Legos
«Uma
caixa de legos, era isso que me deixava ansioso naquele dia; vira-a numa montra
muito tempo antes, de passagem, e ficara a pensar nela. Tinha dois camiões de
bombeiros vermelhos, bem grandes (um daqueles de levar água e outro com escadas
gigantes), uma ambulância branca e cinco figuras fardadas com utensílios de
salvar vidas; reparara em tudo isso e logo ficara apaixonado, a pensar nas
tardes de domingo que poderia passar a construir e a brincar; também reparara na
etiqueta do preço, que dizia: cinco contos, setecentos e cinquenta escudos;
sabia que aquilo era uma imensidão de dinheiro porque a minha mesada era de cem
escudos. Ainda tentei fazer umas contas para perceber quanto tempo precisaria
para reunir todo aquele dinheiro poupando a mesada mas logo desisti. De
qualquer forma, o que acabei por fazer foi pedir os legos à minha mãe; ela não
deu grande importância mas como nos dias seguintes eu não me calava, lá acabou
por fazer uma proposta: se as notas da escola fossem boas na Páscoa, receberia
a caixa de legos.»
«Eras
bom aluno?»
«Nem
por isso, era um bocado preguiçoso.»
«Ainda
és?»
«Um
pouco. É algo que tenho que me esforçar para contrariar. A preguiça faz parte
de mim, da minha essência.»
«E
dessa vez, esforçaste-te? Funcionas bem com estímulos, com a perspectiva de
recompensas?»
«Não
sei. Às vezes. Depende. Dessa vez, até me esforcei; durante uma semana ou duas,
pelo menos.»
«Mas
não foi suficiente.»
«Não
foi suficiente. Acho que no meu caso nunca é o suficiente. Não recebi o que
desejava e fiz uma birra monumental, cheguei a ameaçar que fugia de casa. Por
causa de uma caixa de lego, para veres como era uma criança idiota. Mas a minha
mãe não se comoveu, limitou-se a ignorar-me. E isso, já se sabe, resulta
sempre. Somos impotentes perante a indiferença dos outros.»
«Como
era a tua mãe?»
«Sorria
muito, dava abraços; fazia-me festinhas no cabelo. Contava-me estórias para
adormecer; pregava-me partidas e ria muito alto. Era muito bem-disposta, muito
generosa. Muito presente.»
«Não
tens más memórias dela?»
«Da
minha mãe? Não, penso que não.»
«De
certa forma, endeusaste-a.»
«Talvez.
Qual é o mal?»
«Nenhum.
Não estava a criticar nem nada. Mas que aconteceu depois?»
«Decidi
poupar dinheiro; o que me davam como presente, algum que ganhei a lavar os
carros dos vizinhos, mais qualquer coisa que arranjei quando vendi brinquedos
que já não queria aos meus colegas. Também desviei, digamos assim, uma nota de
quinhentos escudos ao meu avô.»
«Roubaste?
Querias mesmo os legos.»
«Queria.
Mas era também uma questão de provar qualquer coisa à minha mãe; como se fosse
um duelo ou assim. Uma questão de honra.»
«E
conseguiste o dinheiro suficiente?»
«Quando
cheguei aos cinco contos, a minha mãe disse que acrescentava o que faltava.»
«E
depois?»
«Prometeu
que compraria a caixa de legos da próxima vez que fosse à cidade. E a próxima
vez foi nesse sábado, esse último sábado. Passei o dia ansioso, à espera, a
andar de um lado para o outro, a planear coisas. Ainda não sabia que por vezes
mais vale termos sonhos que não conseguimos concretizar, ter apenas os sonhos e
nada mais, isso basta; o que nos faz felizes é sonhar, é ter uma perspectiva e
um desejo, a sua concretização acaba por provocar um vazio, uma decepção. Claro
que outras vezes o que interessa é apenas a concretização e nada mais, a
antecipação apenas aumenta o prazer e a intensidade dessa concretização.»
