, entre nós, se acabaram os murmúrios e os segredos –, talvez consiga olhar-te, sem desafio nem acusação, e perguntar-te (finalmente) há quanto tempo deixámos de nos amar.
7.
A enfermeira regressa. Pergunta (voz terna e atenciosa: profissional) se preciso de alguma coisa, sabendo que nada responderei. Sorri. Temo que me vá acariciar o rosto ou a mão, imitando a médica, mas não o faz, o que me alivia profundamente. Olha-me, apenas: sem desconforto nem pressa, paciente. Continua a sorrir. Talvez se pergunte de que estou à espera para começar a chorar.
Olho-a, sem animosidade. Talvez devesse explicar-lhe por que não estou a chorar. E penso nisso: há quanto tempo não choro? Olho o seu rosto simpático e curioso, interessado (sim, suponho que interessado), e tento recordar a última vez em que chorei; os segundos vão passando, monótonos: e não consigo.
Suponho que poderia explicar-lhe que, afinal, um marido é apenas uma pessoa com quem se vive, que nos sorri e nos ouve e nos fode e nos aborrece e nos ignora e nos diz – por vezes, é verdade – que nos ama; talvez ela entendesse.
8.
Continuo, então, à espera (não chegámos a despedirmo-nos: e gostava de o fazer). À espera que venhas: e sorrias. Dirás (certamente) que tiveste saudades e olharás para mim em silêncio, durante um instante; e depois? Um beijo, breve, na face ou na testa ou no cabelo; e pegarás no meu copo de água, beberás um pouco – é uma forma dos nossos lábios se tocarem. Depois, ficaremos em silêncio, olhando-nos sem pressa nem embaraço, confortáveis. Sem nada para dizer, para acrescentar.
# 52: Um vestido vermelho

Continua sentada ao piano, passando os dedos pelas teclas, sem me olhar. Talvez se pergunte por que razão não reagi à sua entrada na sala, à sua escolha de roupa; optou por um vestido vermelho, longo e sem mangas, que há muito tempo não lhe via; talvez já esteja arrependida da escolha, talvez até se sinta ligeiramente desconfortável – é verdade que o seu corpo já não possui a elegância (a elasticidade) de outros tempos; e ela sabe-o, claro que sabe. Seria possível (aceitável) regressar ao quarto e mudar para algo completamente diferente, algo mais convencional – talvez aquele fato preto que comprámos na última viagem, por sugestão minha – mas é provável que não sinta qualquer motivação para o fazer; ou, pelo menos, que não sinta motivação suficiente; que diferença faria, afinal? Quem se importaria?
Toca uma qualquer melodia monótona e indefinida, que aprendeu algures durante a infância e que certamente não conseguirá identificar, reproduzindo-a mecanicamente, sem paixão nem virtuosismo, talvez sem gosto; depois pára, abruptamente; e o silêncio súbito é agradável, tranquilizador. Pensa (imagino eu que pense) na última vez em que usou o vestido vermelho – aquele baile de gala, quando o pai dela se reformou; lembro-me de repente, não sei como nem porquê; mas lembro-me: tão bem; e consigo, durante um fugaz momento, evocar a serenidade do seu rosto feliz, o cheiro do seu cabelo; a sua mão, pousada na minha. Recordará: tentando contabilizar quantos anos passaram. Quatro, suponho; ou cinco? Não: quatro. E (perguntará a si própria, distraidamente) o que mudou em todo este tempo, para que serviu – para que serve – a lenta passagem dos dias, dos meses, dos anos?
Respira fundo – o ar fresco entra no seu corpo com suavidade, o peito sobe com elegância – e volta a dedilhar as teclas do piano, sem intenção nem vontade. Pouco mudou, quase nada; ou tudo mudou. Haverá (pergunta-se ela; pergunto-me eu) realmente mudança ou apenas uma sugestão – um desejo (persistente e ingénuo, utópico) – de mudança?
2.
Viro a página do jornal, atento aos ruídos da rua, à aproximação de passos – a que horas chegará ele, afinal? Durante um breve instante apetece-me quebrar o silêncio e falar, talvez dizer algo que nos aproxime um pouco, momentaneamente; mais: provocar-lhe um sorriso – tão ambicioso que me sinto hoje –, mesmo que breve e quase (quase) imperceptível, mesmo que secreto (ou até inexistente: desde que o consiga imaginar); contudo, não me movo, suspeito que durante uns instantes nem me atrevi a respirar (temendo o quê?). Mas para que serviria, afinal, o sorriso? Que faria ela com ele? E depois, que viria depois do sorriso? Aperto o jornal nos dedos, com desnecessária violência, enquanto uma inesperada interrogação me percorre a mente, provocatória e insidiosa: para que servem os sorrisos? Viro mais uma página do jornal, devagarinho. A gravata aperta-me. Sinto fome. E pressa: de que este momento passe e venha outro.
