Ebook # 02: Céu nublado


Novo ebook.
Colectânea de vinte e quatro micro-narrativas, acompanhadas por vinte e quatro fotografias de Alexandre Louro inspiradas nas estórias. O resultado chama-se, pouco apropriadamente, Céu nublado.
Disponível para download gratuito no RL.

Discografia # 01: Clean

1.
A estrada está deserta e o carro avança demasiado depressa; noite cerrada, brutalmente escura: mas não me lembro de ter visto o sol desaparecer, não me lembro de assistir à lenta transformação do crepúsculo em noite. Dou por mim aqui, conduzindo sem destino, já sem me lembrar de que fujo, que procuro, porque não paro. Sim, poderia parar: e aguardar pacientemente que o tempo passasse por mim, indiferente e desinteressado; assistir passivamente ao lento transformar do negro da noite no cinzento da madrugada e depois no azul da manhã – pausa para perscrutar o branco das nuvens – e no azul da tarde e no cinzento do entardecer e de novo no negro da noite e no cinzento da madrugada. Sim, poderia: como sempre.
Contudo, o carro continua a avançar. Olhos fixos no horizonte e mãos no volante (apertando-o com desnecessária força), ouvidos concentrados no silêncio; e a mente cheia, completamente cheia: pedaços de imagens irreconhecíveis e farrapos de sensações difusas misturando-se com fragmentos de passado e vislumbres de futuros que nunca se concretizarão (sonhos, acho que é como lhes chamam), memórias demasiado ténues (perenes, tão perenes que poderão ser imaginadas) de sorrisos e orgasmos e dores e toques e sabores e cheiros e carícias e choros e beijos e sons e mais sorrisos. Tudo indefinido e confuso, em constante movimento caleidoscópico; arrebatando-me e distraindo-me, devorando-me.
Fecho os olhos durante um momento, pensando que tudo o que desejo, tudo o que necessito, é de um fugaz intervalo de mim próprio, da minha mente claustrofóbica; depois, volto a abri-los: e nada mudou. O negro da escuridão (que será feito das estrelas, afinal?) e o carro a avançar serenamente, o silêncio da noite zumbindo-me nos ouvidos; e a minha mente (cheia, quase a transbordar) a perseguir-me impiedosamente; aconselhando e criticando; condicionando. Cegando-me.

2.
Pergunto, num tom sereno: para onde estamos a ir?
Mas ninguém responde, como é óbvio. Foi, afinal, para isso que perguntei: para ter a certeza, a confirmação, de que ninguém responderia.
E sorrio, sozinho.

3.
De repente, regressa o desejo (confuso e avassalador, irresistível) de fechar os olhos durante mais um instante; não sei porquê, para quê. Mas é isso que faço, indiferente a motivos ou consequências: fecho os olhos. Aperto o volante com mais força, ainda mais força; o pé continua no acelerador: acelerando; e os olhos fechados, ainda.
Suponho que por esta altura já os deveria ter aberto.

4.
Depois, o carro embate inesperadamente em algo; ouço o ruído metálico, sinto um abanão. Tiro o pé do acelerador e espero, curioso; o carro rodopia, rodando sobre si próprio várias vezes; ruídos de vidros quebrados, metal arranhando o alcatrão, pedaços de plástico desintegrando-se; a minha cabeça embate no tejadilho do carro (dói um pouco), o corpo é projectado com violência para aqui e para ali, para aqui outra vez; o estômago revolvendo-se, uma estranha sensação de desequilíbrio; a pressão do cinto de segurança no meu peito. E nada mais; quietude e vazio, silêncio.
Sei que não devo largar o volante, não devo abrir os olhos. Não devo desistir.

5.
Não consigo mover-me; mas, na verdade, não preciso de o fazer. Sinto-me momentaneamente confortável, sereno: e decido permanecer assim durante mais algum tempo, expectante. Estarei morto, talvez; mas se for o caso, não posso deixar de me sentir algo decepcionado, algo ludibriado: parece-me pouco; monótono.
Aguardo; gostaria de ouvir alguém chamar-me (não consigo lembrar o meu próprio nome, o que é um pouco desconcertante). Decido abrir os olhos mas percebo que já os tenho abertos; volto a fechá-los, a abri-los: e nada muda. Assusto-me um pouco, depois muito; mas não me mexo: não consigo.

