Janelas / Nascimento / Montras / Asas & Braços / Espelho

Cinco textos para o projecto Sílaba Súbita.  








 (Fotos: Sílaba Súbita)

Falta-me

Um micro conto em cinco partes, para a Sílaba Súbita

(Fotos de Sílaba Súbita)









Ebook novo

Um conto visto por 25 fotógrafos. Aqui.


Legos

«Uma caixa de legos, era isso que me deixava ansioso naquele dia; vira-a numa montra muito tempo antes, de passagem, e ficara a pensar nela. Tinha dois camiões de bombeiros vermelhos, bem grandes (um daqueles de levar água e outro com escadas gigantes), uma ambulância branca e cinco figuras fardadas com utensílios de salvar vidas; reparara em tudo isso e logo ficara apaixonado, a pensar nas tardes de domingo que poderia passar a construir e a brincar; também reparara na etiqueta do preço, que dizia: cinco contos, setecentos e cinquenta escudos; sabia que aquilo era uma imensidão de dinheiro porque a minha mesada era de cem escudos. Ainda tentei fazer umas contas para perceber quanto tempo precisaria para reunir todo aquele dinheiro poupando a mesada mas logo desisti. De qualquer forma, o que acabei por fazer foi pedir os legos à minha mãe; ela não deu grande importância mas como nos dias seguintes eu não me calava, lá acabou por fazer uma proposta: se as notas da escola fossem boas na Páscoa, receberia a caixa de legos.»
«Eras bom aluno?»
«Nem por isso, era um bocado preguiçoso.»
«Ainda és?»
«Um pouco. É algo que tenho que me esforçar para contrariar. A preguiça faz parte de mim, da minha essência.»
«E dessa vez, esforçaste-te? Funcionas bem com estímulos, com a perspectiva de recompensas?»
«Não sei. Às vezes. Depende. Dessa vez, até me esforcei; durante uma semana ou duas, pelo menos.»
«Mas não foi suficiente.»
«Não foi suficiente. Acho que no meu caso nunca é o suficiente. Não recebi o que desejava e fiz uma birra monumental, cheguei a ameaçar que fugia de casa. Por causa de uma caixa de lego, para veres como era uma criança idiota. Mas a minha mãe não se comoveu, limitou-se a ignorar-me. E isso, já se sabe, resulta sempre. Somos impotentes perante a indiferença dos outros.»
«Como era a tua mãe?»
«Sorria muito, dava abraços; fazia-me festinhas no cabelo. Contava-me estórias para adormecer; pregava-me partidas e ria muito alto. Era muito bem-disposta, muito generosa. Muito presente.»
«Não tens más memórias dela?»
«Da minha mãe? Não, penso que não.»
«De certa forma, endeusaste-a.»
«Talvez. Qual é o mal?»
«Nenhum. Não estava a criticar nem nada. Mas que aconteceu depois?»
«Decidi poupar dinheiro; o que me davam como presente, algum que ganhei a lavar os carros dos vizinhos, mais qualquer coisa que arranjei quando vendi brinquedos que já não queria aos meus colegas. Também desviei, digamos assim, uma nota de quinhentos escudos ao meu avô.»
«Roubaste? Querias mesmo os legos.»
«Queria. Mas era também uma questão de provar qualquer coisa à minha mãe; como se fosse um duelo ou assim. Uma questão de honra.»
«E conseguiste o dinheiro suficiente?»
«Quando cheguei aos cinco contos, a minha mãe disse que acrescentava o que faltava.»
«E depois?»
«Prometeu que compraria a caixa de legos da próxima vez que fosse à cidade. E a próxima vez foi nesse sábado, esse último sábado. Passei o dia ansioso, à espera, a andar de um lado para o outro, a planear coisas. Ainda não sabia que por vezes mais vale termos sonhos que não conseguimos concretizar, ter apenas os sonhos e nada mais, isso basta; o que nos faz felizes é sonhar, é ter uma perspectiva e um desejo, a sua concretização acaba por provocar um vazio, uma decepção. Claro que outras vezes o que interessa é apenas a concretização e nada mais, a antecipação apenas aumenta o prazer e a intensidade dessa concretização.»
«Que conversa, começas sempre a divagar com filosofias. Que queres dizer com essa história de último sábado?»
«A minha mãe morreu nesse dia. Houve um acidente, os meus pais morreram quando regressavam a casa.»
«Mas que horror. Tinhas que idade?»
«Nove anos.»
«Nove anos.»
«Nove anos. Fiquei sozinho.»
«Como aconteceu? Contas-me?»
