1.
Só hoje reparei verdadeiramente em ti. Eras, apenas, uma mulher banal que por vezes via, lá do outro lado da rua. Sentava-me na minha varanda a aproveitar os últimos raios de sol e entregue ao alheamento temporário de um livro; lia, sem excessiva concentração, talvez apenas pelo prazer de murmurar palavras que, na verdade, não tinham importância; à espera que o tempo fosse passando, que o silêncio me fosse contagiando, que a solidão me fosse confortando. Havia alturas em que desviava os olhos do livro e os deslizava sem objectivo, com preguiça, talvez apenas para recordar onde estava, quem era; para confirmar a continuação da minha própria vida, a presença de mim próprio. O olhar divagava pelas varandas que sempre se exibiram perante mim, do outro lado da rua: misteriosas, convidativas, excitantes. À distância de um olhar, desfilavam pedaços de vidas estranhas e incompreensíveis; vislumbres de existências tão banais e vulgares como a minha mas, de certo modo, fascinantes.
Do outro lado da rua: janelas que abriam e meninos que apareciam, despidos, agarrados a bolas; janelas que abriam e donas de casa que vinham e estendiam roupa, regavam plantas, varriam, puxavam as orelhas aos filhos; janelas que abriam e homens que surgiam com cigarros na mão, debruçados, a olhar lá para baixo, pensativos. E, por vezes, aparecias tu: sentavas-te no teu banquinho e fumavas, olhando em frente. Gestos lentos, tranquilos; expressão cansada ou contrariada ou desgastada. Apesar da distância, parecias-me bonita; e por isso, lançava-te fugazes olhares de curiosidade, talvez de voluptuosidade. A tua presença durava apenas o tempo de um cigarro, depois desaparecias por trás do vidro, da cortina branca; e por uns instantes ficava a contemplar a memória da tua presença, por uns instantes pensava em ti; imaginava-te. Depois, regressava ao livro. Esquecia-te. Ou melhor: adiava-te.
2.
Até hoje. Não trazias um cigarro mas um maço deles; e na outra mão, um livro. Sentaste-te, como sempre fazias, e começaste a fumar; depois, pegaste no livro e leste. Apesar da distância, percebi que lias o mesmo livro que eu; e não consegui tirar os olhos de ti.
Até agora, que te levantas e abandonas a varanda.
3.
Estou ansioso, à espera que venhas.
Não consegui ler uma única linha; apenas fingi que o fazia, enquanto lançava espreitadelas embaraçadas à tua cortina. E ia apressando a passagem do tempo, tentando distrair-me, fazendo perguntas, especulando; por que motivo começaras subitamente a ler, quando em todos estes meses nunca te surpreendi qualquer inclinação literária? Por que motivo escolheras precisamente o livro que eu também lia? Teria sido uma fantástica (e literária) coincidência? Ou repararas em mim e a tua escolha poderia ser considerada uma tentativa de estabelecer comunicação comigo? Uma brincadeira? Uma provocação? Um jogo? Uma sedução?
Esperava: e nem por um momento duvidei que virias.
Chegas, por fim. Caminhas entre as cortinas, entras na varanda: e o teu primeiro gesto é procurar-me. Surpreendes-me, desvio o olhar; e preciso de muito tempo para vencer o embaraço e reunir a coragem necessária para voltar a espreitar-te; estás sentada, cigarro na mão, concentrada no livro. Refugio-me na leitura, leio repetidamente a mesma frase; sinto o tempo imóvel. Há nervosismo, há curiosidade, há surpresa, há excitação. Isto é absurdamente patético; mas é, também, excitante. E gosto.
4.
Os dias passam, iguais; e a nossa partilha silenciosa torna-se uma rotina.
Lemos, separados por uma rua. Por vezes, pousas o livro e acendes um novo cigarro; olhas de modo distraído, quase enfadado, o que te rodeia, este nosso mundo comum. De repente, há um grito que vem de uma janela qualquer, uma voz que se ergue, um apito estridente; e olhamos, os dois: juntos.
