Iupiiiiii
(A partir de uma foto de Salander Salander.)
Não se lembra da primeira vez em
que reparou nos baloiços. Percorria diariamente aquele trajecto há muitas
semanas mas sempre lhe fora um pouco indiferente o cenário que a acompanhava;
no fundo, não lhe interessavam as pessoas com quem se cruzava – e era essa a
parte do cenário que mais a intimidava, que pretendia evitar: as pessoas. Por
isso, seguia sempre em frente, focalizada em si e nos seus pensamentos (ou no
seu vazio), tentando que o mundo não desse pela sua passagem, que não reparasse
em si. Como se se sentisse uma janela através da qual o mundo olhasse para o
interior de si própria e, desse modo, a conhecesse; não olhar para os outros
era a sua forma de manter as cortinas cerradas.
Mas certamente por distracção ou
descuido, terá havido um momento em que o seu olhar descaiu sobre o parque dos
baloiços e, quando deu por si, todos os dias olhava para aquele canto
abandonado. O que a entristece (e talvez apenas por isso olhe, porque as
tristezas atraem-se) é que o parque esteja sempre vazio. Baloiços abandonados;
estáticos, como se estivessem congelados no tempo, como se tivessem utilidade
apenas quando usados por alguma criança irrequieta ou aborrecida ou sonhadora e
não possuíssem qualquer valor intrínseco. Que sentiriam os baloiços, se
pudessem sentir? Talvez algo semelhante ao que ela própria sente, por vezes:
uma desadequação em relação à vida e aos outros; como se estivesse a mais no
mundo e na vida; ou como se, pelo contrário, a sua presença fosse irrelevante?
Por vezes, enquanto caminhava passo após passo perguntava-se distraidamente: e
se eu fosse um baloiço? Depois, concluía (quase sempre) que a existência de um
baloiço não será assim tão diferente da vida de uma qualquer pessoa: ambos
sobem e descem ao sabor de desejos alheios, num perpétuo movimento oscilatório,
ascendente e descendente, para cima e para baixo, frequentemente interrompido
por momentos de imobilidade e irrelevância, de espera, de adiamento.
Caminha ao lado do parque e olha
disfarçadamente, como se temesse ser surpreendida a fazê-lo (sim, sabe que é
triste recear ver). Olha sem saber bem porque o faz, na verdade precisou de
alguns dias para compreender que tudo o que desejava era encontrar crianças nos
baloiços (portanto, o que receia verdadeiramente é olhar e não ver o que
procura). Nada mais: crianças encavalitadas nos baloiços, rindo bem alto;
gritando iupiiiiii. Será que as crianças ainda gritam iupiiiiii? Ou
baloiçando-se silenciosa e sonhadoramente, como se não pensassem em mais nada,
como se não desejassem mais nada; como se fossem simplesmente vento. Sem pensar
nem desejar, apenas sendo; livres de passado e futuro, vigorosamente agarradas
ao presente; sincronizadas com o presente. Precisou de alguns dias para
compreender o que procurava; e a compreensão, quando chegou, trouxe-lhe uma
nova ansiedade: onde estavam as crianças do mundo?
Não se lembra da primeira vez em
que reparou nos baloiços nem do momento em que começou a sentir-se angustiada
por sempre os ver vazios. Afasta-se do parque no seu passo arrastado de quem
não quer sair de onde está nem chegar ao sítio para onde caminha mas o
desconforto que sente ao assistir à imobilidade dos baloiços acompanha-a
durante alguns minutos; um sentimento melancólico e indefinido de perda que a
perturba e se vai consolidando numa memória cada vez mais sólida mas que não a
impede de – dia após dia – continuar a olhar (disfarçadamente), de continuar à
procura de uma criança, de um riso, de um iupiiiiii. Não pensa no que poderá
efectivamente acontecer se um dia encontrar a sua criança e o seu riso e o seu
iupiiiiii, não perspectiva nenhuma mudança ou melhoria, não é capaz de sustentar
ilusões irrealistas (aquilo a que as crianças chamam sonhos); sente a angústia
dos baloiços abandonados e pensa como seria fácil simplesmente mudar de
percurso.
Mas não o faz, não muda de
percurso. Continua à espera do dia em que encontre os baloiços ocupados por
crianças; quando isso acontecer, interromperá a sua caminhada e ficará durante
alguns instantes a apreciar o movimento dos baloiços, a escutar os iupiiiiiis;
a sorrir. Mas os dias sucedem-se e nada realmente muda, apesar de ser evidente que
a vida está em permanente mutação. Na verdade, basta um pequeno pensamento para
que algo mude irremediavelmente; e tudo o que é preciso é pensá-lo.
O pequeno pensamento, inesperado
e surpreendente, que a faz suspender a marcha e imobilizar-se durante alguns
segundos surge numa manhã de primavera, quando se distraía a sentir o sol no
rosto e a cheirar a atmosfera saturada com o odor a flores. Pensa: e se for
experimentar o baloiço? Pensa: e se for eu a gritar iupiiiiii? Pensa: e se for
eu a criança?
Não se lembra da primeira vez em
que reparou nos baloiços. Mas certamente que irá lembrar sempre a primeira vez
em que andou nos baloiços.
Calou-se. Saiu. Saltei.
