# 62: Todo o tempo disponível

1.
Entro em casa, empurro a porta, avanço uns passos. Tento lembrar-me se há algo que deva fazer, algo que tenha adiado, alguma tarefa pendente; penso, devagar, percorrendo todo o espectro possível, disponível. Depois, desisto de pensar e avanço até ao quarto; fico durante um bocado a olhar para a cama, a pensar que daqui uns minutos, ou horas, estarei lá; penso, uma vez mais, em como a cama é o objecto da minha casa, da minha vida, com que mais me relaciono, com que tenho maior intimidade; e sorrio, com tristeza. Começo a despir-me, peça após peça, até ficar completamente nua; depois, caminho preguiçosamente pelo quarto, sentido o corpo descontraído, a pele livre; pergunto-me se alguém, algum dia, voltará a contemplar o meu corpo, assim, despido e vulnerável, disponível; talvez não. E apesar da dor, sinto também um princípio de liberdade.
Saio do quarto e dou algumas voltas desnecessárias pela casa. O cão persegue-me, irritante. Tento não pensar no funeral. Tento não pensar no morto; depois, tento recordar o seu sorriso: e não consigo.
Regresso ao quarto, deito-me. Durante um instante, é agradável sentir o corpo assim, simultaneamente livre e acarinhado; mas a sensação logo se dissipa. Lá fora escurece lentamente, enquanto o mundo se esforça para se manter em silencioso. Fecho os olhos, volto a abri-los. Espero que os minutos passem, lentos e vazios. Depois, levanto-me e cubro o corpo, gélido, com algumas roupas, as primeiras que encontro; volto a deitar-me, a fechar os olhos, a esperar.

2.
Acordo de súbito, agitada por um pesadelo. Aconchego-me na cama, confusa e assustada, momentaneamente distraída com o longínquo e difuso uivo dos lobos ecoando lá longe, na pradaria; depois, lembro-me que – agora – estou sozinha, que talvez assim esteja por muito tempo: e sinto a solidão entranhar-se no meu corpo, apropriar-se dele, controlá-lo. Permaneço rígida, com os olhos a perscrutar a escuridão, a mente a perscrutar o futuro; sem esperança. Então, começo a chorar, pela primeira vez em muito, muito tempo; não porque tenha cedido, por fim, ao desamparo; apenas porque não tenho mais nada, mesmo mais nada, para fazer, para me distrair. Porque até os longínquos lobos se calaram, talvez apaziguados: deixando-me ainda mais só.
Suponho que acabarei por voltar a adormecer.

3.
O sol da manhã entra pela janela da cozinha; e é agradável. Pequenas nuvens de pó bailam no ar, descubro uma frágil teia de aranha na cortina; sons imprecisos – talvez imaginados? – de vidas desconhecidas e apressadas, lá fora. O cheiro insidioso de sopa estragada agonia-me; e fico a olhar a panela, a perguntar-me que representa, afinal, esta sopa, por que motivo ainda não consegui despedir-me dela. O cão aproxima-se, vagaroso: tão insuportavelmente presente, disponível; possessivo.
Como um pedaço de pão seco, devagar; e de repente exaspera-me esta vida sem pressa, sempre lenta e lenta e lenta, esta vida em que há tempo para tudo e em que tudo se deve fazer devagar: porque há tão pouco para fazer que tem que se prolongar cada tarefa, cada pensamento, cada gesto, para que todo o tempo disponível seja preenchido e ocupado e considerado bem gasto, utilmente gasto. Começo, então, a mastigar com mais rapidez. Depois, dominada por um impulso súbito, pego na panela de sopa e deito-a à pia; lavo a panela, abro a janela. Sinto o cheiro partir, derrotado.
E depois imobilizo-me a meio de um gesto, de um pensamento; respiro fundo, olho em redor: a tentar perceber se algo mudou.

4.
Saio à rua, por fim. Ainda sem objectivo nem destino, apenas decidida a sair de casa e caminhar livremente, respirar ar puro; fugir de mim própria, talvez. Ser olhada e testemunhar perante o mundo que ainda estou viva, que ocupo espaço e consumo ar, que conto; perceber nos olhares, nas expressões, das pessoas com quem me cruzar a minha existência efectiva, concreta, palpável. Desligar o silêncio: e preenchê-lo com qualquer coisa.
Caminho, então. Sinto no corpo a suave agitação do vento vindo da pradaria, trazendo consigo o cheiro da vastidão e do vazio, da intemporalidade, transportando ténues e difusos – enganadores – indícios de liberdade. Reparo, uma vez mais, como as florzinhas do meu jardim morreram há muito, transformando-se em macabros cadáveres ressequidos; tento recordar a longínqua manhã que passei de joelhos na terra, plantando e regando e cuidando, uma suave manhã de primavera, distante e quase – quase – esquecida; uma recordação tão longínqua que parece emprestada, uma recordação de outra pessoa qualquer; talvez de uma outra vida minha; e pergunto-me, sorrindo secretamente, quantas vidas compõem uma vida. Paro para abrir a cancela, sentindo a rugosidade da madeira, deixando a mão um momento mais que o necessário; depois, dou uns passos e volto a parar, fecho a cancela. E é então que reparo no cão, deitado na sombra, ao lado da árvore. Estranho a sua imobilidade e, por um momento, suspeito que esteja morto. Mas não está, certamente que não. Volto a abrir a cancela e caminho até à rua; respiro fundo, o sol quente a incomodar-me um pouco, só um pouco. Lá por cima, farrapos de nuvens, vagando preguiçosamente, arrastando-se em direcção à pradaria.

5.
Avanço, sem firmeza nem convicção. Há homens de rostos compungidos que me acenam solenemente, enquanto erguem o chapéu; crianças que param de gritar ou rir quando me vêem; mulheres que ostentam expressões angustiadas enquanto me olham e que, logo depois, regressam às suas conversas inconsequentes e irrelevantes; passo e causo uma suave, ligeiríssima, impressão: mas logo sou esquecida. Pergunto-me vagamente se esta irredutível solidão que sinto será, secretamente, partilhada por todas estas mulheres com quem me cruzo, que me olham; se terá sido assim com as mulheres que viveram há cem anos, se será – ainda – assim com as mulheres que viverão daqui cem anos.
Entro no mercado, onde sou recebida com um silêncio respeitoso. Apalpo as cenouras, escolho três; couve e batata e nabo e feijão; arrumo tudo no cesto, entrego moedas à senhora que há anos me vende cenouras e couves e batatas e nabos e feijões – lembro-me, de repente, que também ela é viúva. Depois, quando estou a receber o troco, decido que não preciso dos legumes que acabo de comprar: não voltarei a fazer sopa.
Chego à rua e a luz da manhã cega-me um pouco, forçando-me a caminhar com passos um pouco trôpegos. Há alguns trabalhadores das minas a percorrer a praça, tumultuosos e exaltados, apregoando ruidosamente a descoberta de vestígios – concretos? Imaginados? Mas que importa, afinal? – de ouro; uma possibilidade de mudança, apenas: o suficiente para os fazer temporariamente felizes. Quatro ou cinco rapazes, trabalhadores de um qualquer rancho insignificante em visita à cidade, com as botas cobertas de bosta de vaca e os chapéus descoloridos pelo sol, olham em frente, ignorando os mineiros, talvez arrependidos das suas opções, talvez apenas a aguardar que o tempo passe e se descubram noutro sítio qualquer, diferentes. E depois, envolvendo a cidade: o apito inesperado do comboio, aproximando-se.
À entrada da igreja hesito durante um momento; mas entro, empurrando a grande porta de madeira, coberta pelo suor gordurento e solidificado de centenas de mãos; sento-me e olho para a enorme e solene cruz. Penso no meu marido; depois deixo de pensar nele: e pergunto-me se é isto que é suposto sentir uma viúva. Recordo o estranho pistoleiro que trouxe o seu cadáver, amarrado a um cavalo: a expressão misteriosa e o olhar opressivo, os seus gestos dissimulados; tão insuportavelmente silencioso; pergunto-me que segredos esconderá, no âmago da sua alma. E depois imagino como seria bom ter segredos, algo a esconder, a proteger; como é monótona esta existência linear e virtuosa, pública.
Fico a pensar nisto durante muito tempo. Como seriam os meus segredos, se os tivesse?

