Comme d’habitude IV

1.
Por vezes, acordávamos a meio da noite sobressaltados pelo choro estridente e desesperado do bebé que vivia algures no andar de baixo. Resmungávamos sem convicção e enfiávamos a cabeça nas almofadas, à espera que o silêncio regressasse; dizíamos: malditas cólicas. Esperávamos mais um pouco, resmungávamos de novo. E, geralmente, voltávamos a adormecer antes do bebé acalmar, imunes à sua aflição e, também, indiferentes aos murmúrios dos pais, à subtil – por vezes inexistente, apenas intuída – agitação que perturbava o prédio, a noite, o sono.
Até que, um dia, disseste: reparaste que o bebé lá de baixo já não chora há umas semanas? Não reparara. As cólicas finalmente passaram, pensámos; ou mudaram de casa. Na verdade, não os conhecemos (porque haveríamos de conhecer?), nunca os vimos, nem sequer nos cruzámos no elevador ou à porta da garagem ou nas reuniões de condomínio; das suas vidas fomos conhecendo apenas alguns sons, nada mais. Por isso, limitámo-nos a apreciar o regresso do silêncio; achámo-lo natural (um direito nosso, de certa forma): e deixámos de reparar nele.

2.
Depois, passaram mais umas semanas; e tu disseste, um pouco agitada (só um pouco): sabes que, afinal, o bebé morreu? Senti um súbito baque, que logo se foi dissolvendo e dissipando, deixando atrás de si apenas um amargo desconforto; não respondi, tu também não acrescentaste mais nada; olhámo-nos e logo desviámos o olhar (envergonhados? Suponho que sim). Fomos aguardando (em silêncio) que o tempo passasse, lento e inexorável, levando consigo a sensação desagradável, o pensamento incómodo, a memória dolorosa (um bebé que chora na escuridão da noite, aflito: lutando pela vida). Esperamos; talvez amanhã já não nos lembremos dele; ou para a semana que vem, o mais tardar.
(A vida prosseguirá: comme d’habitude. E, claro, não deixaremos de apreciar o silêncio vindo lá de baixo.)

Comme d’habitude III

Prazo de validade expirou...

Comme d’habitude II

1.
Estamos estendidos no sofá a olhar para o vazio da televisão; não falamos, não pensamos, não sentimos: esperamos, simplesmente. E o som da publicidade acompanha-nos, os olhos reagem lentamente aos caleidoscópios de cor que invadem a sala fria, estática. Os dois no sofá, sem nos tocarmos, distantes e isolados. Comme d'habitude.

2.
Mas, então, estendes a mão, sinto os teus dedos pousarem no meu braço; o corpo não reage mas o espírito sobressalta-se um pouco: porque sei o que vais dizer dentro de três, quatro minutos.
E passam, os três, quatro minutos; explosões de cor (e os nossos olhos: abrem e fecham, abrem e fecham), música e vozes disfarçando (preenchendo) o nosso silêncio; e os corpos ainda distantes, excepto a tua mão no meu braço: incomodando. Dizes, como previsto (tom hesitante, indeciso): apetece-me fazer amor.

3.
Não reajo. Pergunto-me se a reacção que aí vem poderia ser diferente caso tivesses perguntado: apetece-te fazer amor? Suponho que não; poderá, afinal, a vontade estar dependente de simples e vulgares nuances gramaticais? Quase sorrio, sozinha.
Tudo como antes, portanto. Distância, silêncio, toque; e o convite, pairando desagradavelmente entre nós como uma subtil intromissão (ou agressão?). Talvez permaneçamos assim durante mais alguns minutos (a duração de uns quinze, dezoito anúncios publicitários, não mais que isso); ou poderá acontecer que te impacientes: e desistas.
Afinal, decides retirar a mão e, sem delicadeza, pousá-la no meu peito; apertas um pouco, os dedos envolvendo o seio, a palma pressionando o mamilo; logo depois, ouço a tua respiração alterar subtilmente, revelando o princípio da excitação (traduzindo: já estás com o caralho teso; pronto), e apetece-me fechar os olhos; fugir. Mas, inesperadamente, ouço-me falar: já reparaste como a expressão “fazer amor” é profundamente ridícula? Parece-me detectar uma breve hesitação no teu ritmo respiratório mas a firmeza dos dedos não diminui; e persistimos em não nos olharmos, aguardando, adiando (para quê olhar, afinal? Há tanto tempo que não vimos no outro nada de relevante, de surpreendente, de recompensador. Há quanto tempo? Dez mil anúncios atrás, talvez; ou mais). Digo (surpreendendo-me a mim própria): não achas? Fazer? Porquê fazer? (Hesito; e logo depois, só um pouquinho desafiadora): Nunca se fala em sentir nem proporcionar nem trocar nem saborear. Não. Fazer.
A tua mão solta-se, sem pressa. Ainda penso que talvez te levantes do sofá e caminhes pesadamente pela sala, fugindo; mas não: permaneces. E os anúncios vão-se sucedendo, desfilando perante nós; unindo-nos no afastamento.