Ela volta a insistir com o piano, repetindo a melodia de há pouco (e de repente, sem motivo nenhum – absolutamente nenhum –, a escolha do vestido vermelho parece-me acertada; excitante). Na verdade, não faço ideia do que estará a pensar (alguma vez fiz?), do que estará a sentir. Distraio-me com o cheiro do seu perfume, que me parece um pouco agressivo, pergunto-me se lho terei oferecido; talvez. Volto a concentrar-me no jornal, diligentemente: um político que se suicidou, não se sabe porquê; leio umas linhas, olho a fotografia de um homem sorridente (sim: para que servem os sorrisos?). Continuo a ler; volto a olhar a fotografia do político – penteado impecável, invejo-o. O que me apetecia realmente era ir dormir; aconchegar-me a mim próprio, fechar os olhos; e adormecer, sem me preocupar se ressonarei demasiado ou não. Sozinho? Sim, penso que sim: adormecer sozinho.
Mas arrependo-me do pensamento (arrependo-me? Não; envergonho-me, apenas.); e quase ergo a cabeça, para a olhar. Poderia – fantasio, sem convicção; sabendo que não o farei – esticar a mão e tocar-lhe o braço nu, sentir a sua pele na ponta dos dedos (outra vez, mais uma vez), talvez sentir o arrepio do seu corpo (mas: e depois?). Mais uma pergunta repentina e inesperada, desconfortável, flutuando-me pela mente: para que servem, afinal, as carícias? Fecho os olhos durante um instante, aborrecido com a monotonia dos meus pensamentos; depois, abro-os: e nada mudou.
3.
Inesperadamente, ela fala (e o som repentino da sua voz parece-me belo); pergunta, sem me olhar: lembras-te que, uma vez, fizemos amor contra este piano, de pé? Ergo a cabeça, muito devagarinho, sem a olhar, um pouco curioso, um pouco assustado. E ela prossegue, melancólica (sim, tão bela que me soa a sua voz): numa noite de Verão, quando regressámos de uma festa qualquer, lembras-te? Foi assim um bocado à bruta e acabaste muito depressa, mas foi tão bom. Mesmo bom. E depois rimos muito alto, juntos. E fomos para a cama, continuámos a fazer amor, mais devagar, menos sôfregos. Lembras-te?
Não, não me lembro.
Galeria # 02
E a noite avança, vagarosa. Uma delas puxa o vestido, ajeitando o decote; a outra olha a sua companheira sem curiosidade nem interesse, cruza os braços em cima da mesa. Passam dois homens, ambos carecas, rindo alto; eles não as olham, elas também não. Há outras mulheres, noutras mesas: também à espera, ajustando os seus vestidos; e homens: quase sempre rindo alto, talvez rindo com tristeza; quem sabe o verdadeiramente significado de um riso, afinal? Um ruído confuso e caótico, difuso, quase ensurdecedor: a envolver tudo, todos. Unindo.
Inesperadamente, uma das mulheres suspira baixinho, quase com vergonha. A outra diz, num tom cansado e absorto: é esse o barulho que a alma faz, quando se lamenta; e durante um breve instante, parece que vai sorrir; mas não o faz.
Muito tempo depois, uma das mulheres puxa o vestido e ajeita o decote.
Galeria # 01

Alberto Sughi - La famiglia, l'amore
Mas, no quarto do lado, o menino começa a ressonar suavemente; esqueceste-te de fechar a porta outra vez.
Esboço # 15 (Extended vocal remix)
(Todos se empenham em não olhar para ninguém, em evitar o olhar de alguém.)
MULHER: Um dia, perguntou-me se comigo era parecido. (Pausa breve.) Desatei a rir. (Sorri. Bebe mais um gole de chá.)
(O MARIDO agita-se quase imperceptivelmente mas com visível desconforto.)