«Que
conversa, começas sempre a divagar com filosofias. Que queres dizer com essa
história de último sábado?»
«A
minha mãe morreu nesse dia. Houve um acidente, os meus pais morreram quando
regressavam a casa.»
«Mas
que horror. Tinhas que idade?»
«Nove
anos.»
«Nove
anos.»
«Nove
anos. Fiquei sozinho.»
«Como
aconteceu? Contas-me?»
«Um
despiste. O carro despistou-se e eles morreram. Tão simples quanto isso; mas é
sempre assim, não é? Simples. As grandes catástrofes são sempre pequenas
quebras na normalidade, algo muito simples e banal mas com consequências
devastadoras.»
«Como
soubeste? Quem te deu a notícia?»
«O meu
avô.»
«Conta-me.
Gostava de saber como foi.»
«Estava
ansioso que eles regressassem, por causa dos legos; por vezes ia à janela
espreitar e ficava a olhar para a estrada, atento ao ruído dos carros. Pensava
no que eles poderiam andar a fazer, imaginava-os no carro, calados e sérios, ou
a rirem, ou de mão dada. Ia esperando e quanto mais se prolongava a espera,
mais enervado e impaciente ficava. Pensava coisas más, tipo não quererem saber
de mim e apenas se preocuparem com a sua diversão, coisas idiotas que sabia não
serem verdade enquanto as pensava. Não era frequente deixarem-me sozinho mas
julgo que estavam a tentar incentivar a minha autonomia; e de qualquer forma,
os meus avós viviam por perto, provavelmente vigiavam-me à distância sem eu
perceber. Não tenho bem noção do tempo, mas não deverei ter ficado sozinho mais
do que uma hora ou duas, apesar de para uma criança isso parecer uma
eternidade. De qualquer forma, lá estava a espumar de impaciência. Então, de
repente ouvi um carro parar na entrada; tive de fazer um grande esforço para
não correr até à janela, para confirmar que eram eles. Obriguei-me a ficar
quietinho, a fingir que não estava ansioso. Ouvi passos a aproximarem-se e
imaginei o sorriso da minha mãe ao entregar-me a caixa de legos, imaginei-a a
dizer-me que a merecera e conquistara, imaginei-a a receber o meu abraço
agradecido com o seu riso ruidoso, imaginei-a a olhar-me com alegria quando
escutasse o inconfundível som dos legos embatendo na mesa. Tive que conter um
sorriso de antecipação, tentar manter uma expressão de indiferença. Mas quando
a porta abriu, não foi a minha mãe que entrou.»
«Como
era o teu avô?»
«Era
muito sossegado e silencioso; era raro vê-lo rir, não por andar mal disposto
mas porque era o seu jeito. Nunca o vi chateado ou irritado, era muito paciente
e sereno. E um pouco solitário. Portanto, identificava-me bastante com ele. Levava-me
à pesca e ficávamos os dois em silêncio, a olhar as nuvens; construía-me
animais de madeira e depois pintávamo-los juntos; ensinou-me a trepar árvores,
a distinguir os pássaros e a imitar-lhes os cantos. Construía cabanas comigo e
levava-me em passeios de motorizada; por vezes dava-lhe para falar e então contava-me
histórias da sua infância. Dizia que gostava mais de mim do que da minha avó e
do Benfica, juntos. Como imaginas, adorava-o.»
«Que
pensaste quando o viste à porta?»
«Fiquei
decepcionado, porque estava à espera de ver a minha mãe. Mas nada mais, além
disso. Ele ficou ali a olhar para mim e achei isso um bocado estranho; depois,
lembrei-me de repente que ouvira um carro chegar. E o meu avô não tinha carro.
Fiquei confuso.»
«E então? De quem era
o carro, afinal?»
