Gosta quando lhe desejam
“bom dia” mas a maioria das pessoas diz simplesmente “Um café” ou “Era um
café”. Gosta que a olhem quando falam consigo mas parece que toda a gente está
demasiado ocupada ou demasiado desinteressada ou demasiado entretida com o
telemóvel. Gosta quando a tratam por você – de igual para igual – mas a maioria
aborda-a como se fosse uma criança, tratando-a por tu. Gosta quando usam o seu
nome, que está bem visível na placa que tem de trazer ao peito, mas isso só
aconteceu três ou quatro vezes desde que começou a trabalhar no café; e não
gosta nada que lhe chamem “coisinha” ou “jeitosa”. Gosta que lhe perguntem se
está tudo bem mas, das poucas vezes em que isso aconteceu, percebeu que a
pessoa não estava realmente à espera de resposta. Gosta quando as pessoas sorriem.
De um modo geral, não gosta nem desgosta de trabalhar no café. Tem dezoito anos
e é o seu primeiro emprego. A escola podia ter corrido melhor. Se lhe
perguntarem quais os seus sonhos, não sabe bem o que responder; e tem noção de
que isso – não ter sonhos – é triste e um pouco assustador; mas acha que seria
ainda pior se fingisse que tinha sonhos ou se adoptasse os sonhos de outras
pessoas. A vida é o que é, agora é isto e depois logo se vê: podia ser pior,
podia ser melhor. Por enquanto, passa o dia a tirar cafés e a fazer torradas. «Isto
das torradas até é engraçado, no outro dia estava a pensar: se cada fatia de
pão tiver dois centímetros, e considerando que devo fazer umas cinquenta por
dia, sabe que distância dava se encostasse todas as fatias lado a lado, em
fila? Trezentos metros. Já viu, trezentos metros de pão? Mais três meses e
chego ao meio quilómetro.» À noite, conversa no facebook com as amigas; riem
das senhoras que pedem abatanados porque a palavra é engraçada e dá para fazer
trocadilhos parvos; queixa-se das pessoas que dizem “Um nata”, em vez de “Um
pastel de nata”, o que a irrita por nenhum motivo que consiga entender; fala
com tristeza dos velhos que passam o dia sentados nas mesas do canto, a olhar
para o vazio ou a dormitar, porque não têm para onde ir, não têm quem os espere
(e não entende por que motivo não se juntam e falam uns com os outros); lamenta-se
dos engravatados e das madames que a olham com uma expressão de pena ou de
arrogância, como se fazer torradas e tirar cafés fosse um trabalho inferior aos
outros; segue com orgulho as aventuras académicas das amigas que andam a tirar
cursos de esteticista e de professora de educação física e de enfermeira. Por
vezes, essas amigas aparecem no café perto da hora de saída e pedem em coro “Oh
coisinha, traz um nata e um abatanado”; e riem todas, bem alto; juntas. Pela
manhã, de regresso às torradas e aos cariocas, olha o
tráfego matinal enquanto aguarda o autocarro e pensa que gostaria de tirar a
carta. Pensa, também, que gostaria de fazer um workshop de desenho e pintura; que
gostaria de viajar um bocado; que gostaria de ter um namorado melhor que o
último; que gostaria de ajudar mais os pais; que gostaria de voltar a estudar. «Olhe,
afinal parece que até tenho sonhos. Agora é só lutar para os concretizar, não?»
(Crónica para o Jornal de Leiria)