MULHER (após um momento de silêncio): Diz ela que o que lhe custa mais é que o marido já nem se esforce em fingir interesse. As pessoas pensam que surpreenderem alguém a fingir é uma desgraça, uma falta de respeito, um motivo para choros e separações; mas ela não concorda. Acha que a partir de certa altura a existência de fingimento é uma espécie de revelação de empenho, de preocupação pelos sentimentos do outro. (Pausa breve.) Claro que surge sempre aquele momento em que já não há surpresa, em que as pequenas rotinas se vão repetindo rotineiramente, em que a previsibilidade se torna algo quase confortável. Mas se alguém se der ao trabalhar de fingir que poderá não ser sempre assim, ou até de fingir que mesmo que seja assim para sempre não faz mal, bom, diz ela, é porque merecemos o esforço; e que bem que isso saberia, que novidade seria. (Pausa breve.) Até porque a alternativa é continuar como empregada de pensão para sempre.
MARIDO (dirigindo-se à MULHER, num tom quase rude): E porque achas que a tua amiga merece mais que isso?
(A MULHER olha o MARIDO, pela primeira vez. Sorri, muito levemente. Depois afasta o olhar, ignorando-o.)
MULHER (dirigindo-se ao AMIGO): Sabes onde estávamos, quando ela me contou estas coisas?
(O AMIGO abana a cabeça, sem olhar a MULHER.)
MULHER: Na cozinha. (Ri.)
(O AMIGO sorri, desconfortável.)
MULHER: Ela ia falando e eu acenava com a cabeça. Descascava umas cebolas e assim, para uma sopa. E ela falava e falava e falava.
AMIGO: Precisava de atenção, de uma audiência.
MULHER: E não precisamos todos? (Pausa breve.) Deixei-a falar, até se cansar. Tentando perceber, tentando identificar-me com o que ouvia; ou evitando identificar-me, não sei. Como alguém que vai ao teatro e está ali na sombra, a escutar, assimilando. (Pausa breve.) E depois, sabes o que fizemos?
(Toca um telemóvel; o AMIGO retira-o do bolso e fica a olhar para ele, sem contrariedade nem excitação; esperando, simplesmente. A MULHER olha-o com curiosidade, o MARIDO também; depois acende um novo cigarro e olha a nuvem de fumo a subir. O telemóvel cessa de tocar mas o AMIGO continua a olhá-lo durante uns segundos; depois arruma-o no bolso.)
MULHER (dirigindo-se ao AMIGO): Vimos televisão. (Breve pausa.) Em silêncio.
AMIGO (com alguma timidez): Não tinham nada para dizer.
MULHER: Não tínhamos nada novo para dizer.
AMIGO: Por vezes, sentimos uma vontade de falar violenta; não é? Precisamos de nos ouvir falar, para confirmar que estamos vivos, que existimos, que ocupamos um espaço e um tempo, que fazemos alguma espécie de diferença. (Pausa breve.) Mas noutras alturas optamos pelo silêncio, porque preferimos esquecer que existimos. Preferimos esquecer o que somos.
MULHER: Estás a querer dizer que o problema é não conseguirmos gostar de nós próprios? Apreciar o que somos?
AMIGO (enfrentando o olhar da MULHER): Se calhar o que quero dizer é que todos temos uma necessidade um pouco mórbida de nos sentirmos especiais e únicos. (Pausa breve.) E depois há alturas da nossa vida, muitas alturas, em que ninguém está particularmente interessado em nos mostrar essa especialidade, ou pior: em que ninguém a vê, a sente. E, um pouco para nos defendermos, deixamos de procurar pessoas que nos mostrem o quanto somos especiais, preocupando-nos apenas em evitar pessoas que nos lembrem o quanto não somos especiais.
(O MARIDO ri com algum desdém, sem erguer o olhar. A MULHER bebe um gole do seu chá.)
AMIGO (com falso entusiasmo): Transformamos os outros em espelhos, é o que é. Olhamos alguém com esperança que esse alguém reflicta aquilo que acreditamos ter de melhor; mas se o que o outro reflecte é menos agradável, a culpa só pode ser do espelho. (Sorri, com algum desconforto.) Acreditamos, ou queremos acreditar, ou fingimos acreditar, que a nossa imagem nunca é má, não pode ser má; quem a reflecte é que a distorce.
(Ninguém se olha. Silêncio longo e opressivo.)
MULHER (em tom meditativo): E por isso receamos, tantas vezes, olhar os outros: com medo de nos encontrarmos a nós próprios. (Pausa breve.) E de não gostarmos do que encontramos.
AMIGO (quase triste, cabisbaixo): Não olhamos para não nos encontrarmos. E não gostamos de ser olhados, para que ninguém nos culpe pelo que possa encontrar.
MARIDO (com alguma indiferença): Então, quem tem sorte são os cegos. Não é?