6.
Saio da igreja, esquecendo propositadamente o cesto de legumes que deixara à entrada. É possível que alguém repare e, daqui umas horas, me apareça à porta, fazendo a entrega com um sorriso embaraçado, aguardando um sorriso embaraçado em troca; e terei que fingir surpresa, agradecer. Vou caminhando, com o olhar no chão. Talvez isto possa contar como segredo: esqueci os legumes de propósito porque já não os quero, é este o meu grande segredo. E sorrio, preparada para o guardar com tenacidade.
Passo após passo. O saloon ruidoso. O gabinete do Xerife, fechado; pergunto-me quantas vezes lá terei entrado; três? Cavalos que cheiram mal. Nuvens – ainda as mesmas nuvens – arrastando-se vagarosamente pelo céu descolorido. Olhares dissimulados e perscrutadores, invasivos. O murmúrio arrastado da pradaria, ecoando no silêncio. Cacarejos de galinhas. Risos de crianças. O apito do comboio, que parte. E eu a deslizar pela rua, sem deixar pegadas.
Como antes. Como sempre.

7.
Depois, enquanto caminho, passos lentos e olhos fixos no chão – onde estarão, afinal, as minhas pegadas de há pouco? –, penso no meu marido. No morto.
Recordo, sem dor nem exaltação, como estive profundamente apaixonada por ele, sem limites nem concessões, sem receios ou hesitações; recordo como vivia para ele, com ele, nele. Obsessivamente, dia após dia: durante um mês. Ou mesmo que fossem dois, três, quatro. Uma vida.
Recordo, também, como inevitavelmente a paixão começou a desvanecer, implodindo lentamente, tão lentamente. Num dia amava-o profundamente; e no seguinte continuava a amá-lo: mas menos profundamente. Só um pedacinho menos, um pedacinho quase imperceptível, tão insignificante que quase – quase – poderia ter sido confundido com uma inexistência; mas eu sabia. Sabia que a paixão, feita de fascínio e amor e novidade e deslumbramento e conforto e compreensão e prazer e riso e sintonia e sexo e voracidade, se estava a transformar em repetição, em rotina, em monotonia, em frustração, em decepção, em silêncio. Lentamente, sempre lentamente.
Caminho pela rua poeirenta, sentindo-me quente e desconfortável, amorfa, minúsculas gotas de suor formando-se na minha testa, a roupa pesada, colando-se à pele; recordando o longínquo dia em que dei por mim a tentar perceber para onde fora essa paixão que, durante algum tempo, avassalara a minha vida e justificara a minha existência; onde estava? Em que se transformara? Quando regressaria? A tentar perceber se a minha vida já passara.
Caminho, sem pressa; ainda sem perceber se a minha vida já passou.
Pergunto-me se o cão ainda estará estendido à beira do jardim; penso se, afinal, não estará mesmo morto; e tento não ter demasiada esperança.

8.
Entro em casa, empurro a porta, avanço uns passos. Tento lembrar-me se há algo que deva fazer, algo que tenha adiado, alguma tarefa pendente; penso, devagar, percorrendo todo o espectro possível, disponível. Depois, desisto de pensar e avanço até ao quarto; fico durante um bocado a olhar para a cama, a pensar que daqui uns minutos, ou horas, estarei lá; penso, uma vez mais, em como a cama é o objecto da minha casa, da minha vida, com que mais me relaciono, com que tenho maior intimidade; e sorrio, com tristeza. Começo a despir-me, peça após peça, até ficar completamente nua; depois, caminho preguiçosamente pelo quarto, sentido o corpo descontraído, a pele livre; pergunto-me se alguém, algum dia, contemplará o meu corpo, assim, despido e vulnerável, disponível; talvez não. E apesar da dor, sinto também um princípio de liberdade.
Mas, logo de seguida, invade-me a desconfortável sensação de já ter vivido este momento, de que me estou a repetir. E apetece-me parar: e mudar; viver outra coisa, experimentar outra sensação. Sim, apetece.

Esboço # 22

Certamente que já reparaste: há muito que não conversamos. Sim, vivemos juntos e aparentemente somos felizes (pelo menos, é o que diríamos se alguém nos perguntasse), partilhamos com agrado e determinação uma relação pragmática e mecanizada, feita de rotinas e preguiças e subsistências; uma relação madura e ponderada (segura), alicerçada no respeito pelo outro (ou será na indiferença pelo outro?), onde não há lugar à surpresa ou ao arrebatamento. Não conversamos porque sentimos que não há nada de novo a dizer (e para quê repetir as mesmas coisas?), talvez também porque não nos apeteça ouvir, não nos interesse assim tanto o que o outro ainda tenha para dizer (ocorre-me, agora, que poderia ser interessante – engraçado – conversar um pouco sobre este assunto).
Tudo isto é – acredito – normal. Mas o que me parece algo peculiar é o nosso comportamento na cama (e não me refiro a sexo, sobre isso já nada temos a dizer, a partilhar): a forma algo prosaica mas cálida (ternurenta?) como todas as noites, quando nos deitamos, aconchegamos os corpos um no outro e assim permanecemos, juntos; sempre: como na primeira noite. Um vestígio de amor? Ou apenas distracção? Hábito? (Por vezes, penso: talvez seja apenas por isto que ainda permanecemos juntos.)

Esboço # 21

Estou, uma vez mais, a pensar em ti; esparramada no cadeirão, cigarro na mão (a cinza a cair para o chão; tenho que ir buscar o aspirador, daqui pouco) e olhar perdido na janela, vendo as nuvens passarem (mas são todas tão iguais, tão repetitivas), o tempo passar. Tudo muito lento, muito inconsequente, muito sorumbático; igual ao que já foi, ao que será.
Sim, penso em ti: com saudades. Apetecia-me que estivesses aqui, junto de mim, cigarro na mão (poderia pedir-te para ires buscar o aspirador; e talvez fosses), olhar perdido; poderíamos falar da monotonia das nuvens ou permanecer em silêncio, falar de nada; claro que o tempo continuaria a passar por nós, lento e inconsequente e sorumbático: mas estaríamos a vê-lo passar juntos.
Deixo cair a beata do cigarro no chão e levanto-me para ir buscar o aspirador; caminho lentamente até à despensa mas paro pelo caminho, mesmo junto ao telefone; e seguindo um impulso intenso e veemente, marco o número que ainda recordo (claro que recordo). Quando atendes, digo-te (vozinha ansiosa e vulnerável) que é o dia do nosso aniversário; três anos de divórcio, explico; e depois, pergunto: não te apetece comemorar? Estar juntos e assim.

# 61: Cicatrizes

1.
EU: E depois?
ELE (desviando o olhar): Congelei; fiquei a olhar para aquilo, sem saber bem o que estava a ver. Sem me conseguir mexer. (Pausa breve.) Consegues imaginar? (Abanando a cabeça.) Estás ali a despi-la, tentando parecer calmo, tentando não apressar demasiado, a saborear, convencido que ela também está a saborear; e estendes a mão para lhe agarrares as mamas, enquanto te aproximas já com a boca aberta, preparado para chupar, a antecipar o sabor, a sensação e. (Pausa breve.) E não está lá nada. Apenas duas cicatrizes arrepiantes, mais nada.
(Pausa breve.)
EU (curioso): Mas que fizeste?
ELE (distante): Não sei quanto tempo terei ficado para ali a olhar, incapaz de não olhar. E ela à espera não sei de quê, como se fosse possível eu não notar e continuarmos para ali a foder alegremente.
EU: Talvez fosse isso que ela queria. Que fingisses que estava tudo bem e que continuasses, simplesmente.
ELE (irritado): Claro que era isso que ela queria, que ela esperava. Mas não consegui; acho que nem cheguei a tentar, limitei-me a bloquear. E fiquei para ali à espera, a ver o que acontecia. (Pausa breve.) Até que ela lá acordou do estado meio hipnótico em que estava. Não nos olhámos, limitámos a afastarmo-nos um pouco um do outro; em simultâneo, como se fosse a coisa mais natural, como se tivéssemos combinado. Ela apertou a blusa, cobrindo o peito, escondendo-o; e eu levantei-me, sem saber o que fazer com as mãos e com os olhos, sem saber o que dizer. (Pausa breve.) Fiquei a olhá-la enquanto ajeitava a saia, incapaz de dizer fosse o que fosse.
(Pausa breve.)
ELE (num tom de voz mais baixo, hesitante): E então, ela pede desculpa.
EU (surpreendido): Ela é que pede desculpa? A ti.
ELE (envergonhado): Ela a dizer-me aquilo, sem me olhar, numa voz baixinha, e eu a sentir-me um filho da puta. (Pausa breve.) Foi apertando os botões da blusa, voltou a ajeitar a saia e, naturalmente, aproximou-se da porta.
EU (tentando disfarçar o desagrado): Não a impediste de sair?
ELE: Ainda dei uns passos, atrás dela. Mas não sabia o que lhe dizer, que raio poderia eu dizer? (Num tom irónico, profundamente desagradável.) Olha, deixa lá, não faz mal, vamos mas é continuar. (Pausa breve.) Dizia isso? Era o que tu dirias? Foda-se. Não consegui dizer nada.
EU: Poderias aproximar-te dela e tocar-lhe. No ombro ou assim.
ELE (admirado): Tocar-lhe?
EU (quase sobranceiro): Sim. Tocar-lhe.
(Pausa breve.)
ELE (embaraçado): Não sei. Penso que não seria capaz. Acho que teria medo de lhe tocar, sabes.
EU (um pouco agressivo): Medo? (Arrependendo-me da agressividade.) Medo de quê?
(Encolhe os ombros, abana a cabeça. Pausa longa.)
ELE: Saiu, simplesmente. E eu fiquei para ali, sentado na cama. Com a imagem das cicatrizes na cabeça, incapaz de esquecer. (Pausa breve.) Depois, de repente, vejo as cuecas dela no chão; eu próprio lhas tirara, alguns minutos antes; e agora estavam para ali abandonadas, fúteis e ridículas; acusadoras, sei lá. Não se lembrara delas, ou não quisera saber.
EU (num tom triste, talvez vagamente hipócrita): Com pressa de fugir. De se salvar.
ELE (num tom embaraçado, triste): É, salvar-se de mim. (Pausa breve.) Imaginei-a no elevador, incapaz de se olhar no espelho; a abraçar-se a si própria, tentando proteger o peito, esconder as cicatrizes. Percebes? A proteger o que já lá não estava, o vazio. (Pausa breve.) Ali fechada, talvez a chorar. E sem cuecas, sentindo-se completamente despida, vulnerável.
(Pausa breve.)
EU (forçando um tom quase agradável): E foi então que correste atrás dela?
ELE (sorrindo): Foi.