Mas talvez nem tenhas realmente reparado em mim; uma coincidência, apenas: duas pessoas que lêem o mesmo livro, numa rua anónima de uma cidade qualquer. Afinal, é esse o destino dos humanos: estarem irremediavelmente separados uns dos outros, apesar de tão próximos entre si. Fingimos que compreendemos os outros, por vezes até acreditamos, com convicção, que conhecemos efectivamente aqueles que amamos. Suponho, contudo, que a realidade seja diferente: temos apenas umas pistas, umas intuições, uns instintos; procuramos adivinhar, por vezes acertamos. Apenas acreditamos na riqueza e complexidade do outro para que o outro (lá longe, na sua varanda) corresponda com a cortesia de acreditar na complexidade e riqueza de nós próprios, poupando-nos a indignidade se nos confrontarmos com a nossa rudimentar e hermética simplicidade; tentamos dissimular a inconsequência da maioria dos nossos actos, a banalidade da maioria dos nossos pensamentos, a irrelevância da maioria dos nossos objectivos, a mesquinhez da maioria dos nossos sonhos, a hipocrisia da maioria dos nossos sorrisos; tentamos superar-nos, transformando-nos em pomposos seres que estudam diligentemente os mistérios do universo e inventam deuses obscuros e complexos para explicar o que são incapazes de compreender, seres utópicos e ingénuos com desígnios e objectivos e enigmas e dilemas e éticas, seres que secretamente acreditam na felicidade plena e até na imortalidade; seres iludidos, crédulos, distraídos.
Mas, na verdade, não enganamos ninguém. E os dias vão passando, devagarinho.
5.
Espio-te, querendo acreditar numa momentânea possibilidade de quebra das regras da monotonia, da previsibilidade, da civilidade. E consigo imaginar-nos na mesma varanda: juntos; imagino que não há todo este espaço a separar-nos e que, afinal, dividimos o mesmo banco, usamos o mesmo cinzeiro, respiramos o mesmo ar. Lemos em silêncio, partilhamos um cigarro. Podemos, até, tocar-nos. Há alturas em que um de nós diz: escuta isto. E lê um parágrafo, com afectação e pompa. Lemos, escutamos. Partilhamos o silêncio, a compreensão; segredos. E regressamos aos respectivos livros, em busca de mais: procurando tesouros para dar ao outro. Juntos.
Sim, imagino isto: e pergunto-me se tu imaginarás o mesmo.
6.
Temos este elo que nos une: lemos o mesmo livro. Um elo frágil, volátil; na verdade: inexistente. Falta-nos tudo: não sei quem és, não conheço o teu nome, nunca ouvi a tua voz; desconheço o teu riso, o teu cheiro. Não sei o que pensas, como pensas, se pensas. Não sei qual é a tua cor favorita, não sei se gostas de cerveja, se lês jornais, se comes pipocas no cinema. Não sei se vives só, se tens filhos, se és casada, se tens namorado, se és lésbica, se és virgem. Não faço ideia. Tudo o que sei de ti é este pedaço de realidade: lês o mesmo livro que eu. Nem sei se gostas do que lês, se irás até ao fim. Eu confesso-te: detesto o livro, apenas continuo com ele porque é tudo o que nos une. Receio que quando um de nós o terminar, quando nem isso nos unir, estes singulares fins de tarde, inesperados e um pouco inquietantes, terminem tal como começaram: sem aviso. Mais uma fantasia cruelmente dissipada pela realidade concreta, outro caminho que conduzirá a um beco sem saída.
Prossigo a leitura, perguntando-me se haverá algures um caminho que conduza efectivamente a algum lado.
7.
Sentas-te e cruzas as pernas; o pano leve e solto da saia sobe e revela-te. Olho, um pouco surpreendido: não por as tuas pernas serem belas e voluptuosas e apetecíveis mas por existirem, simplesmente. Como um adolescente que descobre por acidente que a mãe também tem seios.
Acendes o cigarro, concentras-te no livro.
