Texto escrito em parceria com Teresa Bret Afonso, a coleccionadora de sorrisos.
Paulo Kellerman é autor de sete peças, duas óperas e uma curta-metragem. Publicou vinte e dois livros em diversos géneros literários. Concebeu, coordenou ou participou em projectos com dezenas de criadores das mais diversas áreas artísticas. É responsável pelo projecto Fotografar Palavras, que desde 2016 envolveu mais de 330 criadores (fotógrafos e escritores) de 35 países, e foi co-fundador da editora Minimalista. Recebeu o Grande Prémio do Conto da Associação Portuguesa de Escritores.
Se lhe perguntassem
Via como as nuvens passavam, via como os pássaros passavam, via como as crianças passavam. Tranquilas, as nuvens; ruidosos, os pássaros; alegres, as crianças.
Se lhe perguntassem:
«És uma árvore feliz?»
Responderia sem hesitação:
«Sou.»
Porque sentia-se genuinamente feliz. Mas, apesar da felicidade, via como as nuvens passavam, via como os pássaros passavam, via como as crianças passavam; e invejava um pouco a liberdade de nuvens e pássaros e crianças. Invejava a possibilidade de passar, que era algo que nunca poderia fazer. O destino das árvores é estar, e não passar. E ela estava, imaginando como seria passar. Sonhando.
Se lhe perguntassem:
«És uma árvore sonhadora?»
Responderia sem hesitação:
«Sou.»
Se não fosse envergonhada, explicaria que o sonho era a sua verdadeira raiz; era o sonho que a sustentava, sólida e forte, e lhe permitia crescer centímetro a centímetro em direcção ao sol. Mas falar de sonhos não é conversa que uma árvore tenha, suspeitava que não seria realmente compreendida se confidenciasse os seus segredos a alguém. E a sensação de incompreensão era um tipo de solidão que sentia de forma particularmente incisiva, mas inconfessável (porque falar de solidão também não é conversa que uma árvore tenha). E por isso, distraía-se: via como as nuvens passavam, via como os pássaros passavam, via como as crianças passavam.
Tranquilas, as nuvens; ruidosos, os pássaros; alegres, as crianças. Mas as nuvens nunca paravam, os pássaros nunca pousavam, as crianças nunca se aproximavam.
Até que um dia, estava a árvore a pensar nos seus sonhos quando se aproximou uma criança; dia sem nuvens e em que ainda não se tinham visto pássaros por ali mas a criança aproximou-se mesmo. E ali ficou a olhar a árvore com os seus olhos brilhantes e curiosos; rodeou-a e andou à sua volta, tocou-a com os seus dedos pequeninos.
«Falas português?»
Perguntou a menina. A árvore sorriu, apesar de não ter boca nem músculos nem olhos que pudessem brilhar; apesar de não ter rosto. Mas sorriu, porque para sorrir basta ter corpo.
«Olha, podes fazer-me um favor?»
E sem esperar uma resposta, começou a prender o balão que trazia consigo num dos ramos da árvore.
«Tomas conta do meu balão, enquanto vou andar de bicicleta?»
Era um balão vermelho. E a árvore imaginou que o seu ramo era uma mão, imaginou que o seu tronco era o corpo de uma menina; imaginou-se criança a passear um balão vermelho, pés descalços na relva verde, cabeça erguida em direcção ao céu azul; e a brisa a fazer cócegas na sua pele. Imaginou ou sonhou?
Se lhe perguntassem:
«Preferes sonhar ou imaginar?»
Responderia sem hesitação:
«Prefiro quando não consigo distinguir uma coisa da outra, quando se misturam.»
Se passasse ali um pintor talvez gostasse de fixar numa tela aquele quadro inesperado: uma árvore a fingir-se criança. Mas não passou nenhum pintor e a árvore deixou-se estar quieta, completamente quieta (na sua imaginação, mexia-se muito; e nos sonhos também); a saborear aquela novidade, a sentir aquele momento. A viajar com o seu balão.