«Era da
polícia, que estava lá fora à espera não sei bem de quê. O meu avô aproximou-se
de mim, sentou-se ao meu lado no sofá. Estava a ver televisão, não me lembro o
quê; já tentei muitas vezes lembrar-me mas nunca consegui, a minha mente apagou
essa informação, provavelmente por ser irrelevante e desnecessária; mas
gostaria de saber. Estava a ver televisão e ele sentou-se ao meu lado. Ficámos
ali os dois, a olhar para a televisão, em silêncio, e comecei a achar aquilo um
bocado estranho. Passou muito tempo, pelo menos acho que passou muito tempo. E
então ele meteu uma mão em cima do meu joelho e disse: a mamã e o papá não vão
voltar nunca mais. Olhei para ele, confuso, sem perceber. Pensei nos legos,
durante um momento; depois pensei como iria ser do jantar. Tentei concentrar-me
nas palavras, à espera que ele dissesse mais alguma coisa, que explicasse. Mas
ele não disse mais nada. Estava a olhar para ele, admirado que a sua expressão,
que era muito estranha, uma expressão que nunca lhe vira. Foi a expressão dele
que me assustou verdadeiramente, mais do que as palavras que ainda não
entendera bem. Olhei bem e, de repente, percebi que o meu avô estava a chorar.
Era por isso que não falava; não conseguia. Era por isso que parecia
assustador. Ele estava a chorar.»
«Quando
é que percebeste o que estava realmente a acontecer?»
«O meu
avô acabou por me abraçar; se calhar fê-lo apenas para que não o visse chorar. Mas
quando o abraço terminou, ele já se dominara, parecia quase normal. Lá fora
havia pássaros a cantarolar e eu disse ao avô, numa voz baixinha: estás a ouvir
os melros? Ele acenou com a cabeça e quase sorriu; mas não chegou a sorrir. E
por isso olhámos para a televisão, ouvimos os pássaros durante muito tempo. Perguntei,
de repente: o que achas que será o jantar? Mas ele nem reagiu. Parecia que
íamos ficar assim para sempre.»
«É
desconcertante quando uma pessoa quase sorri mas não chega a fazê-lo. Como se
decidisse não o fazer. Como se preferisse não o fazer. Que podemos pensar de
alguém que opta por não sorrir? Enfim, desculpa. Estou com devaneios.»
«Sabes
o que aconteceu aos legos?»
«Aos
legos?»
«Sim. A
minha mãe comprara-os, estavam no carro no momento do acidente. Na verdade,
foram testemunha do acidente. Talvez tenha sido a última coisa que fizera
pensando em mim: comprar aqueles legos e imaginar a minha alegria quando os
recebesse. O carro ficou destruído, os meus pais morreram; mas os legos
sobreviveram, a merda dos legos sobreviveram. Descobri-os alguns dias mais
tarde, quando finalmente tive coragem para entrar no quarto dos meus pais. Fui
viver uns tempos com os meus avós mas depois alguém decidiu que seria mais
salutar para mim regressar a casa, ao meu ambiente normal, ao meu espaço; e
então mudámo-nos todos, eu e os meus avós; fingindo normalidade ou procurando
normalidade. E então, um dia, quis visitar o quarto dos meus pais; estar perto
deles, senti-los. Sei lá. Tinha nove anos, sabia lá eu o que fazia. Fui. E
entre as coisas normais que se encontram sempre no quarto dos pais, estavam
algumas que não conhecia, que nunca vira; e adivinhei logo que só poderiam ter
sido resgatadas dos destroços do acidente. E entre essas coisas, lá estavam os
legos.»
«Que
fizeste com eles?»