Espio as tuas coxas, incapaz de desviar os olhos. Imperceptivelmente, tudo muda, tudo se altera: as tuas pernas comprovam que és (também) um ser sexual, um corpo que se expõe, que convida, que excita; uma possibilidade. O que até aqui fora um jogo silencioso e inócuo revela uma potencial componente sexual: o teu cruzar de pernas parece-me um prelúdio de sedução, de tentação; e o livro, que ergues em frente dos olhos com aparente concentração, talvez não seja mais que um adereço; refugias-te nele, para que eu possa contemplar-te.
E eu contemplo-te.
8.
Agora, vens todos os dias com saia.
E tornou-se desconfortável. Anseio olhar as tuas pernas, por vezes sinto um princípio de erecção que apenas não se torna completa porque, na verdade, sinto-me ridículo. Pergunto-me: será tudo um acaso? Ou de algum modo misterioso terás descoberto que são as pernas o que mais me excita no corpo de uma mulher? Penso: brincas comigo. Penso: provocas-me. Penso: humilhas-me. Por vezes, cedo: e imagino a minha língua a subir pela tua pele arrepiada, ouso até imaginar os teus suspiros de prazer. Depois, a realidade cai sobre mim, violenta: estou numa varanda, a fingir que leio, a espreitar as pernas de uma desconhecida, excitado como um adolescente. Iludido, crédulo, distraído.
Mais que desconfortável: esta situação torna-se embaraçosa.
9.
Continuamos a encontrar-nos aqui, com os nossos livros, em silêncio, à distância. Depois daquela primeira vez, não voltámos a olhar-nos; nunca sorrimos. Tu provocas-me e eu cedo. Por vezes, pergunto-me por que motivo te desejo e concluo, quase sempre, que será apenas por saber que nunca estaremos juntos; por mais que a sensualidade do teu corpo me tente, por mais que a minha imaginação me inquiete: serás sempre uma fantasia.
Fumamos, sopramos o fumo com enfado. O sol vai desaparecendo, devagarinho. Crianças correm na rua, aos gritos; rindo. Outras pessoas, noutras varandas. Tudo tão cansativo, tão fútil.
Hoje, sou eu o primeiro a levantar-me e a abandonar a varanda.
10.
Mas foi precisamente hoje que sonhei contigo.
Acordei com uma erecção desconfortável e forcei-me a enfrentar a escuridão que vinha da janela. Para além do vidro, havia a varanda, um pedaço de vazio, outra varanda, outro vidro; e tu, a dormir, talvez só, talvez não.
Agora, rebolo na cama, incomodado, desconfortável. Tentando não acordar aquela que me ama, aquela que estou condenado a amar. E pensando em ti. Pergunto-me se, na verdade, a traí, a estou a trair. Não por causa do sonho mas pelo que ele revela, pelo que me força a consciencializar: que desejo efectivamente dormir contigo.
Confesso-te: o meu casamento começa a desagradar-me. Amamo-nos e, em simultâneo, cansamo-nos. A paixão desapareceu, resta o conforto da companhia, a certeza da presença; a volúpia da rotina. Por vezes, custa-me fazer amor com ela, aborrece-me a previsibilidade, exaspera-me a obrigação. Descubro-lhe pequenas fraquezas que me incomodam: a estridência de uma gargalhada, a rispidez de um gesto, a incapacidade de apreender e corresponder uma cumplicidade. Refugiamo-nos, eu na leitura, ela na pintura. Buscamos as nossas solidões, apreciamo-las. Fortalecemo-nos. Depois: partilhamos segredos, prazeres, monotonias, gestos, medos, risos. Somos felizes. Jovens e bonitos, vida estável. Um filho lindo. Viajamos, compramos, conhecemos, experimentamos. Quando nos abraçamos, sentimos o quanto nos amamos. Repetimos: juntos para sempre; e acreditamos. Mas há momentos em que sinto um vazio, um incómodo, uma ausência. Algo que falta. Ou cansaço, apenas. E então, fujo para a varanda e leio; ela pinta. É lá, nos livros, nos quadros que (ainda) encontramos o que buscamos, o que precisamos: novas forças, novos caminhos, novas vontades.
Novos pretextos para continuar.
11.
Lá fora, a noite sussurra imperceptivelmente, misteriosa e convidativa.