Mas depois de um momento vem sempre outro. E ninguém poderia adivinhar que o momento que estava quase a chegar seria um momento mau. Começou quando a árvore sentiu que o cordel que prendia o balão ao seu ramo começava a libertar-se muito devagarinho. E por mais que a árvore imaginasse ou sonhasse, por maior que fosse o seu desejo ou a sua aflição, o ramo não conseguiria transformar-se numa mão, em dedos que pudessem segurar e prender o fio. Imaginou e sonhou, desesperada; mas o fio soltou-se.
O balão subiu ao céu, lento. Parecia um bailarino envergonhado, pensou a árvore. A subida do balão no céu parecia uma dança, pensou a árvore.
Se lhe perguntassem:
«Gostavas de dançar?»
Responderia sem hesitação:
«Muito. Farto-me de dançar em sonhos. E na imaginação também.»
Mas as árvores não podem dançar, tal como não podem correr atrás dos balões que lhes fogem das mãos que não possuem. O balão fugia e a árvore olhava, dividida entre a vontade de apreciar a beleza daquele voo e a aflição que sentia por ter decepcionado a menina. Na verdade, foi um dos piores momentos da sua vida, nunca sentira o desespero de não poder agarrar algo que lhe escapava. Nunca pensara nisso mas, de repente, pareceu-lhe que talvez fosse essa a mais bonita capacidade dos humanos: a de agarrar. Agarrar-tocar-pegar-segurar-cuidar.
Ainda não tinham aparecido pássaros. Mas surgira uma nuvem, pequena e branca; lá estava ela, como se o céu fosse o seu quarto. E o balão vermelho ia subindo na sua direcção, como se tivesse sido convidado para ir brincar no quarto da nuvem. Apesar da aflição que sentia, a árvore não conseguia deixar de achar aquilo bonito. E quase se esqueceu que havia uma menina a andar de bicicleta, algures.
«Onde está o meu balão?»
Durante um instante, a árvore teve medo. Medo que a menina se chateasse, medo que a menina chorasse, medo que a menina lhe arrancasse ramos, medo que a menina ficasse triste para sempre. E quis fugir. Mas não fugiu, porque era uma árvore e as árvores estão presas à terra pelas suas raízes. (Sim, acreditava que o sonho era a sua verdadeira raiz; era o sonho que a sustentava, sólida e forte, e lhe permitia crescer centímetro a centímetro em direcção ao sol. Mas poderia o sonho ser, também, uma prisão?, perguntou-se um pouco desesperada.)
Depois de um momento vem sempre outro. E ninguém poderia adivinhar que o momento que estava quase a chegar seria um momento bom.
«Oh, foi brincar com aquela nuvem. Que giro.»
A menina olhava para o balão vermelho, que prosseguia o bailado no céu azul. A árvore viu que a menina sorria, apesar de ter perdido o seu balão. E sentiu-se feliz; apesar de saber que muitas vezes a felicidade se confundia com alívio, pareceu-lhe que naquele momento o que sentia era mesmo felicidade.
Ficaram a olhar o balão, a menina e a árvore. Durante muito tempo.
«Fizeste bem em deixá-lo voar.»
Disse a menina. E mais tarde, acrescentou numa voz baixinha:
«Às vezes, gostamos tanto das coisas que não conseguimos largá-las.»
E a árvore, que pouco antes percebera que a melhor coisa de ser pessoa era poder agarrar-tocar-pegar-segurar-cuidar, ficou a pensar se a melhor coisa de ser árvore não seria o poder largar. Largar folhas, largar frutos, largar sombras; por exemplo. Ou: largar balões.
De repente, a menina queixou-se que já lhe doía o pescoço. A árvore, que se distraíra a filosofar sobre as suas teorias do agarrar e do largar, ficou a ver a menina afastar-se. Talvez ela regressasse noutro dia, com um novo balão. E perguntasse:
«Queres largar este balão comigo?»
Ou talvez nunca mais voltasse. E os dias prosseguiriam como sempre. Veria como as nuvens passavam, veria como os pássaros passavam, veria como as crianças passavam. Tranquilas, as nuvens; ruidosos, os pássaros; alegres, as crianças.
E se lhe perguntassem:
«És uma árvore feliz?»
