Comme d’habitude I

1.
Quando entro, olhas-me e sorris; aproximo-me devagar, antecipando o conforto do teu beijo, a familiaridade do teu cheiro, a carícia do teu toque. Cumprimos este ritual (desde quando? Como começou, afinal? Não me lembro) conscientes de que o abraço representa, talvez, o momento de maior intimidade, de maior partilha, de maior comunicação entre nós: o momento diário que simultaneamente redefine e rejuvenesce a nossa relação. Mas esta carga simbólica (poética?) não nos inibe, não nos constrange: precisamos do abraço, do que significa; e a cada dia, saboreamo-lo como se fosse a primeira vez, a última vez; a única vez.
Estamos juntos, finalmente: e os nossos corpos aconchegam-se, unem-se. Respiro o teu cheiro enquanto sinto a força dos teus braços, a tensão dos teus músculos; o teu rosto acomoda-se ao meu pescoço e encaixa com perfeição enquanto a minha mão acaricia o teu cabelo com delicadeza. E as nossas respirações serenam em sincronia enquanto o conforto que sentimos e partilhamos atrasa momentaneamente a voraz passagem do tempo. Ou, pelo menos, parece que assim é.
Pergunto-me, como sempre, se ainda sorrirás; que expressão terá o teu rosto? E os olhos: estarão abertos ou fechados? Não sei, talvez não queira verdadeiramente saber; afinal, é irrelevante.

2.
Cumpro, então, o meu hábito secreto. Os teus cabelos estão, como sempre, junto ao meu rosto, magicamente próximos; e concentro-me neles: olho-os, exploro-os, estudo-os; até encontrar o que procuro.
Nunca te contei, nunca falámos disto; mas a verdade é que durante o nosso abraço diário vou estudando e realizando uma espécie de inventário mental do teu cabelo. A verdade (suspeito que não gostarias de a conhecer ou, pelo menos, de a consciencializar, de a verbalizar; mas é, efectivamente, a realidade concreta e palpável, definitiva) é que todos os dias descubro um novo cabelo branco na tua cabeça.
Sim, todos os dias: um novo abraço, um novo cabelo branco; todos os dias: menos um dia.

3.
Por vezes (como agora), sinto a tentação de te perguntar se não terás já reparado nesta evidência da passagem do tempo, da diminuição dos dias disponíveis; terás notado que envelheces? E por que motivo nunca falámos sobre isso? Gostava de te confessar, também, o meu receio mais aflitivo; confidenciar-te que temo um pouco o dia em que todos os teus cabelos estejam brancos; porque, quando isso acontecer, como poderei continuar a ter a percepção da passagem do tempo? (Suponho que sorrirás, se te falar disto.) Quando for impossível descobrir um novo cabelo branco, como poderei ter a certeza de que o tempo ainda está efectivamente a passar, dia após dia, comme d’habitude? O que poderá testemunhar a mudança, provar-me que o tempo não parou, pelo menos para nós?
Sim, gostaria de te falar sobre tudo isto; e escutar o teu riso irónico e displicente, enquanto me escutarias, atenta, surpreendida; mas ainda não será hoje, agora. Porque sinto o teu corpo desprender-se do meu, afastando-me com suavidade. E logo desaparecem as reflexões, substituídas pela dúvida habitual, irrelevante e inócua, insistente: quanto tempo estivemos abraçados? (Por vezes, faço breves e ingénuos cálculos, estimativas, projecções: tentando adivinhar.) Quase em simultâneo, outra questão (menos irrelevante, menos inócua; mais insistente): por que motivo és sempre tu a decretar o fim do abraço?

4.
Olhas-me durante um instante, sorris (ou será ainda o mesmo sorriso?); depois, afastas-te, lânguida e preguiçosa (rejuvenescida?). Perguntas, lá de longe: o que te apetece para o jantar?