Splash






Piscina Oceânica de Oeiras.

A casa

Chegava todos os sábados de manhã pouco depois da livraria abrir. Deambulava entre os móveis num caminhar lento, pegava num livro ao acaso e abria-o, lia algumas frases, pousava, pegava noutro. Fazia coisas peculiares como passear o dedo pelas capas ou cheirar as páginas; como se namorasse os livros e para os conhecer verdadeiramente precisasses de os tocar com todos os sentidos. Por fim, optava por um e levava-o consigo. Sentava-se na cafetaria, pedia um café e começava a ler. E era como se o livro se apoderasse dela, controlando-a. O seu corpo transformava-se num reflexo do que lia, as suas expressões revelavam o que as palavras lhe transmitiam. Vivia o que lia, convertendo as palavras em expressão, em gesto, em respiração. Havia pessoas por ali que a espreitavam, talvez curiosas, talvez fascinadas; tentavam ler no seu rosto o que poderia estar escondido no livro, como se esse rosto fosse uma janela para um mundo misterioso. (Ou um espelho?) Quem a olhava percebia que, para aquela mulher, ler era uma forma de viver. Como se cada livro fosse um catálogo de possibilidades, um arquivo de emoções e pensamentos onde mergulhava para, momentaneamente, ser e sentir e pensar e sonhar diferente; não para fugir ao mundo mas para se reencontrar a si própria de modos alternativos, para descobrir em si novos caminhos, novos sonhos, novas liberdades. Como se cada livro fosse uma casa: simultaneamente um refúgio e um espaço potenciador de novas possibilidades, de novos encontros, de novos voos. Uma casa-aeroporto. Vivia os livros, e o seu rosto espelhava essa vivência; era por isso que a observavam. Porque ela não excluía ninguém da sua casa. Prosseguia a leitura até meio da manhã, altura em pousava o livro e pedia um pastel de nata. Trocava sorrisos com quem calhasse, conversava com algum conhecido que por ali estivesse, ria alto. Depois, pagava o livro que estivera a ler e levava-o consigo; como se já fosse parte de si. Saía. E o lugar que ocupara permanecia vago durante algum tempo, ninguém saberia explicar porquê. Talvez porque quem ficava sentia que, com a sua presença, ela deixara um pouco de si na livraria. Como se ainda ali estivesse. 

(Texto oferecido aos leitores da Livraria Arquivo no dia 23 de Abril de 2019, assinalando o Dia Mundial do Livro. Crónica para o Jornal de Leiria.)

Almas Desligadas












Com Ana Gilbert.
Moinho do Papel, em Leiria. Até 31 de Maio de 2019.
Curadoria e improvisação: Sílvia Bernardino
(Fotos: Ana Gilbert)

Almas expostas


Moinho do Papel, em Leiria.
Com Ana Gilbert.
Curadoria e improvisação: Sílvia Bernardino
Cartaz: Bruno Jerónimo

Serviços máximos de felicidade









Exposição Almas Desligadas e Outras Histórias.
Com Ana Gilbert.
Galeria Indoor, Rio de Janeiro.

Alegria no trabalho


Libelinhas. Nona apresentação. 07.04.2019.
Foto: Vitória Condeço.
Uma produção O Nariz.

E outras histórias

Almas Desligadas e Outras Histórias reúne algum do trabalho fotográfico de Ana Gilbert numa exposição que está patente na Galeria Indoor (Rio de Janeiro). Com curadoria de Rococó Clean, inclui diverso material originalmente criado para um projecto que realizámos em conjunto em 2018, Almas Desligadas. Este projecto reunia excertos do meu romance Serviços Mínimos de Felicidade e fotografias de Ana Gilbert.

Best of



Best of
Seis gravuras, seis estórias.
Com Lisa Teles
Edição Escaravelho

Apresentação dia 24 de Março na Livraria Arquivo (Leiria). 
Inserida na Ronda Poética