«Um despiste. O carro despistou-se e eles morreram. Tão simples quanto isso; mas é sempre assim, não é? Simples. As grandes catástrofes são sempre pequenas quebras na normalidade, algo muito simples e banal mas com consequências devastadoras.»
«Como soubeste? Quem te deu a notícia?»
«O meu avô.»
«Conta-me. Gostava de saber como foi.»
«Estava ansioso que eles regressassem, por causa dos legos; por vezes ia à janela espreitar e ficava a olhar para a estrada, atento ao ruído dos carros. Pensava no que eles poderiam andar a fazer, imaginava-os no carro, calados e sérios, ou a rirem, ou de mão dada. Ia esperando e quanto mais se prolongava a espera, mais enervado e impaciente ficava. Pensava coisas más, tipo não quererem saber de mim e apenas se preocuparem com a sua diversão, coisas idiotas que sabia não serem verdade enquanto as pensava. Não era frequente deixarem-me sozinho mas julgo que estavam a tentar incentivar a minha autonomia; e de qualquer forma, os meus avós viviam por perto, provavelmente vigiavam-me à distância sem eu perceber. Não tenho bem noção do tempo, mas não deverei ter ficado sozinho mais do que uma hora ou duas, apesar de para uma criança isso parecer uma eternidade. De qualquer forma, lá estava a espumar de impaciência. Então, de repente ouvi um carro parar na entrada; tive de fazer um grande esforço para não correr até à janela, para confirmar que eram eles. Obriguei-me a ficar quietinho, a fingir que não estava ansioso. Ouvi passos a aproximarem-se e imaginei o sorriso da minha mãe ao entregar-me a caixa de legos, imaginei-a a dizer-me que a merecera e conquistara, imaginei-a a receber o meu abraço agradecido com o seu riso ruidoso, imaginei-a a olhar-me com alegria quando escutasse o inconfundível som dos legos embatendo na mesa. Tive que conter um sorriso de antecipação, tentar manter uma expressão de indiferença. Mas quando a porta abriu, não foi a minha mãe que entrou.»
«Como era o teu avô?»
«Era muito sossegado e silencioso; era raro vê-lo rir, não por andar mal disposto mas porque era o seu jeito. Nunca o vi chateado ou irritado, era muito paciente e sereno. E um pouco solitário. Portanto, identificava-me bastante com ele. Levava-me à pesca e ficávamos os dois em silêncio, a olhar as nuvens; construía-me animais de madeira e depois pintávamo-los juntos; ensinou-me a trepar árvores, a distinguir os pássaros e a imitar-lhes os cantos. Construía cabanas comigo e levava-me em passeios de motorizada; por vezes dava-lhe para falar e então contava-me histórias da sua infância. Dizia que gostava mais de mim do que da minha avó e do Benfica, juntos. Como imaginas, adorava-o.»
«Que pensaste quando o viste à porta?»
«Fiquei decepcionado, porque estava à espera de ver a minha mãe. Mas nada mais, além disso. Ele ficou ali a olhar para mim e achei isso um bocado estranho; depois, lembrei-me de repente que ouvira um carro chegar. E o meu avô não tinha carro. Fiquei confuso.»
«E então? De quem era o carro, afinal?»
«Era da polícia, que estava lá fora à espera não sei bem de quê. O meu avô aproximou-se de mim, sentou-se ao meu lado no sofá. Estava a ver televisão, não me lembro o quê; já tentei muitas vezes lembrar-me mas nunca consegui, a minha mente apagou essa informação, provavelmente por ser irrelevante e desnecessária; mas gostaria de saber. Estava a ver televisão e ele sentou-se ao meu lado. Ficámos ali os dois, a olhar para a televisão, em silêncio, e comecei a achar aquilo um bocado estranho. Passou muito tempo, pelo menos acho que passou muito tempo. E então ele meteu uma mão em cima do meu joelho e disse: a mamã e o papá não vão voltar nunca mais. Olhei para ele, confuso, sem perceber. Pensei nos legos, durante um momento; depois pensei como iria ser do jantar. Tentei concentrar-me nas palavras, à espera que ele dissesse mais alguma coisa, que explicasse. Mas ele não disse mais nada. Estava a olhar para ele, admirado que a sua expressão, que era muito estranha, uma expressão que nunca lhe vira. Foi a expressão dele que me assustou verdadeiramente, mais do que as palavras que ainda não entendera bem. Olhei bem e, de repente, percebi que o meu avô estava a chorar. Era por isso que não falava; não conseguia. Era por isso que parecia assustador. Ele estava a chorar.»