2.
Sentamo-nos à mesa, em silêncio; ela olha-o e sorri, ele corresponde de imediato ao sorriso; estendem as mãos em simultâneo, tocam-se. Finjo que não vejo a carícia, sentindo-me desconfortável (sentindo, também, inveja, ciúme? Talvez, um pedacinho), como se estivesse a invadir demasiado a sua privacidade, a testemunhar um excesso de intimidade.
Então, ela vira-se para mim e sorri: dá-me toda a sua atenção; quer que eu fale, deseja conhecer este amigo misterioso do marido que apareceu de repente, vindo de longe, do desconhecido, do passado. O seu sorriso é agradável, sedutor; confiante? Sim: contrariando a imagem que eu concebera, enquanto ouvia o relato do primeiro encontro, do primeiro desencontro. E falo de mim, um pouco ao acaso; ela escuta, atenta e curiosa, interessada. (Isto espanta-me um pouco: é tão raro encontrar alguém efectivamente interessado em ouvir e não apenas em falar, em se ouvir; raro, mesmo: quase nem estou habituado.) Conto banalidades, ela sorri; e vamos comendo, indiferentes ao tempo que vai passando, aos risos que chegam das outras mesas, às interrupções da funcionária que vai colocando pratos, retirando pratos.
Por vezes, espreito-o; estranho o seu silêncio, a sua ausência, o seu enfado: limita-se a escutar, vagamente desinteressado; suponho que esteja arrependido da sua confidência, que lamente ter traído a confiança da mulher que ama (ama? Suponho que sim, que realmente a ame); ou que receei que eu o denuncie. Porque tenho a certeza que ela não suspeita que eu sei das cicatrizes, julga-se segura; normal.
Vou falando, agradecido pelo seu interesse; e incapaz de desviar o olhar do seu rosto, do seu sorriso. Com vontade de lhe perguntar como foi capaz de lhe ter perdoado, como foi capaz de regressar ao apartamento dele, como foi capaz de se deixar foder; perguntar-lhe como foi capaz de amá-lo.

3.
EU (sentindo-me profundamente desleal, quase pérfido, mas incapaz de me contrariar, incapaz de não perguntar): Afinal, como é que se conheceram?
(O sorriso dela desaparece, lentamente; olha-o, expectante: um pouco decepcionada, um pouco triste. Ele corresponde ao olhar, encara-a durante um instante, desconfortável e consternado; depois, olha-me com firmeza, com desprezo. Desvio o olhar, arrependido.)
ELA (após um longo silêncio, num tom vacilante e ambíguo): Tivemos um começo um bocado hesitante. (Sorriso triste. Pausa breve.) Mas passou, tudo acabou por correr bem. (Sorriso menos triste.) Tudo corre bem. (Estende uma vez mais a mão na direcção dele, que corresponde ao seu gesto; tocam-se mas não se olham.)
(Pausa breve.)

EU (num tom falso e displicente, quase irónico): Desde que não tenham ficado cicatrizes…
(Levanto-me devagar, sem os olhar, e arrumo a cadeira com cuidado desnecessário, quase obsessivo; desvio-me um pouco para que a funcionária do restaurante retire não sei bem o quê de cima da mesa; sorrio-lhe e ela corresponde, sorrindo-me. Depois, afasto-me na direcção da casa de banho.)

Ebook # 01: Sincronismos

Está disponível, para quem estiver interessado, um ebook gratuito. É só pedir por mail.
Chama-se “Sincronismos” e resulta da sincronização entre catorze imagens abstractas e catorze pequenos textos, algures entre a micro narrativa e o devaneio.
Por causa das dúvidas, dois exemplos.




Aquilo de que ele mais gostava nela, para ser honesto, era do peito, em especial dos mamilos rígidos e castanhos, que saboreava devagar nas tardes cinzentas de Outono. Mas quando ela pergunta, sempre depois de ele dizer que a amava, de que mais gostava nela, ele respondia invariavelmente: da tua personalidade. E ela sorria, agradecida.





Eram uns comprimidos tão bonitos que as pessoas não gostavam de os tomar: preferiam contemplá-los demoradamente, desfrutando da sua textura e cor.E a verdade é que ninguém sabia para que serviam; desconfiava-se até que os médicos apenas os receitavam porque eram, efectivamente, os mais bonitos.

Comme d’habitude IV

1.
Por vezes, acordávamos a meio da noite sobressaltados pelo choro estridente e desesperado do bebé que vivia algures no andar de baixo. Resmungávamos sem convicção e enfiávamos a cabeça nas almofadas, à espera que o silêncio regressasse; dizíamos: malditas cólicas. Esperávamos mais um pouco, resmungávamos de novo. E, geralmente, voltávamos a adormecer antes do bebé acalmar, imunes à sua aflição e, também, indiferentes aos murmúrios dos pais, à subtil – por vezes inexistente, apenas intuída – agitação que perturbava o prédio, a noite, o sono.
Até que, um dia, disseste: reparaste que o bebé lá de baixo já não chora há umas semanas? Não reparara. As cólicas finalmente passaram, pensámos; ou mudaram de casa. Na verdade, não os conhecemos (porque haveríamos de conhecer?), nunca os vimos, nem sequer nos cruzámos no elevador ou à porta da garagem ou nas reuniões de condomínio; das suas vidas fomos conhecendo apenas alguns sons, nada mais. Por isso, limitámo-nos a apreciar o regresso do silêncio; achámo-lo natural (um direito nosso, de certa forma): e deixámos de reparar nele.

2.
Depois, passaram mais umas semanas; e tu disseste, um pouco agitada (só um pouco): sabes que, afinal, o bebé morreu? Senti um súbito baque, que logo se foi dissolvendo e dissipando, deixando atrás de si apenas um amargo desconforto; não respondi, tu também não acrescentaste mais nada; olhámo-nos e logo desviámos o olhar (envergonhados? Suponho que sim). Fomos aguardando (em silêncio) que o tempo passasse, lento e inexorável, levando consigo a sensação desagradável, o pensamento incómodo, a memória dolorosa (um bebé que chora na escuridão da noite, aflito: lutando pela vida). Esperamos; talvez amanhã já não nos lembremos dele; ou para a semana que vem, o mais tardar.
(A vida prosseguirá: comme d’habitude. E, claro, não deixaremos de apreciar o silêncio vindo lá de baixo.)

Comme d’habitude III

Prazo de validade expirou...

Comme d’habitude II

1.
Estamos estendidos no sofá a olhar para o vazio da televisão; não falamos, não pensamos, não sentimos: esperamos, simplesmente. E o som da publicidade acompanha-nos, os olhos reagem lentamente aos caleidoscópios de cor que invadem a sala fria, estática. Os dois no sofá, sem nos tocarmos, distantes e isolados. Comme d'habitude.