Ajeito-me ao conforto da cama, da solidão. Mas não consigo esquecer que há uma mulher comigo, junto de mim; escuto o ténue assobio da sua respiração, sinto o calor do seu corpo, respiro o seu cheiro delicado: e penso em trai-la.
Até te conhecer (que disparate: conhecer-te!), até hoje, até agora, nunca pensei em infidelidade. Nunca pensei em procurar noutra pessoa o que a minha mulher não me pode oferecer; sou suficientemente justo para admitir que o problema não está nela, no que poderá ou não oferecer. O problema sou eu, está em mim, está em cada um de nós. Está na presunção de que poderemos ser totalmente felizes, na crença ingénua, ou patética, que poderemos retirar do outro, de um único outro, tudo o que precisamos. Como se a nossa felicidade plena fosse propriedade de alguém, a quem bastaria localizar e pedir: dá-me o que é meu; como se a felicidade não fosse, afinal, uma soma caótica e contraditória de sensações, sabores, impressões, conquistas, afinidades, momentos, toques, sentimentos, prazeres, simplicidades que vamos acumulando, pedaço a pedaço, minuto a minuto, pessoa a pessoa.
Pergunto-me, agora, neste mesmo instante: que poderias tu proporcionar-me? Apenas posso especular, fantasiar: faríamos amor e seria bom, é sempre bom quando os corpos ainda se desconhecem, muito do prazer está na descoberta, na aprendizagem de um corpo novo. Mas, e depois: falaríamos de livros, falaríamos do nosso livro? E o segundo encontro, como seria? Talvez ainda mais excitado, na ânsia de repetir a magia e a intensidade do primeiro. Sim, faríamos amor, partilharíamos sexo, até nos cansarmos. Serias um refúgio, como são os livros que leio na varanda, as fantasias que alimento durante a insónia. Um intervalo.
E seria isso uma traição? Estaria a atraiçoar esta mulher que, agora mesmo, enrosca o seu corpo no meu e ressona suavemente, misteriosamente? Ou será que as distracções não contam como traições?
12.
Apetece-me fumar. Levanto-me devagarinho, com cuidado. Caminho em silêncio, agradecido pelo luar que entra pela janela e guia os meus passos. Entro na casa de banho, olho-me no espelho. Urino. Visto o robe, procuro um cigarro. Acendo-o na varanda, sinto uma nuvem de prazer invadir-me. Sento-me e fecho os olhos, sentindo o vento fresco eriçar-me a pele dos braços, do pescoço. Penso em praias e gelados, em laranjas, tardes de sábado em livrarias, em saltos de pára-quedas, em abraços de amigos, em gritos de crianças a brincar, penso em quadros de Hopper e agulhas de pinheiro, em brincadeiras da infância, em cheiros de chocolate e caramelo, em viagens de comboio, em sacos de compras, em pombas a voar, em espirais de fumo a sair de chaminés antigas, em beijos da adolescência. Depois, abro os olhos: e lá estás tu, com o teu robe, o teu cigarro, na tua varanda. A olhar-me.
13.
Hoje, ao pequeno-almoço, falei-lhe de ti. Falei da vizinha com pernas sensuais que passa os fins de tarde a ler e a fumar, na varanda. Sim: de certo modo, traí-te.
Mais: exorcizei a tentação.
14.
Agora, estou na varanda. Trouxe um novo livro, que leio com prazer, seduzido pela novidade.
Por vezes, espreito a tua varanda, procuro-te. E com a passagem do tempo, vou percebendo, aceitando, que não virás. Que talvez nunca mais venhas. Penso: de algum modo, assustei-a; ou aborreci-a. E tento decidir se o que sinto é arrependimento misturado com decepção ou, simplesmente, alívio.
15.
Se um destes dias nos cruzássemos na rua, talvez à saída da padaria ou depois de arrumar o carro lado a lado ou na fila do supermercado, gostaria de te ler uma frase do livro que fomos silenciosamente partilhando ao longos destes dias. Aquela em que o autor afirma que não é nada difícil ser feliz, o problema está em querer sempre ser mais e mais feliz.
E perguntar-te-ia: porque nunca nos basta a felicidade que temos?