«Quando é que percebeste o que estava realmente a acontecer?»
«O meu avô acabou por me abraçar; se calhar fê-lo apenas para que não o visse chorar. Mas quando o abraço terminou, ele já se dominara, parecia quase normal. Lá fora havia pássaros a cantarolar e eu disse ao avô, numa voz baixinha: estás a ouvir os melros? Ele acenou com a cabeça e quase sorriu; mas não chegou a sorrir. E por isso olhámos para a televisão, ouvimos os pássaros durante muito tempo. Perguntei, de repente: o que achas que será o jantar? Mas ele nem reagiu. Parecia que íamos ficar assim para sempre.»   
«É desconcertante quando uma pessoa quase sorri mas não chega a fazê-lo. Como se decidisse não o fazer. Como se preferisse não o fazer. Que podemos pensar de alguém que opta por não sorrir? Enfim, desculpa. Estou com devaneios.»
«Sabes o que aconteceu aos legos?»
«Aos legos?»
«Sim. A minha mãe comprara-os, estavam no carro no momento do acidente. Na verdade, foram testemunha do acidente. Talvez tenha sido a última coisa que fizera pensando em mim: comprar aqueles legos e imaginar a minha alegria quando os recebesse. O carro ficou destruído, os meus pais morreram; mas os legos sobreviveram, a merda dos legos sobreviveram. Descobri-os alguns dias mais tarde, quando finalmente tive coragem para entrar no quarto dos meus pais. Fui viver uns tempos com os meus avós mas depois alguém decidiu que seria mais salutar para mim regressar a casa, ao meu ambiente normal, ao meu espaço; e então mudámo-nos todos, eu e os meus avós; fingindo normalidade ou procurando normalidade. E então, um dia, quis visitar o quarto dos meus pais; estar perto deles, senti-los. Sei lá. Tinha nove anos, sabia lá eu o que fazia. Fui. E entre as coisas normais que se encontram sempre no quarto dos pais, estavam algumas que não conhecia, que nunca vira; e adivinhei logo que só poderiam ter sido resgatadas dos destroços do acidente. E entre essas coisas, lá estavam os legos.»
«Que fizeste com eles?»
«Nada. Que poderia fazer? Pensei distraidamente como algo que desejamos pode, de repente, tornar-se algo que odiamos. E fiquei ali, sentado no chão, a olhar para o vazio. Como fazia quando era muito pequeno e acordava de noite, assustado; levantava-me e ia até ao quarto dos meus pais, silenciosamente; sentava-me no chão, mesmo à beira da cama e ouvia-os respirarem, sentia o seu cheiro. E passava muito tempo, ou na verdade talvez só passassem apenas cinco minutos ou assim, e depois lá regressava ao meu quarto e tentava adormecer. Nunca soube se os meus pais sabiam que eu estava ali, perto deles, e fingiam dormir. Foi uma daquelas perguntas que não houve tempo para fazer; porque temos sempre coisas para perguntar mas acreditamos que haverá tempo para o fazer e vamos adiando e adiando e adiando. Não nos passa pela cabeça que os nossos pais possam morrer, não é? Mas morrem e há uma quantidade insuportável de coisas que ficam por perguntar, por dizer, por saber.»
«As coisas verdadeiramente importantes quase nunca nos passam pela cabeça.»
«Ainda tenho os legos mas nunca abri a caixa.»
«Porque os guardaste?»
«Como poderia não guardar? A minha mãe comprou-os para mim, talvez tenha sido a última coisa que fez a pensar em mim. Irei guardá-los para sempre. São uma memória concreta, viva; uma memória em que posso tocar. Sabes, por vezes penso na minha mãe e imagino o que me diria, que conselhos daria, que perguntas faria. Ou, pelo menos, quase consigo imaginar.»     
«E o teu pai? Porque não falaste do teu pai?»
«Não me apetece falar do meu pai, agora. Na verdade, já nem sei porque comecei a falar de tudo isto.»
«Perguntei-te qual tinha sido o pior dia da tua vida. E tu contaste-me algo íntimo e doloroso sem hesitação; confiaste em mim, como se nos conhecêssemos desde sempre. Fico-te muito agradecida.»
«Não precisas agradecer. Quero que saibas de mim, que me conheças, que me percebas, que me sintas.»