«Nada. Que
poderia fazer? Pensei distraidamente como algo que desejamos pode, de repente,
tornar-se algo que odiamos. E fiquei ali, sentado no chão, a olhar para o
vazio. Como fazia quando era muito pequeno e acordava de noite, assustado;
levantava-me e ia até ao quarto dos meus pais, silenciosamente; sentava-me no
chão, mesmo à beira da cama e ouvia-os respirarem, sentia o seu cheiro. E
passava muito tempo, ou na verdade talvez só passassem apenas cinco minutos ou
assim, e depois lá regressava ao meu quarto e tentava adormecer. Nunca soube se
os meus pais sabiam que eu estava ali, perto deles, e fingiam dormir. Foi uma
daquelas perguntas que não houve tempo para fazer; porque temos sempre coisas
para perguntar mas acreditamos que haverá tempo para o fazer e vamos adiando e
adiando e adiando. Não nos passa pela cabeça que os nossos pais possam morrer,
não é? Mas morrem e há uma quantidade insuportável de coisas que ficam por
perguntar, por dizer, por saber.»
«As
coisas verdadeiramente importantes quase nunca nos passam pela cabeça.»
«Ainda
tenho os legos mas nunca abri a caixa.»
«Porque
os guardaste?»
«Como
poderia não guardar? A minha mãe comprou-os para mim, talvez tenha sido a
última coisa que fez a pensar em mim. Irei guardá-los para sempre. São uma
memória concreta, viva; uma memória em que posso tocar. Sabes, por vezes penso
na minha mãe e imagino o que me diria, que conselhos daria, que perguntas faria.
Ou, pelo menos, quase consigo imaginar.»
«E o
teu pai? Porque não falaste do teu pai?»
«Não me
apetece falar do meu pai, agora. Na verdade, já nem sei porque comecei a falar
de tudo isto.»
«Perguntei-te
qual tinha sido o pior dia da tua vida. E tu contaste-me algo íntimo e doloroso
sem hesitação; confiaste em mim, como se nos conhecêssemos desde sempre.
Fico-te muito agradecida.»
«Não
precisas agradecer. Quero que saibas de mim, que me conheças, que me percebas,
que me sintas.»
E
sorriram, olhando-se e silêncio. Era a primeira vez que se viam depois do primeiro
beijo, uma semana antes; tinham abandonado o hospital juntos e caminhado até a
um cafezinho que existia na esquina, sentindo-se confortáveis com a proximidade
do outro; sentaram-se frente a frente, olharam, sorriram. Depois, começaram a
conversar. Era suposto almoçarem juntos mas distraíram-se, como se bastassem as
palavras para se alimentarem (ambos tiveram esse pensamento mas não o
verbalizaram, com receio de parecerem demasiado idiotas). Por três vezes,
tocaram-se nas mãos; e custou-lhes muito largarem-se.
Os inconciliáveis
Conto para o projecto
DESASSOSSEGO DAS PALAVRAS, a partir de uma citação de Fernando Pessoa (“A
Decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o
fundamento da vida. O coração, se pudesse pensar, pararia.”) e de uma escultura
de Abílio Febra.
- Estava a pensar que te amo tanto. Do fundo do coração.
- Isso é um pouco estranho.
- É?
- Sim, é. Refiro-me a juntar os verbos pensar e amar na mesma frase. É estranho. Porque se amas, não pensas nisso: amas, e pronto. Mas se precisas de pensar, talvez não ames verdadeiramente. Percebes? Não são acções compatíveis, pensar e amar.
- És parvo. E cruel.
- Não sou cruel, limito-me a analisar as tuas palavras. De certo modo, afirmaste que precisas de pensar para perceber que me amas. Foi isso que disseste, não foi? Ou seja, está implícito que se não tivesses pensado, não sentirias que me amas. Mas, como é óbvio, o amor não é propriamente um acto de reflexão, não nasce nem se alimenta do pensamento.
- Mas também disse que te amo do fundo do coração.
- Do fundo do coração? Mas não sabes que o coração é apenas um músculo? Um músculo que faz o sangue circular pelo corpo. Pensar que o coração faz mais do que isso é um pouco idiota, não achas? Romantismo de gente desocupada, fantasia de poeta, devaneio de quem nunca esteve verdadeiramente apaixonado; de quem não ama mas pensa em amar, de quem apenas racionaliza os sentimentos em vez de os sentir; ou de quem os racionaliza por não os sentir.