2.
Mas, então, estendes a mão, sinto os teus dedos pousarem no meu braço; o corpo não reage mas o espírito sobressalta-se um pouco: porque sei o que vais dizer dentro de três, quatro minutos.
E passam, os três, quatro minutos; explosões de cor (e os nossos olhos: abrem e fecham, abrem e fecham), música e vozes disfarçando (preenchendo) o nosso silêncio; e os corpos ainda distantes, excepto a tua mão no meu braço: incomodando. Dizes, como previsto (tom hesitante, indeciso): apetece-me fazer amor.

3.
Não reajo. Pergunto-me se a reacção que aí vem poderia ser diferente caso tivesses perguntado: apetece-te fazer amor? Suponho que não; poderá, afinal, a vontade estar dependente de simples e vulgares nuances gramaticais? Quase sorrio, sozinha.
Tudo como antes, portanto. Distância, silêncio, toque; e o convite, pairando desagradavelmente entre nós como uma subtil intromissão (ou agressão?). Talvez permaneçamos assim durante mais alguns minutos (a duração de uns quinze, dezoito anúncios publicitários, não mais que isso); ou poderá acontecer que te impacientes: e desistas.
Afinal, decides retirar a mão e, sem delicadeza, pousá-la no meu peito; apertas um pouco, os dedos envolvendo o seio, a palma pressionando o mamilo; logo depois, ouço a tua respiração alterar subtilmente, revelando o princípio da excitação (traduzindo: já estás com o caralho teso; pronto), e apetece-me fechar os olhos; fugir. Mas, inesperadamente, ouço-me falar: já reparaste como a expressão “fazer amor” é profundamente ridícula? Parece-me detectar uma breve hesitação no teu ritmo respiratório mas a firmeza dos dedos não diminui; e persistimos em não nos olharmos, aguardando, adiando (para quê olhar, afinal? Há tanto tempo que não vimos no outro nada de relevante, de surpreendente, de recompensador. Há quanto tempo? Dez mil anúncios atrás, talvez; ou mais). Digo (surpreendendo-me a mim própria): não achas? Fazer? Porquê fazer? (Hesito; e logo depois, só um pouquinho desafiadora): Nunca se fala em sentir nem proporcionar nem trocar nem saborear. Não. Fazer.
A tua mão solta-se, sem pressa. Ainda penso que talvez te levantes do sofá e caminhes pesadamente pela sala, fugindo; mas não: permaneces. E os anúncios vão-se sucedendo, desfilando perante nós; unindo-nos no afastamento.

Comme d’habitude I

1.
Quando entro, olhas-me e sorris; aproximo-me devagar, antecipando o conforto do teu beijo, a familiaridade do teu cheiro, a carícia do teu toque. Cumprimos este ritual (desde quando? Como começou, afinal? Não me lembro) conscientes de que o abraço representa, talvez, o momento de maior intimidade, de maior partilha, de maior comunicação entre nós: o momento diário que simultaneamente redefine e rejuvenesce a nossa relação. Mas esta carga simbólica (poética?) não nos inibe, não nos constrange: precisamos do abraço, do que significa; e a cada dia, saboreamo-lo como se fosse a primeira vez, a última vez; a única vez.
Estamos juntos, finalmente: e os nossos corpos aconchegam-se, unem-se. Respiro o teu cheiro enquanto sinto a força dos teus braços, a tensão dos teus músculos; o teu rosto acomoda-se ao meu pescoço e encaixa com perfeição enquanto a minha mão acaricia o teu cabelo com delicadeza. E as nossas respirações serenam em sincronia enquanto o conforto que sentimos e partilhamos atrasa momentaneamente a voraz passagem do tempo. Ou, pelo menos, parece que assim é.
Pergunto-me, como sempre, se ainda sorrirás; que expressão terá o teu rosto? E os olhos: estarão abertos ou fechados? Não sei, talvez não queira verdadeiramente saber; afinal, é irrelevante.

2.
Cumpro, então, o meu hábito secreto. Os teus cabelos estão, como sempre, junto ao meu rosto, magicamente próximos; e concentro-me neles: olho-os, exploro-os, estudo-os; até encontrar o que procuro.
Nunca te contei, nunca falámos disto; mas a verdade é que durante o nosso abraço diário vou estudando e realizando uma espécie de inventário mental do teu cabelo. A verdade (suspeito que não gostarias de a conhecer ou, pelo menos, de a consciencializar, de a verbalizar; mas é, efectivamente, a realidade concreta e palpável, definitiva) é que todos os dias descubro um novo cabelo branco na tua cabeça.
Sim, todos os dias: um novo abraço, um novo cabelo branco; todos os dias: menos um dia.

3.
Por vezes (como agora), sinto a tentação de te perguntar se não terás já reparado nesta evidência da passagem do tempo, da diminuição dos dias disponíveis; terás notado que envelheces? E por que motivo nunca falámos sobre isso? Gostava de te confessar, também, o meu receio mais aflitivo; confidenciar-te que temo um pouco o dia em que todos os teus cabelos estejam brancos; porque, quando isso acontecer, como poderei continuar a ter a percepção da passagem do tempo? (Suponho que sorrirás, se te falar disto.) Quando for impossível descobrir um novo cabelo branco, como poderei ter a certeza de que o tempo ainda está efectivamente a passar, dia após dia, comme d’habitude? O que poderá testemunhar a mudança, provar-me que o tempo não parou, pelo menos para nós?
Sim, gostaria de te falar sobre tudo isto; e escutar o teu riso irónico e displicente, enquanto me escutarias, atenta, surpreendida; mas ainda não será hoje, agora. Porque sinto o teu corpo desprender-se do meu, afastando-me com suavidade. E logo desaparecem as reflexões, substituídas pela dúvida habitual, irrelevante e inócua, insistente: quanto tempo estivemos abraçados? (Por vezes, faço breves e ingénuos cálculos, estimativas, projecções: tentando adivinhar.) Quase em simultâneo, outra questão (menos irrelevante, menos inócua; mais insistente): por que motivo és sempre tu a decretar o fim do abraço?

4.
Olhas-me durante um instante, sorris (ou será ainda o mesmo sorriso?); depois, afastas-te, lânguida e preguiçosa (rejuvenescida?). Perguntas, lá de longe: o que te apetece para o jantar?

# 60: Enfado

1.
Aproxima-se, silenciosa; toca-me no braço e sorri; pouso o livro e tento disfarçar a contrariedade que sinto por estar a ser interrompido correspondendo ao seu sorriso. Diz que tem fome; respondo que já vou preparar o almoço; ela volta a sorrir e afasta-se, silenciosa. Eu pego no livro: e leio.

2.
Pouso o livro e espreguiço-me ligeiramente, tentando não reflectir demasiado no que acabei de ler; tiro os óculos e fecho os olhos, com força, proporcionando-lhes um breve intervalo. Sinto um prenúncio de dor de cabeça, aproximando-se; e fome, também.
Levanto-me e caminho em passos lentos até à cozinha; abro o frigorífico e tiro de lá uns bagos de uvas, que vou comendo enquanto espreito distraidamente pela janela; carros a passarem, indo e vindo: como sempre; mas continuo a olhar, na esperança que um destes dias aconteça algo diferente.
Apanho os caroços de uva que distraidamente cuspira para o chão e atiro-os para o balde do lixo; lavo as mãos cuidadosamente, enquanto me repreendo por não ter lavado as uvas. Procuro no congelador a caixa das mini-pizzas e ponho três no microondas. Um minuto e quarenta e cinco segundos, passando lentamente; a campainha que toca e um cheiro desagradável, artificial, a inundar a cozinha. Arrumo as pizzas no prato, lavo uma folha de alface, descasco uma pêra.
E chamo-a. Ela chega a correr e olha para o prato, sorri. Pergunta: outra vez pizza? E acrescenta, baixinho, só para si: estou mesmo com sorte. Abraça-me, apressadamente; depois, procura o comando e liga a televisão. Feliz.

3.
Caminho pela casa, entediado. Paro em frente de todas as janelas: e olho, à espera de qualquer coisa. Acabo por me sentar em frente do computador, ligá-lo: leio jornais durante três ou quatro minutos, visito um blogue onde leio umas cinco palavras antes de me aborrecer, actualizo o acrobat reader, visito o email; apetece-me música (ou melhor: apetece-me um silêncio menos intenso, menos ostensivo, menos incomodativo) mas não me consigo decidir por nada e acabo por desistir. Desligo o computador. Dou mais uns passos, sem sentido nem objectivo; pergunto-me se a dor de cabeça se concretizará ou não (sempre será uma distracção). Regresso à poltrona, sento-me, pego no livro. E é então, quando estou a ler a primeira palavra, que ela me chama.