6.
Terá passado algum tempo desde o acidente; duas horas, talvez; ou vinte segundos, cinco dias, quarenta minutos. Não sei. Não importa: porque fui sendo invadido por uma estranha e tórpida sensação de apaziguamento e descompressão, de confortável esvaziamento. E sabe bem, esta inesperada leveza, esta inebriante tranquilidade. Como se tudo estivesse a começar de novo: algo como um renascimento. Ou como se tivesse, finalmente, conseguido fugir de mim próprio; libertar-me: e ver. Controlar.
Sim, agora sinto a mente vazia. Não: limpa. Tão limpa que nem o meu próprio nome recordo.

Inspiração: Clean - Depeche Mode
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Lyrics

Comme d’habitude V

1.
Via-te todos os domingos, durante alguns minutos. Conduzias o teu filho pela mão, em silêncio, sem pressa; depois, despedia-lo com um beijo na testa e ficavas a vê-lo desaparecer na entrada da sala, subindo as escadas; por fim, afastavas-te, ainda sem pressa, indiferente à presença dos outros pais; nunca dizias bom dia ou até logo; nunca sorrias; nunca permitias que o teu rosto revelasse qualquer indício de emoção, contrariedade, agitação; vinhas e partias, simplesmente: majestosa; irrelevante.
E eu espreitava-te; porque eras uma mulher bonita e misteriosa, porque o teu silêncio e a tua indiferença me cativavam. Olhava: e imaginava o som da tua voz, a possibilidade do teu sorriso; devaneava um pouco, sem maldade nem consequência, sem verdadeiro interesse.

2.
Até que, um dia, reages: correspondendo ao meu olhar; enfrentando-me: sem hostilidade nem incómodo, suponho que sem verdadeiro interesse (também). Sorrio, tentando disfarçar o desconforto, surpreendido e agradado com a tua súbita atenção; mas tu logo desvias o olhar (entediada, já?), ignorando o meu convite com displicência. E afastas-te no teu passo pausado e lânguido.
Contudo, foi quanto bastou. A troca de olhares repetiu-se nos domingos seguintes, discreta e fugaz mas intencional, consequente; revelando curiosidade e interesse, convite e disponibilidade; revelando uma ténue mas efectiva possibilidade de entendimento.

3.
Foi, pois, com naturalidade que numa dessas manhãs de domingo deixámos os respectivos filhos na catequese e nos afastámos em direcções opostas, para nos encontrarmos lá mais à frente, longe.
Despimo-nos sem pressa, excitados mas calmos, atentos à revelação do corpo do outro e agradecidos pela possibilidade de concretização da fantasia; ouvindo os inconfundíveis e monótonos burburinhos de uma missa de domingo, vindos da televisão de um vizinho. Fodemos, com vigor e ruído, com ânsia, com vontade. Depois, lavamo-nos, vestimo-nos, despedimo-nos: como se nunca tivéssemos estado verdadeiramente juntos.
Voltamos a encontrarmo-nos, minutos depois, à entrada da catequese; sem sorrisos nem palavras, sem olhares. O efeito dos orgasmos já há muito dissipado, quase esquecido. E os miúdos: atrasados.

4.
O encontro repetiu-se nos domingos seguintes; e o sexo, sempre reconfortante, foi-se tornando rotineiro e previsível mas ainda satisfatório, anestésico; perdeu-se a surpresa e a voracidade: inevitavelmente. Mas não nos ocorreu parar, desistir: porque ainda sabia bem, ainda apetecia.
Nunca conversávamos, nunca sorriamos, nunca nos acariciávamos; estávamos ali para foder, apenas; comme d’habitude? Sim. Saciar corpos, distrair espíritos, disfarçar vazios; ocupar tempo. Comme d’habitude.
Julgo que nem sentíamos curiosidade em conhecer o outro, descobrir afinidades, partilhar sentimentos; para quê? Não. Fustigávamos os sexos, gemíamos um pouco, por vezes (três ou quatro, não mais) gritavas. Gostávamos do torpor, dos cheiros que ficavam, do silêncio que os orgasmos traziam consigo; apreciávamos, em simultâneo, a presença e o desinteresse do outro (sós: mas acompanhados). Misturávamos os corpos, simplesmente: e o tempo ia passando. Uma rotina, sim; mas uma rotina diferente da habitual; um intervalo (de rotina) na rotina.