Responderia sem hesitação:
«Sou.»
Mas nunca ninguém perguntava.
O balão vermelho lá continuava no céu, a bailar atrás da nuvem. E a árvore olhava-o, via como deambulava livre, solto, leve; via como passava. Olhava-o e sorria, apesar de não ter boca nem músculos nem olhos que pudessem brilhar; apesar de não ter rosto. Mas sorria, porque para sorrir basta ter corpo.
«És uma árvore feliz?»
Responderia sem hesitação:
«Sou.»
Porque sentia-se genuinamente feliz. Mas, apesar da felicidade, via como as nuvens passavam, via como os pássaros passavam, via como as crianças passavam; e invejava um pouco a liberdade de nuvens e pássaros e crianças. Invejava a possibilidade de passar, que era algo que nunca poderia fazer. O destino das árvores é estar, e não passar. E ela estava, imaginando como seria passar. Sonhando.
Se lhe perguntassem:
«És uma árvore sonhadora?»
Responderia sem hesitação:
«Sou.»
Se não fosse envergonhada, explicaria que o sonho era a sua verdadeira raiz; era o sonho que a sustentava, sólida e forte, e lhe permitia crescer centímetro a centímetro em direcção ao sol. Mas falar de sonhos não é conversa que uma árvore tenha, suspeitava que não seria realmente compreendida se confidenciasse os seus segredos a alguém. E a sensação de incompreensão era um tipo de solidão que sentia de forma particularmente incisiva, mas inconfessável (porque falar de solidão também não é conversa que uma árvore tenha). E por isso, distraía-se: via como as nuvens passavam, via como os pássaros passavam, via como as crianças passavam.
Tranquilas, as nuvens; ruidosos, os pássaros; alegres, as crianças. Mas as nuvens nunca paravam, os pássaros nunca pousavam, as crianças nunca se aproximavam.
Até que um dia, estava a árvore a pensar nos seus sonhos quando se aproximou uma criança; dia sem nuvens e em que ainda não se tinham visto pássaros por ali mas a criança aproximou-se mesmo. E ali ficou a olhar a árvore com os seus olhos brilhantes e curiosos; rodeou-a e andou à sua volta, tocou-a com os seus dedos pequeninos.
«Falas português?»
Perguntou a menina. A árvore sorriu, apesar de não ter boca nem músculos nem olhos que pudessem brilhar; apesar de não ter rosto. Mas sorriu, porque para sorrir basta ter corpo.
«Olha, podes fazer-me um favor?»
E sem esperar uma resposta, começou a prender o balão que trazia consigo num dos ramos da árvore.
«Tomas conta do meu balão, enquanto vou andar de bicicleta?»
Era um balão vermelho. E a árvore imaginou que o seu ramo era uma mão, imaginou que o seu tronco era o corpo de uma menina; imaginou-se criança a passear um balão vermelho, pés descalços na relva verde, cabeça erguida em direcção ao céu azul; e a brisa a fazer cócegas na sua pele. Imaginou ou sonhou?
Se lhe perguntassem:
«Preferes sonhar ou imaginar?»
Responderia sem hesitação:
«Prefiro quando não consigo distinguir uma coisa da outra, quando se misturam.»
Se passasse ali um pintor talvez gostasse de fixar numa tela aquele quadro inesperado: uma árvore a fingir-se criança. Mas não passou nenhum pintor e a árvore deixou-se estar quieta, completamente quieta (na sua imaginação, mexia-se muito; e nos sonhos também); a saborear aquela novidade, a sentir aquele momento. A viajar com o seu balão.
Mas depois de um momento vem sempre outro. E ninguém poderia adivinhar que o momento que estava quase a chegar seria um momento mau. Começou quando a árvore sentiu que o cordel que prendia o balão ao seu ramo começava a libertar-se muito devagarinho. E por mais que a árvore imaginasse ou sonhasse, por maior que fosse o seu desejo ou a sua aflição, o ramo não conseguiria transformar-se numa mão, em dedos que pudessem segurar e prender o fio. Imaginou e sonhou, desesperada; mas o fio soltou-se.