Contágio

Num destes sábados reuniu em Leiria um conjunto de fotógrafos. Ou talvez não seja bem assim, já que alguns não se autodenominam fotógrafos mas Instagramers. Recomeçando: num destes sábados reuniu em Leiria um conjunto de pessoas que fotografam e publicam o seu trabalho no Instagram. Chamou-se a isso Instameet e foi o primeiro realizado em Leiria. Perto de cinquenta pessoas percorreram a cidade e fotografaram o que as seduzia, o que as cativava, o que as fazia parar. Foi uma experiência fantástica acompanhar um grupo tão heterogéneo e assistir de perto ao seu entusiasmo, à sua criatividade. Pelo meu lado, fiz o que me fora pedido: de cadernozito na mão, fui escrevendo impressões e devaneios a partir daquilo que observava e sentia; se alguém me tivesse perguntado, explicaria que converter o que vejo em palavras é a minha forma de fotografar. Ao longo do dia o caderno foi passando de mão em mão; e houve quem usasse algumas das frases lá escrevinhadas no seu processo fotográfico, interpretando as palavras e tornando-as suas, transformando-as em imagem. Comove-me sempre a generosidade de quem se desvia do seu caminho habitual, de quem integra os outros no seu percurso, de quem aceita cumplicidades e partilhas. Foram surgindo publicações que incorporavam textos meus e, claro, fui sendo surpreendido porque é fascinante descobrir como os outros vêem as minhas palavras; é fascinante regressar a essas palavras e senti-las de um modo novo, contagiado pela interpretação que os outros fizeram delas. Talvez seja isso o que mais aproxima literatura e fotografia: são exteriorizações concretas do que se vê, do que se sente, do que se questiona, do que se teme, do que se sonha; interpretações que pelo simples facto de existirem afectam o mundo. A cada fotografia que olhamos ou a cada texto que lemos surge a possibilidade de ver e sentir e pensar e questionar a realidade através do olhar de quem fotografou ou escreveu; como se usássemos uns óculos emprestados. Ou como vivermos numa casa que sempre conhecemos e de repente descobrir que existe uma janela em que nunca tínhamos reparado; abrimos essa janela e olhamos a mesma paisagem mas de um ângulo diferente, vendo na paisagem de sempre algo novo. Visitar Leiria acompanhado pelo entusiasmo destas pessoas permitiu-me isso mesmo: ver algo novo naquilo que olho todos os dias. E acompanhar as publicações que foram fazendo utilizando textos do caderno permitiu-me olhar de forma nova para aquilo que escrevo (ou seja, para aquilo que penso e sinto; para aquilo que sou). Seduz-me este labirinto contagioso de olhares; seduz-me a possibilidade de existência de cumplicidade entre olhares, a possibilidade de contaminação dos olhares. Seduz-me que os olhares se toquem e se influenciem. Seduz-me que o olhar, sendo livre, recuse o isolamento e opte por buscar a liberdade de outros olhares; porque ao fazê-lo amplia o seu campo de visão, aprofunda a sua liberdade. E até onde nos pode levar o nosso olhar, se o seguirmos sem medo?

Crónica para o Jornal de Leiria.

Best of




Best of
Seis gravuras, seis estórias.
Com Lisa Teles
Edição Escaravelho

Encontros


Instameet Leiria. 50 fotógrafos + 1 escritor. Resultados aqui.

Roménia

Sabes o que mais me impressionou? A enorme quantidade de vagões de comboio abandonados em linhas secundárias, nas proximidades das pequenas estações por onde ia passando. Pareceu-me mesmo impressionante. Olhava as carruagens, dezenas delas, de diversas cores, de diversas formas e modelos e funções, de diversos tempos; ordenadas em longas filas, como se pudessem ser usadas uma vez mais; como se alguém as tivesse deixado ali provisoriamente, com a expectativa de lhes dar utilidade no dia seguinte, na semana seguinte; mas os dias passam, as semanas passam. E como tantas vezes acontece, o tempo passa e nada traz; apenas mais tempo. Impressionou-me aquela visão de abandono, de decadência. Olhava e perguntava-me: o que esperam que aconteça a todos estes vagões? Que desapareçam por si próprios, que se dissolvam no ar? Que morram devagar? Quanto tempo demora um comboio a morrer? Sabes aquilo que dizem das árvores, que morrem de pé? Se calhar é parecido com os comboios, devem morrer inteiros e sobre os carris; de pé. No fundo, talvez os estejam a deixar morrer com dignidade. Talvez fosse mais triste se os desmantelassem e reciclassem as peças, se fizessem panelas ou martelos com o metal. Percebi que há uma certa dignidade em deixá-los assim: comboios que nunca mais irão marchar, sobre linhas férreas que nunca mais serão percorridas. Uma espécie de homenagem, não? E desse modo, a memória da passagem de todas as pessoas que ocuparam aqueles comboios, os risos e os choros e os sonhos e os desejos e os segredos e as expectativas e os medos e as fantasias de todos aqueles que momentaneamente viveram naqueles vagões, permanece preservada e intacta. Como num museu. Um museu erguido sob o sol e as estrelas, onde chove e o vento sopra, onde bichinhos desconhecidos encontram refúgio, onde ervas daninhas nascem e crescem e se multiplicam; um museu vivo onde se guarda essa fatia tão frágil e impalpável de vida a que se chama memória. Mas sabes o que mais pensei? Em metáforas. Não será a memória individual de cada pessoa formada por comboios abandonados ao relento? O que nos faz seguir em frente, afinal? O que nos faz viver? Pode ser um desejo, um sonho, uma ambição, uma necessidade; depois, realiza-se o desejo, cumpre-se o sonho, satisfaz-se a ambição, preenche-se a necessidade. Avançámos mas aquilo que nos fez avançar ficou lá para trás, transformado em memória. Transformado em comboio abandonado, porque só nos interessa o comboio que a cada momento nos transporta. Só nos interessa o desejo e o sonho e a ambição e a necessidade do momento. Pelo caminho, deixamos esquecidos todos os comboios que já não nos servem, abandonados e gastos. Simples memórias. E lá seguimos em busca da próxima estação, julgando-nos livres mas presos aos carris que nos condicionam e apontam a única direcção possível. E esquecidos de que somos os nossos próprios museus.