(A MULHER e o AMIGO olham o MARIDO, com algum desagrado, um pouco surpreendidos. Pouco depois, e quase em simultâneo, começam a rir.)
Esboço # 16
– Uma noite estávamos no carro, de regresso de um sítio qualquer, de um restaurante ou assim, nada de especial: os dois calados, com pressa de chegar a casa, com vontade de dormir, de encerrar o dia e esperar pelo próximo. Íamos em silêncio, talvez um pouco distantes, cada um a pensar nas suas banalidades secretas e mesquinhas e irrelevantes; eu a conduzir, ela a olhar pela janela; carros a ultrapassarem-nos, camiões muito iluminados por todo o lado, semáforos intermitentes; o cheiro do perfume dela ainda muito intenso, quase desagradável. Não estávamos chateados ou amuados ou indispostos: apenas sem vontade de partilhar fosse o que fosse, de falar ou ser ouvidos, de pensar alto, de verbalizar sentimentos, estados de espírito, sensações insignificantes.
– Mas confortáveis.
– Sim, bastante. E como o rádio estava ligado, baixinho mas perceptível, havia música a preencher o espaço entre nós. Percebes? A acompanhar-nos. De certo modo, a unir-nos e a alienar-nos, em simultâneo.
– Isso acontece com toda a gente. Há sempre alguém que liga o rádio; que tenta desligar o silêncio.
– Então, íamos ali atrás de um camião vagaroso, no rádio uma música um bocado irritante mas que ela ia a assobiar, baixinho. Pressa de chegar, de estar noutro lado. E dei por mim a pensar num pormenor em que já reparara antes, noutras noites silenciosas, mas a que nunca dera grande importância.
– Qual?
– Sempre que entrávamos no carro, a primeira coisa que ela fazia, depois de apertar o cinto, era ligar o rádio. Sempre. Mesmo que estivéssemos a conversar ou a rir ou chateados ou com dor de cabeça. E de repente, percebi porquê. Percebi, simplesmente: sem que estivesse à procura de um explicação, sem sequer suspeitar que havia uma explicação, uma necessidade de explicação. Percebi.
– Porque se sentia desconfortável. E precisava de preencher o silêncio.
– Sim. Enchê-lo. Disfarçá-lo.
– Desligá-lo.
– Isso: desligar a intimidade. A proximidade.
– E como te sentiste, perante essa descoberta? Perceberes que a tua mulher não tinha nada para te dizer, não se sentia confortável na tua presença: ao ponto de precisar de preencher o silêncio com música, com vozes estranhas, com o barulho da publicidade. O que sentiste?
– Fiquei magoado, claro; senti-me enganado e despeitado, atraiçoado. Mas havia outro sentimento que se sobrepunha ao ressentimento, suplantando a dor. Que prevalecia.
– Alívio. Porque sentias o mesmo: também não tinhas nada para lhe dizer, e incomodava-te a obrigação de partilhar com ela o vazio, de assumir o silêncio; de enfrentar o fracasso evidente da vossa relação. Alívio por perceberes que a culpa não era apenas tua.
– Sim: divisão da culpa. Percebi, naquela noite escura, enquanto olhava para a traseira do camião vagaroso e aquele assobio alienado, indisposto com o perfume dela, que o problema não era apenas meu; que, afinal, sentíamos o mesmo, apesar de não sermos capazes de falar sobre isso. De não querermos falar sobre isso.
– E o rádio proporcionava-vos um adiamento. Podiam fingir que estavam concentrados na música, a partilhar um gosto comum, uma cumplicidade; confortáveis. Até podiam fingir acreditar que, de certa forma, havia ali uma intimidade agradável, um salutar à-vontade com a presença do outro, com o silêncio do outro.
– Quando o que acontecia, na realidade, é que tentávamos esquecer a presença do outro.
– Tentavam. E conseguiam?
(Mas ela entrou na sala, nesse momento. E eles ficaram a olhá-la, em silêncio.)
Esboço # 15
Então, afastas-te com passos lentos e arrastados; espreitas o quarto do miúdo, vais à casa de banho. Por fim, sentas-te em frente do computador: e desapareces.
Continuo a preparar o jantar, temperando alface ou desfiando bacalhau, provando o arroz. Há alturas em que me pergunto quando terei deixado de ser tua mulher, aceitando resignadamente este papel de empregada de pensão que me atribuíste; mas, confesso, é raro: prefiro espreitar a televisão, distrair-me. E adiar só mais um dia a pergunta, a decisão: até quando?