O balão subiu ao céu, lento. Parecia um bailarino envergonhado, pensou a árvore. A subida do balão no céu parecia uma dança, pensou a árvore.
Se lhe perguntassem:
«Gostavas de dançar?»
Responderia sem hesitação:
«Muito. Farto-me de dançar em sonhos. E na imaginação também.»
Mas as árvores não podem dançar, tal como não podem correr atrás dos balões que lhes fogem das mãos que não possuem. O balão fugia e a árvore olhava, dividida entre a vontade de apreciar a beleza daquele voo e a aflição que sentia por ter decepcionado a menina. Na verdade, foi um dos piores momentos da sua vida, nunca sentira o desespero de não poder agarrar algo que lhe escapava. Nunca pensara nisso mas, de repente, pareceu-lhe que talvez fosse essa a mais bonita capacidade dos humanos: a de agarrar. Agarrar-tocar-pegar-segurar-cuidar.
Ainda não tinham aparecido pássaros. Mas surgira uma nuvem, pequena e branca; lá estava ela, como se o céu fosse o seu quarto. E o balão vermelho ia subindo na sua direcção, como se tivesse sido convidado para ir brincar no quarto da nuvem. Apesar da aflição que sentia, a árvore não conseguia deixar de achar aquilo bonito. E quase se esqueceu que havia uma menina a andar de bicicleta, algures.
«Onde está o meu balão?»
Durante um instante, a árvore teve medo. Medo que a menina se chateasse, medo que a menina chorasse, medo que a menina lhe arrancasse ramos, medo que a menina ficasse triste para sempre. E quis fugir. Mas não fugiu, porque era uma árvore e as árvores estão presas à terra pelas suas raízes. (Sim, acreditava que o sonho era a sua verdadeira raiz; era o sonho que a sustentava, sólida e forte, e lhe permitia crescer centímetro a centímetro em direcção ao sol. Mas poderia o sonho ser, também, uma prisão?, perguntou-se um pouco desesperada.)
Depois de um momento vem sempre outro. E ninguém poderia adivinhar que o momento que estava quase a chegar seria um momento bom.
«Oh, foi brincar com aquela nuvem. Que giro.»
A menina olhava para o balão vermelho, que prosseguia o bailado no céu azul. A árvore viu que a menina sorria, apesar de ter perdido o seu balão. E sentiu-se feliz; apesar de saber que muitas vezes a felicidade se confundia com alívio, pareceu-lhe que naquele momento o que sentia era mesmo felicidade.
Ficaram a olhar o balão, a menina e a árvore. Durante muito tempo.
«Fizeste bem em deixá-lo voar.»
Disse a menina. E mais tarde, acrescentou numa voz baixinha:
«Às vezes, gostamos tanto das coisas que não conseguimos largá-las.»
E a árvore, que pouco antes percebera que a melhor coisa de ser pessoa era poder agarrar-tocar-pegar-segurar-cuidar, ficou a pensar se a melhor coisa de ser árvore não seria o poder largar. Largar folhas, largar frutos, largar sombras; por exemplo. Ou: largar balões.
De repente, a menina queixou-se que já lhe doía o pescoço. A árvore, que se distraíra a filosofar sobre as suas teorias do agarrar e do largar, ficou a ver a menina afastar-se. Talvez ela regressasse noutro dia, com um novo balão. E perguntasse:
«Queres largar este balão comigo?»
Ou talvez nunca mais voltasse. E os dias prosseguiriam como sempre. Veria como as nuvens passavam, veria como os pássaros passavam, veria como as crianças passavam. Tranquilas, as nuvens; ruidosos, os pássaros; alegres, as crianças.
E se lhe perguntassem:
«És uma árvore feliz?»
Responderia sem hesitação:
«Sou.»
Mas nunca ninguém perguntava.
O balão vermelho lá continuava no céu, a bailar atrás da nuvem. E a árvore olhava-o, via como deambulava livre, solto, leve; via como passava. Olhava-o e sorria, apesar de não ter boca nem músculos nem olhos que pudessem brilhar; apesar de não ter rosto. Mas sorria, porque para sorrir basta ter corpo.
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