4.
ELA (um pouco receosa): Prometeste que hoje íamos ao parque.
EU (contrariado): Está bem. (Suspiro, sem o disfarçar. Pausa muito breve.) Vamos daqui um bocado, antes do lanche.
ELA (feliz): Ok.
(Vira-se para a televisão, esquecendo de imediato a minha presença. E eu afasto-me, tentando decidir se me sinto contrariado ou não.)

5.
Sento-me num dos bancos e abro o livro preguiçosamente, começo a ler. Ela já trepou para um dos balancés e ri alto, muito alto. Esquecida de mim: outra vez.
Vou lendo, sentindo-me desconfortável: sol demasiado quente; banco muito rijo (mas não são todos?); uma vaga sensação de sede, ainda incipiente; uma mosca que por vezes aparece, zumbindo; e pressa, a constante pressa de partir, de estar noutro lado. Terão passado quatro minutos, seis no máximo: e trinta minutos de permanência é o mínimo aceitável pela minha filha. Por vezes, procuro-a com o olhar e fico a vê-la correr daqui para ali, dali para aqui; risos e gritinhos, felicidade. Mas regresso sempre ao livro; refugiando-me nele; leio alguns parágrafos, paro, mudo de posição; aborreço-me. Recomeço.
De repetente, destaca-se no murmúrio geral a voz de uma mãe a incentivar o filho, num tom presunçoso e condescendente; o miúdo olha-a, embaraçado, sem vontade de fazer o que a mãe deseja; mas ela não se cala, insistente e maçadora. Ele hesita e acaba por começar a trepar, impulsionado pela vergonha de sentir em si os olhares de todo o parque. Olho-a, curioso, distraído, e à distância parece-me uma mulher desagradável, com uma postura excessivamente (infundadamente) vaidosa; vou assinalando os pormenores que me desagradam (como se isso fosse relevante para ela, para alguém): óculos de sol enfiados no cabelo, horríveis e desmesurados, brilhantes; vestido demasiado curto revelando umas pernas muito longas, muito bronzeadas, muito desinteressantes; braços fortes e musculados, pouco femininos, denunciando presença frequente no ginásio; telemóvel na mão; anéis em muitos dedos, pulseiras; unhas pintadas, ostensivamente provocantes. Tento adivinhar onde estará a inevitável tatuagem enquanto vou observando os esforços do garoto, que de repente se desequilibra e grita, assustado; a mãe levanta-se e corre, decepcionada e furiosa (sim, parece-me que está mesmo furiosa); temo que bata no garoto mas não o faz, limita-se a pegar nele e pousá-lo no chão (os pés embatem com violência na terra, provocando uma pequena nuvem de pó); depois, agarra-o pelo braço e arrasta-o para a saída do parque, em silêncio. Fico a vê-la afastar-se: as nádegas bamboleando sob o tecido leve do vestido, uma pulseira balanceando no tornozelo; e o miúdo: cabisbaixo, talvez aliviado.
Regresso ao livro mas sou incapaz de me concentrar. Olho em redor mas nada me capta a atenção, nada me entusiasma a curiosidade; a miúda continua a correr de um lado para o outro, juntamente com outros miúdos. Há mais mães espalhadas pelos bancos (óculos escuros no cimo da cabeça e telemóveis nas mãos, olhares absortos), alguns casais de avós com máquinas fotográficas nas mãos e tristeza (ou será apenas indiferença?) nos olhares; gritos distantes da gente que joga futebol na outra ponta do parque misturados com os ruídos do tráfego da cidade, dissolvendo-se no sussurro dos pássaros escondidos pelas árvores.
E inevitavelmente: alguém conhecido que se aproxima com um sorriso.

6.
ELE (curioso): Qual é a tua?
EU (apontando): A que tem o boné cor de laranja.
ELE (surpreendido): Está tão grande. (Pausa breve.) Já tem o quê, seis?
EU (indiferente): Oito.
ELE (espantado): Oito? Fogo. Já anda para aí no segundo ano, não?
EU (indiferente): No terceiro.
(Ficamos os dois a olhar a miúda, em silêncio. O cão dele está sentado junto aos seus pés, imóvel e indiferente.)
ELE (quebrando o silêncio, que se torna algo desconfortável): Pois é, costumo passar por aqui com alguma frequência. (Apontando o cão.) Ele gosta de olhar para os miúdos. Correr atrás deles.
EU (olhando para o cão): E filhos? Continuas a pensar não ter?
ELE (após um longo silêncio, num tom pesaroso, quase envergonhado): Sabes, não sou eu que não quero. (Estende a mão e acaricia a cabeça do cão, com ternura; desvio o olhar, um pouco embaraçado.)

7.
Fico a vê-lo afastar-se, caminhando lentamente; o cão vai farejando o chão, um pouco mais atrás, indiferente ao dono. Há crianças que param durante uns instantes a olhar o cão mas nenhuma se aproxima, talvez receosas, talvez envergonhadas.
Um homem que passeia o cão. Como eu: que passeio a minha filha.

8.
Gelados na esplanada. Ela demora muito a escolher, indecisa; eu impaciento-me um pouco mas tento não o revelar; ela, como sempre, impacienta-se com a minha impaciência. Acaba por escolher, apressada; e mal a funcionária da esplanada lhe coloca o gelado na mão, por certo que se arrepende da sua escolha.
Sentamo-nos, evitando que os olhares se cruzem. Ela vai mordendo o gelado cuidadosamente, com aquela expressão estranha que as crianças – apenas as crianças – possuem: uma mescla perfeita de excitação e enfado; por vezes, tagarela um pouco; eu aceno com a cabeça, fingindo que escuto.
Ao nosso lado, a mãe estridente e o filho envergonhado partilham uma torrada, em silêncio, (também) sem se olharem. O miúdo parece indiferente e alheado, tal como a mãe. Recosto-me na cadeira e olho-a, sem pudor nem embaraço, percorrendo de novo os pormenores – superficiais mas marcantes – que me captaram a atenção, no parque; óculos de sol ainda enfiados no cabelo, horríveis e desmesurados, brilhantes (para que servirão, afinal?); vestido demasiado curto revelando as pernas muito longas, muito bronzeadas, muito desinteressantes (contudo: custa-me um pouco não as olhar); braços fortes e musculados, pouco femininos, denunciando presença frequente no ginásio (de certa forma, excitantes); telemóvel na mão (mas não há forma de tocar, pensará ela); anéis em muitos dedos, pulseiras (que entrechocam e tilintam, de forma desagradável); unhas pintadas, ostensivamente provocantes (mas e a tatuagem, onde estará? Ao fundo das costas, talvez).
Mas além do aspecto físico (que me exaspera um pouco mas, em simultâneo, me cativa de forma inesperada, intensa), sinto um breve fulgor de empatia com esta mulher. Porque, afinal, há algo profundo e inconfessável que nos une, silenciosa e secretamente: a obrigação de entreter os filhos; e o enfado que essa obrigação nos causa.
Claro que me sinto terrível, ao pensar isto; de mesma forma que me senti terrível no parque, quando pensei em homens que passeiam cães como se fossem seus filhos e homens que passeiam os seus filhos como se fossem cães (sinto de novo um incómodo no estômago, ao consciencializar este pensamento repugnante; e contraio-me ligeiramente, talvez até tenha feito uma careta de repulsa; a miúda, atenta e preocupada, pergunta: estás doente, papá?). Mas é precisamente por isso que não consigo deixar de a olhar, tentando talvez captar a sua atenção, o seu interesse; porque, na verdade, suponho que gostaria de discutir este assunto com alguém, conversar sem correr o risco de ser recriminado, confessar-me a alguém com pecados semelhantes; perceber que não sou o único.
Mas o gelado está quase no fim; na outra mesa, o miúdo brinca com um pedaço de torrada, aborrecido e desinteressado. E os adultos: olham-se, finalmente. Apenas um breve olhar, fugaz e perscrutador; uma avaliação de possibilidades, calculista e despudorada. Sim, suponho que poderia sentar-me na sua mesa; e enquanto os miúdos correriam juntos para o parque, conversaríamos preguiçosamente sobre responsabilidades parentais; partilharíamos experiências e histórias, embaraços e culpas. Principalmente isso: atenuaríamos e relativizaríamos e desculparíamos as culpas do outro.
Mas o telemóvel dela toca, inesperadamente; e ela atende, sorrindo.