Só hoje reparei verdadeiramente em ti. Eras, apenas, uma mulher banal que por vezes via, lá do outro lado da rua. Sentava-me na minha varanda a aproveitar os últimos raios de sol e entregue ao alheamento temporário de um livro; lia, sem excessiva concentração, talvez apenas pelo prazer de murmurar palavras que, na verdade, não tinham importância; à espera que o tempo fosse passando, que o silêncio me fosse contagiando, que a solidão me fosse confortando. Havia alturas em que desviava os olhos do livro e os deslizava sem objectivo, com preguiça, talvez apenas para recordar onde estava, quem era; para confirmar a continuação da minha própria vida, a presença de mim próprio. O olhar divagava pelas varandas que sempre se exibiram perante mim, do outro lado da rua: misteriosas, convidativas, excitantes. À distância de um olhar, desfilavam pedaços de vidas estranhas e incompreensíveis; vislumbres de existências tão banais e vulgares como a minha mas, de certo modo, fascinantes.
Do outro lado da rua: janelas que abriam e meninos que apareciam, despidos, agarrados a bolas; janelas que abriam e donas de casa que vinham e estendiam roupa, regavam plantas, varriam, puxavam as orelhas aos filhos; janelas que abriam e homens que surgiam com cigarros na mão, debruçados, a olhar lá para baixo, pensativos. E, por vezes, aparecias tu: sentavas-te no teu banquinho e fumavas, olhando em frente. Gestos lentos, tranquilos; expressão cansada ou contrariada ou desgastada. Apesar da distância, parecias-me bonita; e por isso, lançava-te fugazes olhares de curiosidade, talvez de voluptuosidade. A tua presença durava apenas o tempo de um cigarro, depois desaparecias por trás do vidro, da cortina branca; e por uns instantes ficava a contemplar a memória da tua presença, por uns instantes pensava em ti; imaginava-te. Depois, regressava ao livro. Esquecia-te. Ou melhor: adiava-te.
2.
Até hoje. Não trazias um cigarro mas um maço deles; e na outra mão, um livro. Sentaste-te, como sempre fazias, e começaste a fumar; depois, pegaste no livro e leste. Apesar da distância, percebi que lias o mesmo livro que eu; e não consegui tirar os olhos de ti.
Até agora, que te levantas e abandonas a varanda.
3.
Estou ansioso, à espera que venhas.
Não consegui ler uma única linha; apenas fingi que o fazia, enquanto lançava espreitadelas embaraçadas à tua cortina. E ia apressando a passagem do tempo, tentando distrair-me, fazendo perguntas, especulando; por que motivo começaras subitamente a ler, quando em todos estes meses nunca te surpreendi qualquer inclinação literária? Por que motivo escolheras precisamente o livro que eu também lia? Teria sido uma fantástica (e literária) coincidência? Ou repararas em mim e a tua escolha poderia ser considerada uma tentativa de estabelecer comunicação comigo? Uma brincadeira? Uma provocação? Um jogo? Uma sedução?
Esperava: e nem por um momento duvidei que virias.
Chegas, por fim. Caminhas entre as cortinas, entras na varanda: e o teu primeiro gesto é procurar-me. Surpreendes-me, desvio o olhar; e preciso de muito tempo para vencer o embaraço e reunir a coragem necessária para voltar a espreitar-te; estás sentada, cigarro na mão, concentrada no livro. Refugio-me na leitura, leio repetidamente a mesma frase; sinto o tempo imóvel. Há nervosismo, há curiosidade, há surpresa, há excitação. Isto é absurdamente patético; mas é, também, excitante. E gosto.
4.
Os dias passam, iguais; e a nossa partilha silenciosa torna-se uma rotina.
Lemos, separados por uma rua. Por vezes, pousas o livro e acendes um novo cigarro; olhas de modo distraído, quase enfadado, o que te rodeia, este nosso mundo comum. De repente, há um grito que vem de uma janela qualquer, uma voz que se ergue, um apito estridente; e olhamos, os dois: juntos.