5.
Até hoje.
Não quis tomar banho e vesti-me apressadamente, enquanto permanecias na cama; talvez me olhasses, não sei. Talvez te apetecesse perguntar: porquê a pressa? (Não saberia o que responder.)
Saí, sem te olhar. E aqui estou, à espera que o garoto acabe a catequese. Há outros pais a aguardar (conversas inconsequentes, iguais às da semana passada e às da outra semana); uma ameaça de chuva a pairar; vontade de estar noutro lado qualquer; pressa de caminhar, de ir. E os risos das crianças, lá longe; um carro a passar, demasiado depressa; um gato gordo e imóvel à espreita de uma janela; o vento a sacudir quase imperceptivelmente as árvores. Tu a aproximares-te (sinto o teu cheiro, antes de te ver: também não tomaste banho.)
Aproximas-te, sim. Mas não paras onde costumas aguardar, junto ao habitual pedaço de parede; continuas a caminhar, sem aparente hesitação ou dúvida, sem pressa; aproximas-te: de mim. E eu não me mexo, não olho, não respiro; estendes as mãos e os teus dedos percorrem-me a face, o cabelo; puxam-me para ti. Depois, os lábios: tocando os meus.
Fecho os olhos, incapaz de resistir, incapaz de não corresponder ao teu beijo; incapaz de perceber. Sinto a tua língua acariciar-me, o teu corpo junto ao meu; sinto, também, os miúdos a descerem as escadas em audível correria, aproximando-se. As conversas circundantes silenciam-se (por um momento, pergunto-me se não terá sido apenas para isso que decidiste beijar-me publicamente: para suspender a monotonia das conversas desta gente) mas o vento continua a agitar as árvores, a embalar as folhas; e o gato continuará à janela, olhando.
Quase tudo como antes, como sempre: excepto o beijo, que prossegue. Conduzindo a nada, certamente; apenas prosseguindo.

Esboço # 24

Já há muito tempo que não falamos. Ele num sofá, eu na poltrona: em silêncio, vagamente esquecidos da presença do outro. Vimos o filme, ansiosos pelo final; ou talvez com vontade de que nunca acabe: porque, então, teremos de falar, olhar, partilhar qualquer coisa; consciencializar que o outro está ali (para sempre?).
É então que as pessoas do filme começam a despir-se; logo depois, estão a foder, convicta e ruidosamente. Olhamos para aquilo, sem nos mexermos, talvez respirando mais devagar (ou mais depressa?), infelizes por não estarmos sós. Os seios dela são bonitos, ele chupa-os com vigor; gemidos e música; o tempo a arrastar-se penosamente: no filme, na nossa sala.
Mas quando a cena de sexo termina, sinto que sou percorrida pelo seu olhar; ignoro-o mas logo depois chega a voz dele: apetece-te? Não respondo, com esperança que não insista, enquanto os segundos (parecem horas, não é?) vão passando, silenciosos e desconfortáveis, opressivos.
Continuo a olhar para o filme; ele levanta-se, aproxima-se, toca-me; tento não estremecer quando sinto o seu contacto (terei conseguido?), sorrio para disfarçar o incómodo. E ele, como é óbvio, apressa-se a interpretar o meu sorriso como aceitação.
Agora, estamos a despirmo-nos, sem grande entusiasmo, talvez sem verdadeira vontade; gestos mecânicos e automáticos, desfasados, vagamente inconsequentes: coincidindo com os nossos sentimentos. Daqui pouco, estaremos a foder, tal como o casal do filme (e quem representará melhor, nós ou eles?). Pergunto-me distraidamente o que teria acontecido se em vez da cena de sexo, houvesse uma cena de divórcio; ficaria ele igualmente excitado, propondo-me a separação do mesmo modo que propôs a foda?
Sorrio, sem alegria. Sinto a sua mão percorrer-me o interior da coxa e aproximar-se do sexo, o que não é propriamente agradável; depois, respondo ao seu beijo, sem entusiasmo mas com competência. E é então que começo a pensar a ti.