9.
Estamos no carro, parados no trânsito. De repente, apetece-me conversar: e pergunto-lhe sobre a escola; ela encolhe os ombros, desinteressada; recosta-se na cadeirinha, para que eu perceba que está cansada. Não insisto.
Penso momentaneamente na mulher do parque, da esplanada; recordo o seu riso excessivo, enquanto conversava ao telemóvel; e o olhar do filho, (ainda; sempre) embaraçado e aborrecido. Depois, lembro-me do amigo do cão (o incómodo no estômago, de novo). Espreito a miúda pelo espelho, apreciando a serenidade do seu rosto. Alguém que buzina, acordando-me do devaneio, distraindo-me da culpa.
Avanço lentamente, recordando-me de súbito que esqueci o livro no banco do parque. Um breve fulgor de contrariedade, uma imperceptível hesitação; logo depois, um pensamento súbito e imprevisto, libertador: que se foda o livro.
Conduzo alheadamente, confundindo-me no trânsito, na multidão, no anonimato. Sim: que se foda. Tudo.

# 59: Altura

EU (quase distraído): E então refugio-me na varanda. Fumo e olho para o horizonte; sento-me no meu cadeirão e fico por aqui, à espera não sei de quê. (Pausa breve. Encolhendo os ombros, num tom displicente.) Sabes como é.
ELE (um pouco vacilante, como se falando apenas para si): A passar o tempo. (Pausa breve.) A adiar.
EU (num tom melancólico, ignorando o comentário): Geralmente, pego num livro e leio meia dúzia de linhas, sem fazer ideia do que estou realmente a ler. Mas insisto, vou fingindo que estou mesmo a ler, linha após linha; por vezes esqueço-me de mudar a página. (Pausa breve.) Uma desculpa, percebes? Uma forma de ter as mãos ocupadas. (Sorrio, muito brevemente.) Para o caso de alguém se preocupar com o que poderei estar a fazer, ter curiosidade. Lembrar-se de mim.
ELE (pensativo): É curioso, isso. Também já reparei. O modo como as pessoas receiam alguém que não esteja permanentemente ocupado, alguém que se atreva a estar simplesmente em stand by, à espera, em contemplação ou distraído ou assim. (Pausa breve.) Como se a imobilidade representasse um perigo, algo contagioso. Não é?
(Encolho os ombros.)
EU (após uma pausa, ignorando o comentário, a pergunta): Por vezes mudo de livro, agarro no primeiro que me atrai a atenção; ou passo por uma livraria e compro qualquer coisa, quase ao acaso. Mas já nem me lembro do último que li até ao fim. (Pausa breve.) Acessórios, nada mais.
(Ele sorri mas não correspondo; o seu sorriso vai-se apagando, lentamente; evitamos que os nossos olhares se cruzem, como se houvesse algum motivo de embaraço entre nós, algum constrangimento silencioso mas palpável.)
EU (tom distante e rígido, vacilante): E é nessas ocasiões que, por vezes, penso nisso. Sinto que não quero estar aqui, que não consigo estar aqui nem mais um instante; mas não há nenhum outro sítio onde queira estar, para onde me apeteça fugir. Sinto-me preso e condenado, completamente impotente, vulnerável. E então penso nisso.
ELE (após um longo silêncio): Saltar.
EU (um pouco chocado pela violência da palavra): Não é que pense obsessivamente ou metodicamente em saltar. Não, é uma ideia que vem e fica por aí um bocadinho, a pairar. Só isso. Uma espécie de possibilidade académica. Acho que nunca chegou a ser uma verdadeira tentação.
(Pausa breve. Acendo mais um cigarro, com gestos arrastados e mecânicos.)
ELE (olhando-me a acender o cigarro): Apenas uma vontade insistente de fazer algo, de agir. Não é? (Pausa breve.) Provocar o destino, precipitar a mudança. Saborear a ilusão de que, afinal, talvez se controle algo, talvez se tenha algum poder.
(Olho-o, um pouco impressionado com a sua análise; aceno com a cabeça e fumo, tranquilamente. Mantemo-nos em silêncio durante muito tempo, pensativos e distantes, esquecidos da presença do outro.)
EU (quebrando o silêncio e contrariando o leve desconforto que se foi instalando entre nós com um tom falsamente bem-disposto e prosaico): Mas sabes no que penso, por vezes? (Rio, forço-me a rir.) Que nunca saltarei porque serei sempre incapaz de me decidir se a altura é a adequada.
ELE (confuso, curioso; agradecido pela quebra do silêncio, pela regressão da tensão que momentaneamente surgiu entre nós e que, agora, se começa a dissipar): Não percebo.
EU (num tom novo e inesperado, genuinamente bem-disposto): O problema é decidir qual a altura certa. Se saltas de um sítio demasiado baixo corres o risco de não conseguir. Só te aleijas ou assim, e ficas pior do que estavas. (Pausa breve.) Mas se a altura é excessiva, demoras demasiado tempo até chegar lá ao fundo; e esse tempo pode ser suficiente para te arrependeres de ter saltado, percebes? E isso seria terrível, insuportável.
(Pausa longa. Ele levanta-se e dá uns alguns passos, hesitantes, pela varanda; olha lá para baixo, demoradamente. Volta a sentar-se e acende um cigarro, com gestos lentos e preguiçosos.)
ELE (num tom desprendido, sem me olhar): Vives num quinto andar. Parece-me perfeito.
(Rimos em simultâneo, com gosto e sinceridade mas também com desespero, com medo; depois o riso desvanece, muito lentamente. Continuamos a fumar, calados, ouvindo os risos estridentes de crianças que brincam algures.)