E sorriram, olhando-se e silêncio. Era a primeira vez que se viam depois do primeiro beijo, uma semana antes; tinham abandonado o hospital juntos e caminhado até a um cafezinho que existia na esquina, sentindo-se confortáveis com a proximidade do outro; sentaram-se frente a frente, olharam, sorriram. Depois, começaram a conversar. Era suposto almoçarem juntos mas distraíram-se, como se bastassem as palavras para se alimentarem (ambos tiveram esse pensamento mas não o verbalizaram, com receio de parecerem demasiado idiotas). Por três vezes, tocaram-se nas mãos; e custou-lhes muito largarem-se. 

Os inconciliáveis



Conto para o projecto DESASSOSSEGO DAS PALAVRAS, a partir de uma citação de Fernando Pessoa (“A Decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida. O coração, se pudesse pensar, pararia.”) e de uma escultura de Abílio Febra.









- Estava a pensar que te amo tanto. Do fundo do coração. 
- Isso é um pouco estranho.
- É?
- Sim, é. Refiro-me a juntar os verbos pensar e amar na mesma frase. É estranho. Porque se amas, não pensas nisso: amas, e pronto. Mas se precisas de pensar, talvez não ames verdadeiramente. Percebes? Não são acções compatíveis, pensar e amar. 
- És parvo. E cruel.
- Não sou cruel, limito-me a analisar as tuas palavras. De certo modo, afirmaste que precisas de pensar para perceber que me amas. Foi isso que disseste, não foi? Ou seja, está implícito que se não tivesses pensado, não sentirias que me amas. Mas, como é óbvio, o amor não é propriamente um acto de reflexão, não nasce nem se alimenta do pensamento. 
- Mas também disse que te amo do fundo do coração.
- Do fundo do coração? Mas não sabes que o coração é apenas um músculo? Um músculo que faz o sangue circular pelo corpo. Pensar que o coração faz mais do que isso é um pouco idiota, não achas? Romantismo de gente desocupada, fantasia de poeta, devaneio de quem nunca esteve verdadeiramente apaixonado; de quem não ama mas pensa em amar, de quem apenas racionaliza os sentimentos em vez de os sentir; ou de quem os racionaliza por não os sentir. 
- És cruel, sim. Insuportavelmente cruel.
- Estou apenas a dizer que o coração não sente nem pensa nem ama nem sofre nem o raio, percebes? Bombeia sangue e é só. Nada mais. 
- Afinal, acho que talvez tenhas razão. Pensar e amar são acções inconciliáveis. Olha para nós: eu amo e tu pensas, racionalizas, analisas palavras; sou coração, tu és cérebro. Somos inconciliáveis, portanto. Somos mesmo. Descobri-o apenas neste preciso instante, acreditas? 
- Vá, tem calma. Estamos apenas a conversar.
- Foda-se, tanto tempo que perdi contigo. E para quê? Nem sei como é possível o amor esvanecer-se assim, de súbito; aniquilado por palavras. Mas foi o que acabou de acontecer, agora mesmo. Enfim. Julgo que é altura de ir bombear para outro lado, não achas?