Comme d’habitude I

1.
Quando entro, olhas-me e sorris; aproximo-me devagar, antecipando o conforto do teu beijo, a familiaridade do teu cheiro, a carícia do teu toque. Cumprimos este ritual (desde quando? Como começou, afinal? Não me lembro) conscientes de que o abraço representa, talvez, o momento de maior intimidade, de maior partilha, de maior comunicação entre nós: o momento diário que simultaneamente redefine e rejuvenesce a nossa relação. Mas esta carga simbólica (poética?) não nos inibe, não nos constrange: precisamos do abraço, do que significa; e a cada dia, saboreamo-lo como se fosse a primeira vez, a última vez; a única vez.
Estamos juntos, finalmente: e os nossos corpos aconchegam-se, unem-se. Respiro o teu cheiro enquanto sinto a força dos teus braços, a tensão dos teus músculos; o teu rosto acomoda-se ao meu pescoço e encaixa com perfeição enquanto a minha mão acaricia o teu cabelo com delicadeza. E as nossas respirações serenam em sincronia enquanto o conforto que sentimos e partilhamos atrasa momentaneamente a voraz passagem do tempo. Ou, pelo menos, parece que assim é.
Pergunto-me, como sempre, se ainda sorrirás; que expressão terá o teu rosto? E os olhos: estarão abertos ou fechados? Não sei, talvez não queira verdadeiramente saber; afinal, é irrelevante.

2.
Cumpro, então, o meu hábito secreto. Os teus cabelos estão, como sempre, junto ao meu rosto, magicamente próximos; e concentro-me neles: olho-os, exploro-os, estudo-os; até encontrar o que procuro.
Nunca te contei, nunca falámos disto; mas a verdade é que durante o nosso abraço diário vou estudando e realizando uma espécie de inventário mental do teu cabelo. A verdade (suspeito que não gostarias de a conhecer ou, pelo menos, de a consciencializar, de a verbalizar; mas é, efectivamente, a realidade concreta e palpável, definitiva) é que todos os dias descubro um novo cabelo branco na tua cabeça.
Sim, todos os dias: um novo abraço, um novo cabelo branco; todos os dias: menos um dia.

3.
Por vezes (como agora), sinto a tentação de te perguntar se não terás já reparado nesta evidência da passagem do tempo, da diminuição dos dias disponíveis; terás notado que envelheces? E por que motivo nunca falámos sobre isso? Gostava de te confessar, também, o meu receio mais aflitivo; confidenciar-te que temo um pouco o dia em que todos os teus cabelos estejam brancos; porque, quando isso acontecer, como poderei continuar a ter a percepção da passagem do tempo? (Suponho que sorrirás, se te falar disto.) Quando for impossível descobrir um novo cabelo branco, como poderei ter a certeza de que o tempo ainda está efectivamente a passar, dia após dia, comme d’habitude? O que poderá testemunhar a mudança, provar-me que o tempo não parou, pelo menos para nós?
Sim, gostaria de te falar sobre tudo isto; e escutar o teu riso irónico e displicente, enquanto me escutarias, atenta, surpreendida; mas ainda não será hoje, agora. Porque sinto o teu corpo desprender-se do meu, afastando-me com suavidade. E logo desaparecem as reflexões, substituídas pela dúvida habitual, irrelevante e inócua, insistente: quanto tempo estivemos abraçados? (Por vezes, faço breves e ingénuos cálculos, estimativas, projecções: tentando adivinhar.) Quase em simultâneo, outra questão (menos irrelevante, menos inócua; mais insistente): por que motivo és sempre tu a decretar o fim do abraço?

4.
Olhas-me durante um instante, sorris (ou será ainda o mesmo sorriso?); depois, afastas-te, lânguida e preguiçosa (rejuvenescida?). Perguntas, lá de longe: o que te apetece para o jantar?