Mas talvez nem tenhas realmente reparado em mim; uma coincidência, apenas: duas pessoas que lêem o mesmo livro, numa rua anónima de uma cidade qualquer. Afinal, é esse o destino dos humanos: estarem irremediavelmente separados uns dos outros, apesar de tão próximos entre si. Fingimos que compreendemos os outros, por vezes até acreditamos, com convicção, que conhecemos efectivamente aqueles que amamos. Suponho, contudo, que a realidade seja diferente: temos apenas umas pistas, umas intuições, uns instintos; procuramos adivinhar, por vezes acertamos. Apenas acreditamos na riqueza e complexidade do outro para que o outro (lá longe, na sua varanda) corresponda com a cortesia de acreditar na complexidade e riqueza de nós próprios, poupando-nos a indignidade se nos confrontarmos com a nossa rudimentar e hermética simplicidade; tentamos dissimular a inconsequência da maioria dos nossos actos, a banalidade da maioria dos nossos pensamentos, a irrelevância da maioria dos nossos objectivos, a mesquinhez da maioria dos nossos sonhos, a hipocrisia da maioria dos nossos sorrisos; tentamos superar-nos, transformando-nos em pomposos seres que estudam diligentemente os mistérios do universo e inventam deuses obscuros e complexos para explicar o que são incapazes de compreender, seres utópicos e ingénuos com desígnios e objectivos e enigmas e dilemas e éticas, seres que secretamente acreditam na felicidade plena e até na imortalidade; seres iludidos, crédulos, distraídos.
Mas, na verdade, não enganamos ninguém. E os dias vão passando, devagarinho.
5.
Espio-te, querendo acreditar numa momentânea possibilidade de quebra das regras da monotonia, da previsibilidade, da civilidade. E consigo imaginar-nos na mesma varanda: juntos; imagino que não há todo este espaço a separar-nos e que, afinal, dividimos o mesmo banco, usamos o mesmo cinzeiro, respiramos o mesmo ar. Lemos em silêncio, partilhamos um cigarro. Podemos, até, tocar-nos. Há alturas em que um de nós diz: escuta isto. E lê um parágrafo, com afectação e pompa. Lemos, escutamos. Partilhamos o silêncio, a compreensão; segredos. E regressamos aos respectivos livros, em busca de mais: procurando tesouros para dar ao outro. Juntos.
Sim, imagino isto: e pergunto-me se tu imaginarás o mesmo.
6.
Temos este elo que nos une: lemos o mesmo livro. Um elo frágil, volátil; na verdade: inexistente. Falta-nos tudo: não sei quem és, não conheço o teu nome, nunca ouvi a tua voz; desconheço o teu riso, o teu cheiro. Não sei o que pensas, como pensas, se pensas. Não sei qual é a tua cor favorita, não sei se gostas de cerveja, se lês jornais, se comes pipocas no cinema. Não sei se vives só, se tens filhos, se és casada, se tens namorado, se és lésbica, se és virgem. Não faço ideia. Tudo o que sei de ti é este pedaço de realidade: lês o mesmo livro que eu. Nem sei se gostas do que lês, se irás até ao fim. Eu confesso-te: detesto o livro, apenas continuo com ele porque é tudo o que nos une. Receio que quando um de nós o terminar, quando nem isso nos unir, estes singulares fins de tarde, inesperados e um pouco inquietantes, terminem tal como começaram: sem aviso. Mais uma fantasia cruelmente dissipada pela realidade concreta, outro caminho que conduzirá a um beco sem saída.
Prossigo a leitura, perguntando-me se haverá algures um caminho que conduza efectivamente a algum lado.
7.
Sentas-te e cruzas as pernas; o pano leve e solto da saia sobe e revela-te. Olho, um pouco surpreendido: não por as tuas pernas serem belas e voluptuosas e apetecíveis mas por existirem, simplesmente. Como um adolescente que descobre por acidente que a mãe também tem seios.
Acendes o cigarro, concentras-te no livro.