On the road #01

Experiências foto-literárias: fotografar e escrever sem pensar (muito). Com Sónia Silva.




Lá fora, chove um pouco; o cinzento da atmosfera contagia-me, invadindo-me e alastrando em mim, tornando-me mais melancólica do que habitual. O carro avança lentamente, percorrendo o cinzento da estrada, atravessando o cinzento da atmosfera, fugindo ao cinzento da vida. Permanecemos em silêncio há muito tempo, aparentemente já dissemos tudo o que havia a dizer; restará, portanto, concluir a viagem e chegar onde nada nos aguarda, abraçar o cinzento que fantasiámos abandonar (um daqueles abraços desconfortáveis, que nos arrepiam um pouco mas não conseguimos evitar; mas será um mau abraço melhor do que nenhum abraço?).
Observo distraidamente os carros que nos rodeiam, cada um deles um universo estanque, misterioso e fascinante, inatingível; e no seu interior, em cada um deles, estará alguém que nunca fará parte da minha vida, uma pessoa que talvez pudesse sorrir-me e pedir-me que a abraçasse, alguém que talvez pense e sinta e fantasie e sonhe e deseje e tema e sofra como eu. Alguém com quem nunca estarei mais próximo do que na partilha, anónima e momentânea, de uma auto-estrada; ou na imaginação.
Olho em redor, pensando na infinidade de possibilidades que não se concretizarão: gente que me poderia fazer feliz mas que nunca chegarei a conhecer; gente que talvez exista efectivamente mas cuja existência é, afinal, irrelevante. E é nisto que penso – gente fantasma; felicidade de assombração – quando, inesperadamente, sinto a tua mão procurar a minha, tocando-a cuidadosamente (como se temesse a sua fuga?), envolvendo-a, apertando-a. Continuo a olhar em frente, um pouco rígida, fixando o vermelho dos faróis dos universos inatingíveis que se movem lentamente. E pergunto-me: mas será que ainda há esperança? 

Sílaba Súbita

Um ano de colaboração com a Sílaba Súbita. Tudo reunido aqui.


O verde da relva


A partir de uma foto de Maria João Faísca.


Olhava o banco abandonado mas nunca parava.

Passava apressado, desejando estar noutro lado qualquer mas incapaz de sentir a importância do momento presente, do momento em que por ali passava. Pensava: caminhar é sempre um adiamento. Ainda não percebera que todos os momentos são, afinal, uma espera. O que acontece é que, por vezes, surgem momentos que consigo saborear e, por isso, nem reparo que são uma espera, sinto-os como uma passagem. No fundo, persigo sempre um absoluto qualquer, momentos e sensações que sejam avassaladoras e insuperáveis; desejo algo monumental e determinante, que me faça parar no tempo, que suspenda o avanço do mundo; e nem percebo que já estou parado; sempre estive, sempre estarei.