# 58: Mecanismos

PACIENTE (um pouco contrariada): Foi um pouco estranho, sabe? Mas pareceu-me, pareceu-nos, tudo muito natural, muito intuitivo e prosaico. Não é que estivéssemos a pensar naquilo, percebe? A analisar o nosso comportamento, a tentar justificá-lo. Não, nada disso. (Pausa breve.) Demos por nós a fazer aquilo, simplesmente; e pareceu-nos natural.
PSIQUIATRA (num tom inquiridor mas um pouco ambivalente): Confortáveis, um com o outro. Juntos, partilhando algo privado, algo íntimo.
(A Paciente acena com a cabeça mas permanece em silêncio. Pausa longa.)
PSIQUIATRA (forçando-se a interromper o silêncio): Mas o que aconteceu? Conte-me.
PACIENTE (após uma hesitação): No início, não soube bem o que pensar daquilo. (Sorri.) Cheguei mais cedo a casa, nem sei porquê, e ouço barulhos na sala; estranhei que ele já tivesse chegado e acho que me assustei um pouco. (O sorriso desaparece.) Sabe como é, pensei logo no pior. Pensei. (Pausa breve. Num tom envergonhado.) A doutora sabe o que eu pensei.
PSIQUIATRA (num tom suave, falsamente vacilante): Uma amante?
(A Paciente acena com a cabeça, sem olhar a Psiquiatra.)
PSIQUIATRA: Mas há algum fundamento para pensar nisso? Algum indício?
PACIENTE (encolhendo os ombros): Não, acho que não.
PSIQUIATRA: Apenas insegurança da sua parte.
PACIENTE (após um silêncio): Talvez. (Sorriso triste.) Porque não?
(Pausa breve.)
PSIQUIATRA (decidida, quase enérgica): Mas continue.
PACIENTE: Entro na sala, silenciosamente. Com medo de o surpreender em algo desagradável mas forçando-me a fazê-lo, incapaz de não o fazer. E no princípio nem percebo bem o que se está a passar. (Sorri.) Está no meio da sala, estendido no chão, a brincar com os carrinhos que o miúdo por ali deixou abandonados. Ali prostrado, a amarrotar a camisa e a gravata, a pasta pousada no sofá; completamente absorvido, distante. A imitar os barulhos, sabe? (Volta a sorrir.) Parece-me um pouco assustador mas, ao mesmo tempo, também enternecedor, percebe? (Pausa breve.) E fico ali a olhar, sem saber o que fazer. Embaraçada, suponho. Por mim, por o estar a interromper, a invadir a sua privacidade; mas também por ele, pelo seu comportamento, pela sua vulnerabilidade.
PSIQUIATRA (após uma pausa, incentivado a Paciente a prosseguir): E quando ele percebe que está lá, a observá-lo, que acontece?
PACIENTE: Há um momento terrível, em que ele me olha com medo e com fúria e sei lá que mais; um olhar muito breve mas tão incisivo, tão doloroso. (Pausa breve.) Assusto-me, devo ter recuado um passo ou dois, com vontade de fugir. Não sei bem. (Pausa breve.) Mas logo depois, aquele olhar dissipa-se; a acusação, o desagrado, o embaraço: desaparece tudo. E sorri.
(Pausa breve.)
PSIQUIATRA (um pouco surpreendida): Sorri?
PACIENTE: Sim, sorri. Um sorriso um pouco envergonhado, um pouco tímido, hesitante, receoso; perscrutador. Mas convidativo, sabe? Um sorriso de quem quer partilhar. De quem quer incluir o outro no sorriso, percebe?
PSIQUIATRA: E como reagiu? Que fez?
PACIENTE: Aproximei-me, simplesmente. E fiz aquilo que talvez fosse menos óbvio, menos natural. (Pausa breve.) Não fiz perguntas; não perguntei o que era aquilo, que significava, que raio se estava a passar. Não perguntei porquê.
PSIQUIATRA: Decidiu aceitar o comportamento dele como algo normal.
PACIENTE: Precisamente. Mas não sei explicar por que o fiz; não foi nada consciente. (Pausa breve.) Não foi nada do género (num tom de voz diferente, dramático): olha para este, ficou maluquinho mas vamos é fingir que está tudo bem. (Pausa breve. Sorriso. Tom normal.) Não, foi algo intuitivo, perfeitamente sincero, autêntico.
PSIQUIATRA (num tom pedagógico, como se recitasse algum de um manual): De certo modo, num plano inconsciente, aceitou o comportamento dele como explicável, como justificável. (Pausa muito breve.) Talvez porque tenha sentido algum grau de empatia com ele, naquele momento.
PACIENTE (receosa): Talvez. (Pausa breve.) Mas suponho que a verdadeira empatia apenas chegou mais tarde. Quando ele, sem que eu fizesse qualquer pergunta, me explicou porque estava a fazer aquilo.
PSIQUIATRA (num tom atento e preocupado, quase subserviente): Descreva-me como foi.
PACIENTE (suspirando de um modo dissimulado, como se estivesse cansada): Sentei-me ali no sofá e fiquei a olhar para ele. Não sei que viu ele no meu rosto mas penso que não encontrou lá nada de mau; embaraço ou sobranceria ou desprezo ou receio, nada disso. Pelo menos, tenho a certeza que não senti nada disso. Nada negativo. E se não o senti, não o poderia mostrar, não é?
PSIQUIATRA (forçando-se a ser paciente): Mas que sentiu, então?
PACIENTE (pensativa e distante): Suponho que apenas curiosidade. Não só de perceber, de compreender. Mas, principalmente, curiosidade de saber o que se iria passar de seguida, de saber o que estava para acontecer.
(Pausa breve.)
PACIENTE (num tom cuidado, quase reverente): Explicou que gostava de regressar à sua infância. Reviver a infância.
(Pausa longa.)
PSIQUIATRA: Por nostalgia? Porque se sentia seguro? (Após uma hesitação.) Para fugir?
PACIENTE: Por tudo isso, suponho. Para fugir, sim. Estava ali a brincar, como uma criancinha, e sentia-se livre, num mundo só seu, que ele próprio controlava. Onde não apareciam surpresas desagradáveis; ou, pelo menos, surpresas desagradáveis que ele não pudesse contornar. (Pausa breve.) Esquecia o mundo real e durante um bocado vivia num mundo imaginário, só seu.
PSIQUIATRA (inconsequente): Como uma criança.
PACIENTE (ignorando a Psiquiatra): O que ele explicou é que não tinha só a ver com controlo. Aliás, a motivação principal nem era a de fugir para um mundo que ele controlava, que dominava. (Pausa breve.) Era, mais, a de fugir para um mundo em que se sentisse relevante. Percebe? (Pausa breve.) Apreciado. Único. De certa forma, indispensável.
PSIQUIATRA (após um momento de silêncio): E quando ouviu isso, sentiu-se identificada.
PACIENTE (um pouco surpreendida): Muito.
PSIQUIATRA (recuperando o controlo da conversa): Fale-me disso. Dessa empatia que sentiu.
PACIENTE (hesitante): Sabe como é. Já falámos disso. (Sorri.) Falamos disso todas as vezes que aqui venho. (Pausa breve.) A monotonia da vida, dos dias. Das relações. A repetição, a banalidade, o aborrecimento, a arbitrariedade. Tudo isso. A sensação de que nada importa muito, que a nossa existência é acidental e inconsequente e irrelevante. Que a nossa presença não é verdadeiramente determinante para nada, para ninguém. (Pausa breve.) Sabe, tantas vezes que me sinto assim. Dispensável. Descartável. Acessória. Sei lá.
(Pausa breve.)
PSIQUIATRA: Mas nunca tinham falado disso? Desse sentimento comum.
PACIENTE (um pouco surpreendida): Nunca. Por isso é que tudo aquilo foi uma espécie de revelação, um inesperado e intuitivo acto de convergência. Surpreendi-o naquele momento vulnerável e ele, simplesmente, falou, confidenciou-se; e eu compreendi-o. Apenas isso. Comunicação básica. Sincronismo. (Pausa breve.) E ele percebeu que o entendia; porque eu sentia algo muito semelhante.
(Pausa longa.)
PSIQUIATRA: Mas, em simultâneo, não se sentiu excluída?
PACIENTE (um pouco surpreendida): Excluída?
PSIQUIATRA (no tom pedagógico de antes): A atitude dele representava, na prática, uma fuga ao mundo real. Ao mundo real que, como é óbvio, a inclui a si. Era uma fuga também em relação a si, à vossa relação.
PACIENTE (pensativa): Mas havia reciprocidade. Porque também eu fugia; também eu queria fugir à nossa relação.
PSIQUIATRA (incisiva): Queria?
PACIENTE (hesitante): Quero.
PSIQUIATRA (após um silêncio): Continuamos, então, a pensar em separação? (Pausa breve.) Em divórcio?
PACIENTE (após um longo silêncio; rindo, nervosamente): É curioso que finalmente tenhamos encontrado um ponto comum, algo que nos une, algo em que estejamos de acordo; e que esse elo comum seja, afinal, a vontade que cada um de nós sente de fugir ao outro. É irónico, não é?
PSIQUIATRA (incisiva): Não respondeu à minha pergunta.
PACIENTE (de novo séria, melancólica; num tom tímido, embaraçado): Não sei.
PSIQUIATRA (surpreendida, um pouco agressiva): Não sabe?
(A Paciente, magoada, abana a cabeça. A Psiquiatra olha-a em silêncio.)
PSIQUIATRA (pesarosa, talvez envergonhada): Desculpe. (Pausa breve.) Mas regressemos àquilo que me estava a contar. Que aconteceu de seguida?
PACIENTE (após uma hesitação): Conversámos. Ele falou-me de como era em criança, das suas longas tardes de brincadeira com os carrinhos; contou-me dos mundos fantasiosos que construía, dos sonhos que tentava concretizar através das brincadeiras que encenava. E eu ouvia, deliciada; compreendia aquilo tudo, porque fora exactamente o mesmo comigo; identificava-me.
PSIQUIATRA: Falou de si? Das suas próprias fantasias, quando era criança?
PACIENTE (sorrindo): Sim. Das barbies.
PSIQUIATRA (correspondendo ao sorriso): Barbies?
PACIENTE (nostálgica): Com ele, foram os carrinhos; comigo, eram as barbies. Contei-lhe como passava horas a fantasiar mundos felizes e ingénuos, perfeitos, seguros, com barbies e kens. E ele ouvia-me, com gosto; surpreendido por se rever em mim, de um modo tão inesperado.
(Pausa breve.)
PSIQUIATRA (num tom profissional e conclusivo): Quando o surpreendeu, ele decidiu não continuar a fugir; deixou-a entrar no seu mundo secreto, partilhou-o consigo. Foi algo instintivo, algo muito revelador. Uma prova de confiança. (Pausa breve.) E você correspondeu, acedendo ao convite. Entrando no mundo secreto; e respeitando-o.
PACIENTE (sorrindo): É mesmo isso. Entrei no mundo dele. Literalmente.
PSIQUIATRA (curiosa): Literalmente? (Sorriso.) Conte-me.
PACIENTE (num tom quase sonhador): Estávamos ali em silêncio, confortáveis; em perfeita sintonia, como já não acontecia há tanto tempo. E não queríamos que o momento terminasse, que tudo regressasse ao que era antes; à normalidade. Queríamos continuar a sentir aquele conforto, aquela empatia. (Pausa breve. Num tom diferente, mais hesitante.) E deve ter sido por isso que ele falou das barbies. Perguntou se eu não me lembrava que tinha uma caixa delas no sótão.
PSIQUIATRA (após uma pausa breve, num tom cuidado e hesitante): E foi buscá-las?
PACIENTE: Fui. (Pausa breve.) E foi então que tudo se tornou um pouco irreal, um pouco pateta. Mas pareceu tão natural, sabe? Pareceu a atitude correcta. (Pausa breve.) Ele a brincar com os carros dele, eu com as minhas bonecas. Consegue imaginar? Os dois esparramados no chão da sala, entretidos como duas crianças. Exactamente como nos teríamos comportado se nos tivéssemos conhecido quando éramos crianças. Felizes e confiantes, arrebatados; indiferentes ao mundo, às conveniências, à normalidade, a tudo. Juntos. (Pausa breve.) Consegue imaginar? Juntos.
PSIQUIATRA (num tom inesperadamente rude e veemente): Sabe, acho que todos os mecanismos que possam salvar a intimidade do casal e reforçar a relação, por mais peculiares que sejam, são válidos. Legítimos. Vale tudo, sabe? Desde que resulte, vale tudo. (Pausa breve.) Mas falamos melhor disto para a semana, está bem?