Espio as tuas coxas, incapaz de desviar os olhos. Imperceptivelmente, tudo muda, tudo se altera: as tuas pernas comprovam que és (também) um ser sexual, um corpo que se expõe, que convida, que excita; uma possibilidade. O que até aqui fora um jogo silencioso e inócuo revela uma potencial componente sexual: o teu cruzar de pernas parece-me um prelúdio de sedução, de tentação; e o livro, que ergues em frente dos olhos com aparente concentração, talvez não seja mais que um adereço; refugias-te nele, para que eu possa contemplar-te.
E eu contemplo-te.
8.
Agora, vens todos os dias com saia.
E tornou-se desconfortável. Anseio olhar as tuas pernas, por vezes sinto um princípio de erecção que apenas não se torna completa porque, na verdade, sinto-me ridículo. Pergunto-me: será tudo um acaso? Ou de algum modo misterioso terás descoberto que são as pernas o que mais me excita no corpo de uma mulher? Penso: brincas comigo. Penso: provocas-me. Penso: humilhas-me. Por vezes, cedo: e imagino a minha língua a subir pela tua pele arrepiada, ouso até imaginar os teus suspiros de prazer. Depois, a realidade cai sobre mim, violenta: estou numa varanda, a fingir que leio, a espreitar as pernas de uma desconhecida, excitado como um adolescente. Iludido, crédulo, distraído.
Mais que desconfortável: esta situação torna-se embaraçosa.
9.
Continuamos a encontrar-nos aqui, com os nossos livros, em silêncio, à distância. Depois daquela primeira vez, não voltámos a olhar-nos; nunca sorrimos. Tu provocas-me e eu cedo. Por vezes, pergunto-me por que motivo te desejo e concluo, quase sempre, que será apenas por saber que nunca estaremos juntos; por mais que a sensualidade do teu corpo me tente, por mais que a minha imaginação me inquiete: serás sempre uma fantasia.
Fumamos, sopramos o fumo com enfado. O sol vai desaparecendo, devagarinho. Crianças correm na rua, aos gritos; rindo. Outras pessoas, noutras varandas. Tudo tão cansativo, tão fútil.
Hoje, sou eu o primeiro a levantar-me e a abandonar a varanda.
10.
Mas foi precisamente hoje que sonhei contigo.
Acordei com uma erecção desconfortável e forcei-me a enfrentar a escuridão que vinha da janela. Para além do vidro, havia a varanda, um pedaço de vazio, outra varanda, outro vidro; e tu, a dormir, talvez só, talvez não.
Agora, rebolo na cama, incomodado, desconfortável. Tentando não acordar aquela que me ama, aquela que estou condenado a amar. E pensando em ti. Pergunto-me se, na verdade, a traí, a estou a trair. Não por causa do sonho mas pelo que ele revela, pelo que me força a consciencializar: que desejo efectivamente dormir contigo.
Confesso-te: o meu casamento começa a desagradar-me. Amamo-nos e, em simultâneo, cansamo-nos. A paixão desapareceu, resta o conforto da companhia, a certeza da presença; a volúpia da rotina. Por vezes, custa-me fazer amor com ela, aborrece-me a previsibilidade, exaspera-me a obrigação. Descubro-lhe pequenas fraquezas que me incomodam: a estridência de uma gargalhada, a rispidez de um gesto, a incapacidade de apreender e corresponder uma cumplicidade. Refugiamo-nos, eu na leitura, ela na pintura. Buscamos as nossas solidões, apreciamo-las. Fortalecemo-nos. Depois: partilhamos segredos, prazeres, monotonias, gestos, medos, risos. Somos felizes. Jovens e bonitos, vida estável. Um filho lindo. Viajamos, compramos, conhecemos, experimentamos. Quando nos abraçamos, sentimos o quanto nos amamos. Repetimos: juntos para sempre; e acreditamos. Mas há momentos em que sinto um vazio, um incómodo, uma ausência. Algo que falta. Ou cansaço, apenas. E então, fujo para a varanda e leio; ela pinta. É lá, nos livros, nos quadros que (ainda) encontramos o que buscamos, o que precisamos: novas forças, novos caminhos, novas vontades.
Novos pretextos para continuar.
11.
Lá fora, a noite sussurra imperceptivelmente, misteriosa e convidativa.