Caminhava apressado, olhando o banco abandonado. Caminhar com rapidez significa, afinal, pressa de viver e de sentir; significa urgência. Um desejo e uma necessidade de fugir às esperas que compõem a vida; ansiava continuamente por algo e nem reparava que viver significa estar, e não caminhar. Estar no momento. Mas a vida é conduzida pelo irreal: por desejos e fantasias, por ambições, por medos; e um desejo ou uma fantasia ou uma ambição ou um medo nunca é algo concreto e real, é apenas um pensamento ou uma sensação, algo impalpável e imaterial; na verdade, nada. Um vapor, ou nem isso; um sopro. Mas são esses nadas que me movem, que determinam acções e comportamentos concretos. O imaterial conduz-me, o sopro indica-me uma direcção e empurra-me nessa direcção. Em frente, sempre em frente. Por isso, passava pelo banco, conduzido por um desejo indefinido mas absoluto, e nunca me sentava; se o fizesse, estaria a sincronizar-me com o mundo: assumiria a espera. Porque o mundo está em permanente estado de espera e um banco vazio representa isso mesmo: espera. Mas também possibilidade; o vazio não significa ausência de tudo mas, pelo contrário, possibilidades infinitas. Se algo está vazio, há espaço para ser preenchido por qualquer coisa, por tudo. Seja um banco, seja uma vida.

Olhava e continuava o meu caminho, apressado. E assim teria continuado sempre, se não me tivesses chamado. Eu passava, apressado, e tu disseste:

- Desculpe.

Estranhei porque não é normal que o mundo repare em mim, chame por mim. Sorriste mas era um sorriso triste. Disseste:

- Desculpe. Mas para quê tanta pressa? Porque não se senta durante um minuto?

As perguntas são como janelas, fazem-me olhar para fora de mim próprio. Parei e olhei. E o teu sorriso triste, mais do que as tuas palavras, convidou-me a sentar-me ao teu lado, no mesmo banco que tantas vezes olhara sem ver. Que sempre me parecera vazio mas que, subitamente, transbordava de possibilidade. Deixei-me conduzir pela surpresa e pelo inesperado: sentei-me à tua beira, olhando em frente. E o mundo parou. Não, eu parei. Juntei-me ao mundo: sincronizámos velocidade e ritmo; e esperámos, juntos.

Havia o verde da relva, que subitamente me entrou pelos olhos dentro, como se fosse a primeira vez que compreendesse e sentisse o verdadeiro significado do conceito “verde”; e o amarelo do sol, iluminando a atmosfera e tornando-a perene e suspensa, perseguindo suavemente as sombras. Havia o cheiro das árvores, subitamente avassalador, como se as próprias árvores entrassem em mim e me povoassem. Havia o contacto das minhas mãos com a madeira sólida e antiga do banco (quantas mãos já teriam tocado aquela mesma madeira, deixando nela o toque da sua pele? Quantas pessoas estava a tocar naquele momento, tocando a madeira?). Havia o murmúrio de um qualquer bicho oculto, entrelaçado com o canto distante de um único pássaro. Havia o sabor – mais do que uma memória, o sabor quase concreto – das ameixas vermelhas que comera deitado numa relva assim verde nos verões da minha infância, ouvindo o mesmo pássaro, cheirando árvores idênticas. Havia um mundo a envolver-me, entrando em mim, apropriando-se de mim. Sentia-me entregue a um momento absoluto, simultaneamente espera e passagem. Não sentia nem sonho nem fantasia nem desejo nem ilusão nem ansiedade, apenas o poder dos sentidos prendendo-me ao mundo, à vida. A um banco. À eternidade do momento.

E tu, mesmo à minha beira, perguntaste:

- Há quantos milhões de anos é que o verde já é verde?

Sorri, perguntando-me quantos milhões de instantes e sensações comporão um único momento. Um sorriso concreto e real; como o verde da relva.