# 57: Gigabytes de sorrisos

Prazo de validade expirou...

# 56: Sopa

Prazo de validade expirou...

# 55: Visita

Prazo de validade expirou...

Esboço # 20

Apaga a luz; depois, aconchega-se nos lençóis: e a cama range ligeiramente, o que me incomoda um pouco. Os nossos corpos tocam-se, acidentalmente. Suspira, depois boceja; volta a mover-se, os corpos deixam de se tocar. Silêncio pesado e escuro, espesso; apenas ouço o murmúrio das nossas respirações lentas e dessincronizadas: infinitamente distantes. Então, ela ergue-se; aproxima-se de mim, procurando o meu rosto na escuridão; dá-me um beijo nos lábios, breve e fugaz; um beijo de rotina. Não me movo, não reajo. Diz boa noite; respondo com uma vaga resmungadela. Ajeita-se, uma vez mais, preparada para adormecer. Suspira, de novo; e diz – como sempre, como todas, todas as noites: amo-te; voz cansada, tom desinteressado e distante.
Fico a pensar no seu amo-te; pergunto-me: mas que quer ela, afinal, dizer com isso, que significa amo-te? Para que serve dizê-lo? Penso um pouco nisso, de forma inconsequente e alheada, enquanto ela adormece. Uma ideia inesperada surge: talvez um dia lhe pergunte; e sorrio, no escuro. Sim, poderia perguntar-lhe: que queres dizer com isso?
Movo-me um pouco (timidamente?), ajeitando-me para adormecer; e a cama range, o que me desagrada.

Esboço # 19

Foi boa, a foda. Mas gostei especialmente da forma como me acariciaste o cabelo e me olhaste, depois dos orgasmos. Foi um gesto algo peculiar, inesperado: como se estivesses agradecido? Talvez.
Pouco depois, adormeceste. Respiração tranquila, lenta. O teu corpo a tocar o meu, impondo-se um bocadinho; mas sem ser desagradável. Vou pensando nisto – sentindo isto – enquanto ouço a chuva que vai caindo monotonamente, lá fora; e tão forte que está o vento, esta noite. Virá tempestade?
Agrada-me a tua presença, a companhia (e pergunto-me, um pouco envergonhada: será que também me agradaria, se não estivesses a dormir?). Vou fechando os olhos, lentamente; tão bom que é não ter pressa.
Se ainda aqui estiveres, quando eu acordar, talvez te pergunte como te chamas.

Esboço # 18

ELE (num tom nostálgico, quase triste): Antes, havia manhãs em que acordava leve, vazio: pronto a deixar-me preencher com o que o mundo tivesse para oferecer. (Pausa breve.) Optimista.
EU (um pouco – só um pouco – incrédulo): Optimista, tu?
ELE (pensativo): Sim, optimista; com fé e vontade, com desejo de vida. (Pausa breve.) E a primeira coisa que gostava de fazer era espreitar o céu; ver aquele azul imaculado e sem fim, iluminado pela luz mágica e misteriosa do sol da manhã; descobrir uma nuvem branca aqui, outra ali. E pensar: que dia tão bonito. (Sorri, para si mesmo. Pausa breve.) Deixava a mente vaguear, entretendo-me com pedaços de sonhos ainda não totalmente desvanecidos, misturados com intenções vagas, fantasias indefinidas; sempre sem desviar os olhos do céu, da imensidão libertadora. Não sei. Acho que o céu, para mim, sempre representou uma espécie de catálogo de oportunidades; como se todas as possibilidades, todas as escolhas, estivessem ali, à distância de um olhar. À minha espera. (Pausa breve.) E o tempo a passar; de longe, acabava sempre por chegar um qualquer ruído do mundo, um vestígio de vida, de outra vida: os inevitáveis indícios de que sob o azul do céu, o mundo continuava a rodar, lento, monótono, triste; recusando-se a parar, a desistir; mas caminhando sempre na mesma direcção, sempre com o mesmo objectivo: atingir o ponto de partida; recomeçar; repetir. (Pausa breve.) E lentamente, sentia-me desanimar; sentia o optimismo dissipar-se; de repente, o céu começava a parecer-me opressivo; as escolhas mesclavam-se e confundiam-se. Perguntava-me, acabava sempre por me perguntar: para que servem os dias bonitos, afinal?
EU (num murmúrio): Para nada?
ELE: Alguma vez sentiste o desgosto de acordar com um belíssimo dia pela tua frente e não saberes que lhe fazer, como o aproveitar? Perceberes que, irremediavelmente, o vais deixar fugir, como sempre fizeste antes? Perceberes que irás perder mais uma oportunidade e que, na verdade, não sabes se terás outra, se haverá outro dia bonito na tua vida?
(Sorrio, com tristeza; e essa é a minha única resposta. Lá fora, vai anoitecendo muito lentamente; pergunto-me se aparecerá a lua. Penso, quase distraidamente: talvez amanhã volte a ser um dia bonito.)
ELE (displicente, quase arrogante): E então, um dia, deixei de olhar para o céu. (Pausa breve.) Que se foda o céu.

Feliz


O meu pintor preferido reparou em mim. E concedeu-me um imerecido destaque no seu site. Estou comovido.
(Obrigado.)

Galeria


















Algumas das pinturas que pairam pelas estórias de
Silêncios entre nós:

Andare dove? L’uomo nel paesaggio – Alberto Sughi
April in Paris – Eric Fischl
Artistin (Marcella) – Ernst Ludwig Kirchner
Automat – Edward Hopper
Compartment C, Car 293 – Edward Hopper
Due donne, Notturno – Alberto Sughi
Femme qui tire son bas – Henri de Toulouse-Lautrec
Holiday Inn afternoon – Andrew Valko
Il banco del bar – Alberto Sughi
Krefeld Project, bedroom scene 5 – Eric Fischl
Krefeld Project, living room scene 5 – Eric Fischl
La famiglia, l’amore – Alberto Sughi
Naufragio – Alberto Sughi
Sunlight in a cafeteria – Edward Hopper
Tell a marketer – Kenney Mencher
The raft – Eric Fischl
Underground fantasy – Mark Rothko

# 54: Quando não se sabe o que dizer

Prazo expirou.

O terceiro (brevemente)


Esboço # 17

Após tantos anos de casamento, partilhavam a sensação de que não havia nada mais a dizer, a escutar; conheciam-se intuitivamente, sem surpresas nem decepções: em silêncio. E a comunicação que pudesse existir restringia-se a questões práticas, relativas à manutenção da rotina, à subsistência do casamento. Consideravam, com alguma razão, que a surpresa se esgotara (demasiado depressa?) e que tudo o que agora fosse dito dificilmente surpreenderia o outro, dificilmente justificaria a sua atenção, dificilmente acrescentaria algo; aliás: cada frase inconsequente que fosse proferida poderia até acentuar e reforçar o desinteresse do outro, proporcionar-lhe um pretexto para desistir (desistir de quê?), recordar-lhe que – afinal – estava ali a perder tempo (a gastar tempo), recordar-lhe que o casamento esgotara-se há muito. (É verdade que nunca tinham propriamente conversado sobre tudo isto, sobre esta sensação: mas para quê? Como poderia não ser assim?)
Só pode, então, ter sido por absoluta distracção que naquela monótona tarde de domingo começaram a falar (a chuva batia nos vidros com um ruído agressivo enquanto a televisão disfarçava a cinzentude da sala – das vidas – com explosões de cor regulares; e havia um cheiro peculiar e insidioso, estranho, que ambos – em separado – tentavam identificar). Sim, começaram a falar, palavra após palavra, dizendo e escutando, olhando; e depois: o diálogo foi crescendo lentamente, sereno e agradável.
Foi a primeira vez que falaram em divórcio.