Ajeito-me ao conforto da cama, da solidão. Mas não consigo esquecer que há uma mulher comigo, junto de mim; escuto o ténue assobio da sua respiração, sinto o calor do seu corpo, respiro o seu cheiro delicado: e penso em trai-la.
Até te conhecer (que disparate: conhecer-te!), até hoje, até agora, nunca pensei em infidelidade. Nunca pensei em procurar noutra pessoa o que a minha mulher não me pode oferecer; sou suficientemente justo para admitir que o problema não está nela, no que poderá ou não oferecer. O problema sou eu, está em mim, está em cada um de nós. Está na presunção de que poderemos ser totalmente felizes, na crença ingénua, ou patética, que poderemos retirar do outro, de um único outro, tudo o que precisamos. Como se a nossa felicidade plena fosse propriedade de alguém, a quem bastaria localizar e pedir: dá-me o que é meu; como se a felicidade não fosse, afinal, uma soma caótica e contraditória de sensações, sabores, impressões, conquistas, afinidades, momentos, toques, sentimentos, prazeres, simplicidades que vamos acumulando, pedaço a pedaço, minuto a minuto, pessoa a pessoa.
Pergunto-me, agora, neste mesmo instante: que poderias tu proporcionar-me? Apenas posso especular, fantasiar: faríamos amor e seria bom, é sempre bom quando os corpos ainda se desconhecem, muito do prazer está na descoberta, na aprendizagem de um corpo novo. Mas, e depois: falaríamos de livros, falaríamos do nosso livro? E o segundo encontro, como seria? Talvez ainda mais excitado, na ânsia de repetir a magia e a intensidade do primeiro. Sim, faríamos amor, partilharíamos sexo, até nos cansarmos. Serias um refúgio, como são os livros que leio na varanda, as fantasias que alimento durante a insónia. Um intervalo.
E seria isso uma traição? Estaria a atraiçoar esta mulher que, agora mesmo, enrosca o seu corpo no meu e ressona suavemente, misteriosamente? Ou será que as distracções não contam como traições?
12.
Apetece-me fumar. Levanto-me devagarinho, com cuidado. Caminho em silêncio, agradecido pelo luar que entra pela janela e guia os meus passos. Entro na casa de banho, olho-me no espelho. Urino. Visto o robe, procuro um cigarro. Acendo-o na varanda, sinto uma nuvem de prazer invadir-me. Sento-me e fecho os olhos, sentindo o vento fresco eriçar-me a pele dos braços, do pescoço. Penso em praias e gelados, em laranjas, tardes de sábado em livrarias, em saltos de pára-quedas, em abraços de amigos, em gritos de crianças a brincar, penso em quadros de Hopper e agulhas de pinheiro, em brincadeiras da infância, em cheiros de chocolate e caramelo, em viagens de comboio, em sacos de compras, em pombas a voar, em espirais de fumo a sair de chaminés antigas, em beijos da adolescência. Depois, abro os olhos: e lá estás tu, com o teu robe, o teu cigarro, na tua varanda. A olhar-me.
13.
Hoje, ao pequeno-almoço, falei-lhe de ti. Falei da vizinha com pernas sensuais que passa os fins de tarde a ler e a fumar, na varanda. Sim: de certo modo, traí-te.
Mais: exorcizei a tentação.
14.
Agora, estou na varanda. Trouxe um novo livro, que leio com prazer, seduzido pela novidade.
Por vezes, espreito a tua varanda, procuro-te. E com a passagem do tempo, vou percebendo, aceitando, que não virás. Que talvez nunca mais venhas. Penso: de algum modo, assustei-a; ou aborreci-a. E tento decidir se o que sinto é arrependimento misturado com decepção ou, simplesmente, alívio.
15.
Se um destes dias nos cruzássemos na rua, talvez à saída da padaria ou depois de arrumar o carro lado a lado ou na fila do supermercado, gostaria de te ler uma frase do livro que fomos silenciosamente partilhando ao longos destes dias. Aquela em que o autor afirma que não é nada difícil ser feliz, o problema está em querer sempre ser mais e mais feliz.
E perguntar-te-ia: porque nunca nos basta a felicidade que temos?