Crónica n.º 70 para o Jornal de Leiria.

Libelinhas


Uma produção d' O Nariz.
12 de Janeiro em Leiria (espaço d'O Nariz).
Foto de Carla de Sousa.

Dezembro


Calendário Improviso.
Doze textos para doze fotos de Sílvia Bernardino.

Fotobox

Fotografar palavras na RTP.

Geografias corporais

Fotos: Ana Gilbert 
Textos: Paulo Kellerman
Dança: Inesa Markava

Projeto em andamento com o grupo de pesquisa sobre movimento Te encontro lá no Cacilda / Pulsar Cia. de Dança | Teatro Cacilda Becker, Rio de Janeiro, Brasil.


Saber-se no corpo, ser o corpo, ser no corpo… o próprio e o do outro. Corpos humanos como materialidades diversas e criativas que se atualizam no dançar… corpos dançantes que interagem e se afetam mutuamente.


“Estende-me a mão. E diz: Não a agarres. Diz: Sente-a, apenas.
Aproximo a minha mão. As duas palmas tocam-se, e assim ficam: juntas.
Diz: Agarrar significa prender, não achas? Para sentir o outro basta tocar-lhe. Talvez tocar seja uma forma de agarrar com liberdade.
E sorri. Também sorrio. Enquanto as nossas mãos se tocam. Livres e sorridentes.”

Loucura

Vou até à janela para ver o mundo passar. E ele passa, vagaroso e indiferente. Talvez já tenha tido a esperança que, um dia, me levasse consigo; mas para onde me levaria? E eu gostaria de ter ido? Não sei. Da minha janela vejo o céu azul e sinto o sol no rosto. Por mais longe que o mundo me levasse, não seria sempre o mesmo sol a aquecer-me a pele? Sorrio enquanto penso isto, e é bom quando uma pessoa consegue sorrir sozinha; apesar de haver quem chame a isso loucura. Talvez ainda possa ir pelo mundo fora, em busca de outros sóis; talvez baste acreditar e imaginar que é possível. Se existe o desejo, haverá sempre a possibilidade? Por agora não quero pensar em possibilidades, basta-me sentir a realidade concreta deste sol no rosto. Para onde irá toda esta luz que a minha pele absorve? Tanto sol que apanhei ao longo da vida, certamente que o interior do meu corpo será muito iluminado, resplandecente de luz; se tiver de ser operada ainda vou cegar os médicos. Sorrio de novo, enquanto olho a rua em busca de gente. Sempre gostei de observar pessoas, sempre gostei de lhes escutar as conversas e, através das suas vozes, conhecer-lhes os pensamentos e os sentimentos. Mas agora são raras as pessoas que passam por esta rua; e as que passam nunca conversam. Não entendo por que motivo não falam, não entendo por que motivo calam os seus pensamentos; se não são verbalizados, para onde irão todos esses pensamentos que as pessoas têm dentro de si? Permanecerão aprisionados nos corpos para sempre? Formando gases, talvez. Escuto o silêncio da rua, respiro o cheiro das árvores que estão lá mais à frente. Respirá-las é uma forma de as guardar, a verdade é que tenho florestas inteiras dentro de mim; mas ninguém sabe. Talvez seja por ter tanta luz no meu interior, as árvores dão-se bem com a claridade. Sorrio. Penso tanta tolice, são sucessões de pensamentos tolos que chegam não sei de onde e me fazem sorrir. Talvez por ser essa a única forma que os pensamentos têm de sair para o mundo: agora que a trombose me levou a capacidade de falar, resta-me sorrir. E por isso, sorrio; é como se fosse uma libertação. Mas continua a não passar ninguém na rua; o céu mantém-se azul, indiferente aos meus sorrisos. Se todas as pessoas do mundo fossem cegas, haveria quem sorrisse? Ou deixariam de o fazer, por não existir quem pudesse ver esses sorrisos? Não sei; as perguntas sempre me agradaram mas as respostas causam-me azia, são como portas que se fecham com estrondo. O que sei é que gosto de sorrir ao céu azul, apesar de ele nunca me sorrir de volta. Sinto-me livre quando o faço. Olhar e sorrir, é tudo o que me resta fazer. E esperar. Espero mas a rua permanece deserta. Desconfio que estar à janela é como olhar para o futuro; mas hoje o futuro não virá. Talvez esteja confusa e me tenha baralhado, talvez não seja domingo, talvez os netos afinal não venham. Talvez o futuro seja feito de esperas. E enquanto se espera, o mundo continua a passar; vagaroso e indiferente.

Crónica para o Jornal de Leiria.

Novembro


Calendário Improviso.
Doze textos para doze fotos de Sílvia Bernardino.

Outubro


Calendário Improviso.
Doze textos para doze fotos de Sílvia Bernardino.