Esboço # 14
E, no mesmo instante, enquanto te vejo fechar os olhos suavemente, enquanto sinto o breve toque dos teus lábios, aceito a irremediável verdade: sim, estás apaixonada. Um segundo depois, quando já afastas o teu rosto, olhos ainda fechados, já tão distante, não resisto a perguntar-me: por quem?
Mas, na verdade, acho que nem quero saber.
Esboço # 13
Abro os olhos. À minha frente, as tuas estantes de livros; centenas e centenas de volumes: o teu orgulho. Sorrio, melancólico: recordando-te na tua poltrona, com um qualquer destes livros nas mãos; e o teu olhar: tão feliz.
Volto a fechar os olhos, de súbito invadido pela tristeza, pela dor; pela revolta, também. E pergunto-me: para quê tanta leitura? Que diferença fez? Pergunto-te, apenas agora, demasiado tarde: Oh pai, não teria sido tão bom se o tempo que gastaste a ler todos estes livros tivesse sido passado comigo?
Esboço # 12
O autocarro a avançar, lento; pessoas alheadas e indiferentes. Lá fora: a cidade a deslizar, longínqua. E de repente: começas a chorar; em silêncio, secretamente. Devagar, tão devagar.
Não sei porque o faço: mas estendo a mão e procuro-te.
Mais tarde: largas-me os dedos; depois, levantas-te. Sais: e a cidade continua a deslizar, desinteressada. Levando-te.
Não chegaste a olhar-me.
Esboço # 11
Depois, despia-a. Devagar, peça a peça; estudava cada pormenor do corpo, com ansiedade e deleite: como se fosse o primeira mulher que via nua perante si. Por vezes acariciava-a, com timidez, quase com reverência; ou aproximava o rosto e observava, atento. Beijava, também: a coxa, o mamilo, o umbigo; mas sem sofreguidão nem impaciência.
Mas quando conhecia detalhadamente o corpo nu e a volúpia da revelação se dissipava, afastava-se delicadamente. Para ele, bastava. O prazer estava, todo, na descoberta de um novo corpo; fodê-lo aborrecê-lo-ia imenso.
Esboço # 10
Fui lendo, dia após dia, livro após livro. Evocando memórias e sensações, revivendo os longínquos dias em que aquelas mesmas linhas me insuflavam de ânimo e sonho, de esperança; de ilusão. Mas agora: apenas nostalgia; e a certeza, chocante, de que o tempo não volta atrás, não pára, não chega.
Os livros de volta às estantes, desordenados. E o Verão: perdido. Gasto.
Esboço # 09
No outro dia, senti algo semelhante em relação ao elevador: mais vagaroso, como se estivesse cansado; e também o autoclismo: tanto tempo para encher. Tudo mais demorado; ou serei eu: mais lento em relação à vida? Ou mais impaciente em relação ao mundo?
Com pressa: de quê?
Esboço # 08
Quando o corpo começou a exigi-lo, experimentei satisfazer-me sozinha. Pensava em ti, fantasiava o teu desempenho; e tocava-me. Na verdade, não te recordava: reinventava-te. De certo modo, continuava a fazer amor contigo; mas de uma forma mais confortável e livre; sim: mais satisfatória.
Esboço # 07
Sim, percebera há muito que a sua vida era um extenso catálogo de fingimentos: para cada circunstância escolhia a personagem adequada e encarnava-a. Actriz a tempo inteiro, na verdade.
Até que, certo dia, apaixonou-se. E disse-lhe: amo-te tanto. Ele encolheu os ombros, indiferente: como poderia adivinhar que ela efectivamente (e talvez pela primeira vez) sentia o que dizia?
Esboço # 06
No quarto, deixou que o seu amante a despisse lentamente, embalado pelo entusiasmo da descoberta de um novo corpo. Depois, fizeram sexo demoradamente, concretizando semanas de fantasias.
Quando terminaram, ele caminha pelo quarto; liga a televisão; pega no telemóvel e fala com alguém do banco. E ela, decepcionada, pensa: se quisesse apenas foder, ficava em casa. Depois, di-lo.
Esboço # 05
Entram no hotel em silêncio, um pouco apressados, tentando dissimular a ânsia. Beijam-se; despem-se; fodem.
Depois: deitados, ainda um pouquinho ofegantes; confortáveis, quase saciados. E alguém pede, num murmúrio: diz que me amas; o outro corresponde, sem embaraço: amo-te. E adormecem, talvez felizes.
Não chegaram a dizer os respectivos nomes.