- És cruel, sim. Insuportavelmente cruel.
- Estou apenas a dizer que o coração não sente nem pensa nem ama nem sofre nem o raio, percebes? Bombeia sangue e é só. Nada mais.
- Afinal, acho que talvez tenhas razão. Pensar e amar são acções inconciliáveis. Olha para nós: eu amo e tu pensas, racionalizas, analisas palavras; sou coração, tu és cérebro. Somos inconciliáveis, portanto. Somos mesmo. Descobri-o apenas neste preciso instante, acreditas?
- Vá, tem calma. Estamos apenas a conversar.
- Foda-se, tanto tempo que perdi contigo. E para quê? Nem sei como é possível o amor esvanecer-se assim, de súbito; aniquilado por palavras. Mas foi o que acabou de acontecer, agora mesmo. Enfim. Julgo que é altura de ir bombear para outro lado, não achas?
On the road #01
Experiências foto-literárias: fotografar e escrever sem pensar (muito). Com Sónia Silva.
Lá fora, chove um
pouco; o cinzento da atmosfera contagia-me, invadindo-me e alastrando em mim, tornando-me
mais melancólica do que habitual. O carro avança lentamente, percorrendo o
cinzento da estrada, atravessando o cinzento da atmosfera, fugindo ao cinzento
da vida. Permanecemos em silêncio há muito tempo, aparentemente já dissemos
tudo o que havia a dizer; restará, portanto, concluir a viagem e chegar onde
nada nos aguarda, abraçar o cinzento que fantasiámos abandonar (um daqueles
abraços desconfortáveis, que nos arrepiam um pouco mas não conseguimos evitar;
mas será um mau abraço melhor do que nenhum abraço?).
Observo
distraidamente os carros que nos rodeiam, cada um deles um universo estanque,
misterioso e fascinante, inatingível; e no seu interior, em cada um deles, estará
alguém que nunca fará parte da minha vida, uma pessoa que talvez pudesse sorrir-me
e pedir-me que a abraçasse, alguém que talvez pense e sinta e fantasie e sonhe
e deseje e tema e sofra como eu. Alguém com quem nunca estarei mais próximo do
que na partilha, anónima e momentânea, de uma auto-estrada; ou na imaginação.
Olho em redor,
pensando na infinidade de possibilidades que não se concretizarão: gente que me
poderia fazer feliz mas que nunca chegarei
a conhecer; gente que talvez exista efectivamente mas cuja existência é,
afinal, irrelevante. E é nisto que penso – gente fantasma; felicidade de
assombração – quando, inesperadamente, sinto a tua mão procurar a minha,
tocando-a cuidadosamente (como se temesse a sua fuga?), envolvendo-a,
apertando-a. Continuo a olhar em frente, um pouco rígida, fixando o vermelho
dos faróis dos universos inatingíveis que se movem lentamente. E pergunto-me: mas
será que ainda há esperança?
O verde da relva
A partir de uma foto de Maria João Faísca.
Olhava o banco
abandonado mas nunca parava.
Passava apressado,
desejando estar noutro lado qualquer mas incapaz de sentir a importância do
momento presente, do momento em que por ali passava. Pensava: caminhar é sempre
um adiamento. Ainda não percebera que todos os momentos são, afinal, uma
espera. O que acontece é que, por vezes, surgem momentos que
consigo saborear e, por isso, nem
reparo que são uma espera, sinto-os como uma passagem. No fundo, persigo sempre
um absoluto qualquer, momentos e sensações que sejam avassaladoras e
insuperáveis; desejo algo monumental e determinante, que me faça parar no
tempo, que suspenda o avanço do mundo; e nem percebo que já estou parado;
sempre estive, sempre estarei.
