Paulo Kellerman é autor de sete peças, duas óperas e uma curta-metragem. Publicou vinte e dois livros em diversos géneros literários. Concebeu, coordenou ou participou em projectos com dezenas de criadores das mais diversas áreas artísticas. É responsável pelo projecto Fotografar Palavras, que desde 2016 envolveu mais de 330 criadores (fotógrafos e escritores) de 35 países, e foi co-fundador da editora Minimalista. Recebeu o Grande Prémio do Conto da Associação Portuguesa de Escritores.
# 78: Porque riem elas?
(Estamos os dois sentados à mesa de uma esplanada, silenciosos e aborrecidos, à espera que os croissants com queijo cheguem para que possamos manter as bocas ocupadas – uma desculpa para não falarmos, para não admitirmos que não temos absolutamente nada para dizer. Na mesa do lado estão duas mulheres, faladoras e desassossegadas, completamente indiferentes ao que se passa em redor, concentradas no seu riso; riem muito, as duas.)
ELE: Já reparaste como o riso pode ser uma espécie de antídoto para o aborrecimento? Ou mesmo para a preocupação, para a apreensão. Quase como se fosse uma forma de suspensão, um truque para desligar momentaneamente o pensamento. Não achas?
EU: Hum hum.
ELE: Até há por aí pessoas que riem como se pretendessem, desse modo, forçar o avanço do tempo, interrompendo assim a monotonia da vida, contrariando a inevitabilidade de estarem preocupados e apreensivos e mais não sei quê; porque quando se ri, o tempo passa mais depressa; ou, se calhar, não passa, sei lá; seja como for, perde-se a percepção do tempo, e isso é que conta. Portanto, acaba por ser um género de alienação, de fuga. E, certamente por isso, o riso torna-se uma espécie de vício, uma dependência.
EU: Que se passa? De repente, ficaste inspirado. Estás a querer dizer que o riso é algo negativo? Não tarda nada, começas a falar da necessidade de criar os Risonhos Anónimos, ou algo do género.
ELE: Não brinques. Aliás, sabes que mais? Uma gargalhada é quase como um orgasmo.
EU: Uma gargalhada é quase como um orgasmo? Eh lá. Essa é valente.
ELE: A sério. Olha que faz sentido. São dois dos poucos casos em que o corpo consegue, de uma forma natural, invalidar a preponderância do intelecto; em que o raciocínio e a consciência, os mecanismos de controlo, se tornam irrelevantes e ineficazes. Em que apenas a sensação conta.
EU: Não sei se faz grande sentido mas confesso que não me espanta esse tipo de conversa, vinda de ti. Na verdade, é precisamente o tipo de conversa que se pode esperar de alguém como tu, isso de dizer que rir é quase como foder.
ELE: Como assim?
EU: É conversa de alguém que nunca fode. Nem ri.
(Chega a rapariga com os croissants, com os galões; e nós comemos, bebemos. Na mesa ao lado, continuam as gargalhadas, uma após outra, estrondosas e surpreendentes, exibicionistas; como se nada mais no mundo importasse, para além do riso.)