Caminhava apressado,
olhando o banco abandonado. Caminhar com rapidez significa, afinal, pressa de
viver e de sentir; significa urgência. Um desejo e uma necessidade de fugir às
esperas que compõem a vida; ansiava continuamente por algo e nem reparava que
viver significa estar, e não caminhar. Estar no momento. Mas a vida é conduzida
pelo irreal: por desejos e fantasias, por ambições, por medos; e um desejo ou
uma fantasia ou uma ambição ou um medo nunca é algo concreto e real, é apenas
um pensamento ou uma sensação, algo impalpável e imaterial; na verdade, nada.
Um vapor, ou nem isso; um sopro. Mas são esses nadas que me movem, que
determinam acções e comportamentos concretos. O imaterial conduz-me, o sopro
indica-me uma direcção e empurra-me nessa direcção. Em frente, sempre em
frente. Por isso, passava pelo banco, conduzido por um desejo indefinido mas
absoluto, e nunca me sentava; se o fizesse, estaria a sincronizar-me com o
mundo: assumiria a espera. Porque o mundo está em permanente estado de espera e
um banco vazio representa isso mesmo: espera. Mas também possibilidade; o vazio
não significa ausência de tudo mas, pelo contrário, possibilidades infinitas.
Se algo está vazio, há espaço para
ser preenchido por qualquer coisa, por tudo. Seja um banco, seja uma vida.
Olhava e continuava o
meu caminho, apressado. E assim teria continuado sempre, se não me tivesses
chamado. Eu passava, apressado, e tu disseste:
- Desculpe.
Estranhei porque não
é normal que o mundo repare em mim, chame por mim. Sorriste mas era um sorriso
triste. Disseste:
- Desculpe. Mas para
quê tanta pressa? Porque não se senta durante um minuto?
As perguntas são como
janelas, fazem-me olhar para fora de mim próprio. Parei e olhei. E o teu
sorriso triste, mais do que as tuas palavras, convidou-me a sentar-me ao teu
lado, no mesmo banco que tantas vezes olhara sem ver. Que sempre me parecera vazio
mas que, subitamente, transbordava de possibilidade. Deixei-me conduzir pela
surpresa e pelo inesperado: sentei-me à tua beira, olhando em frente. E o mundo
parou. Não, eu parei. Juntei-me ao mundo: sincronizámos velocidade e ritmo; e esperámos,
juntos.
Havia o verde da
relva, que subitamente me entrou pelos olhos dentro, como se fosse a primeira
vez que compreendesse e sentisse o verdadeiro significado do conceito “verde”;
e o amarelo do sol, iluminando a atmosfera e tornando-a perene e suspensa,
perseguindo suavemente as sombras. Havia o cheiro das árvores, subitamente
avassalador, como se as próprias árvores entrassem em mim e me povoassem. Havia
o contacto das minhas mãos com a madeira sólida e antiga do banco (quantas mãos
já teriam tocado aquela mesma madeira, deixando nela o toque da sua pele?
Quantas pessoas estava a tocar naquele momento, tocando a madeira?). Havia o
murmúrio de um qualquer bicho oculto, entrelaçado com o canto distante de um
único pássaro. Havia o sabor – mais do que uma memória, o sabor quase concreto
– das ameixas vermelhas que comera deitado numa relva assim verde nos verões da
minha infância, ouvindo o mesmo pássaro, cheirando árvores idênticas. Havia um mundo
a envolver-me, entrando em mim, apropriando-se de mim. Sentia-me entregue a um momento
absoluto, simultaneamente espera e passagem. Não sentia nem sonho nem fantasia
nem desejo nem ilusão nem ansiedade, apenas o poder dos sentidos prendendo-me
ao mundo, à vida. A um banco. À eternidade do momento.
E tu, mesmo à minha
beira, perguntaste:
- Há quantos milhões
de anos é que o verde já é verde?
Sorri, perguntando-me
quantos milhões de instantes e sensações comporão um único momento. Um sorriso
concreto e real; como o verde da relva.
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