Estreia no dia 7 de Maio a curta de Bruno Carnide "Calou-se. Saiu. Saltei.", para a qual escrevi o argumento. Teaser disponível aqui.
O desfasamento
A partir de uma foto de Sónia Silva.
- O grande problema
do mundo… Sabes qual é? Falta de sincronismo nos olhares. As pessoas nunca
olham juntas, para o mesmo sítio ao mesmo tempo. Já reparaste? Há sempre um
desfasamento, ainda que pareça que se
olha em simultâneo. E quando não se olha em conjunto, não se vê o mesmo; e se
não se vê o mesmo, não se sente parecido ou igual; e se não se sente parecido
ou igual, no fundo estamos condenados a uma desoladora incompreensão, não é? Talvez
seja aí que resida a angústia da solidão: sentimo-nos sós porque percebemos que
nunca ninguém olhará verdadeiramente connosco. Preocupamo-nos em olhar o outro
e ser olhado pelo outro mas sabemos que o que importa é olhar com o outro. Sei
lá, imagina dois apaixonados sentados na areia da praia, de mãos dadas, e a
olhar o mar em silêncio; acreditarão estar em união completa mas é impossível
que olhem precisamente o mesmo pedacinho de mar no mesmo instante. Impossível,
existirá sempre uma divergência milimétrica e momentânea mas insuperável. E
quando se percebe isso, é um pouco desolador; afinal, de que serve ver e não
partilhar totalmente? Claro que muita gente não percebe, ou finge que não
percebe, porque a ilusão é sempre aconchegante. Mas a verdade é que as pessoas
andam tristes, basta olhar em redor e percebê-lo. E quanto mais pessoas há em
redor de nós, pior. Como no metro ou numa feira de diversões ou num shopping: se
há uma multidão, menores parecem ser as possibilidades de ocorrer um olhar em
comum; maior é o isolamento. O que é uma incongruência desconcertante. Perceber
que a quantidade não potencia a qualidade é como descobrir que o sol não gira à
volta da Terra; ou que não existe pai natal; ou que os nossos pais fazem sexo.
E depois há também o movimento, que talvez seja inimigo do olhar. Talvez. Porque
parece que a única forma de duas pessoas conseguirem olhar em conjunto, em
verdadeira sintonia, será estando transformadas numa espécie de estátuas,
congeladas num tempo e espaço comuns; e mesmo assim, a percepção do que se olha
será sempre diferente. Enfim. No fundo, a visão é um sentido irrelevante, não
te parece? Porque, na realidade, somos uma multidão de cegos; os homens não
vêem, porque olhar sozinho não é realmente ver, e esse é o grande problema do
mundo.
- Não sei nada dos problemas
do mundo. Mas tu, pelo que ouço, tens um grande problema. E repara que te olho
nos olhos quando digo isto: tens um grande problema, tu.
Chega de fado
Loic Le Gall é um encenador francês que pegou no livro Chega de Fado e o transformou numa peça de teatro. Adicionou-lhe uma componente multimédia e ainda a poesia de Fernando Pessoa. Haverá versões em português e francês. Trailer disponível aqui.
O corpo diz o que as palavras não conseguem (ou não querem ou não podem)
Um novo conto na enfermaria 6, a partir de uma foto de sonja valentina.
"Não sei o que esperava; mas julgo que sempre acreditei que o primeiro beijo que dou a alguém deverá ser mágico, deverá ser insuportavelmente intenso e transcendental; deverá fazer-me tremer, fazer-me voar, deverá fazer-me morrer e ressuscitar em simultâneo. Talvez seja excessivamente romântica, talvez seja excessivamente idiota; mas acredito que um primeiro beijo deverá ser tão forte que me faça sentir que, após esse beijo, nada mais será igual, algo mudará de forma subliminar mas inquestionável e irreversível. Contudo, nada disso aconteceu; o nosso primeiro beijo foi, simplesmente, murcho."
O espirro
Escrito a partir de uma foto de Andreia Monteiro.
-
Quatro anos? A sério?
-
Sim, estivemos juntos quatro anos.
-
E acabas uma relação de quatro anos assim de repente? Na casa de banho de um
cinema?
-
Porque não? Há pensamentos que vão evoluindo lentamente, que se vão alimentando
a si próprios e ganhando consistência, que se tornam evidentes, esmagadores; e
então transformam-se em decisões óbvias e inevitáveis. Basicamente, é como um
espirro: há decisões que quando chegam não se podem travar, da mesma forma que
não travas um espirro.
-
Um espirro? És tonta. Mas explica-me lá isso melhor. Desde o início.
-
Bom, não há muito que explicar. Estávamos em casa e decidimos ir ao cinema. A
ideia foi minha, porque de repente senti-me um bocado asfixiada com a companhia
dele, com o silêncio dele. Então perguntei: e se fossemos ao cinema? Sabes o
que respondeu? Disse: só se me deixares escolher o filme.
-
Que parvo.
-
Pois. Lá fomos ver o filme que ele escolheu, que me pareceu melhor do que ficar
ali em casa a olhar para nada. Mas nem foi isso que me irritou, ser ele a impor
uma escolha. O que me incomodou mesmo foi o facto de ter optado por um filme
que já tínhamos visto.
-
Isso da escolha dos filmes é engraçado. Há pessoas que não suportam ver um
filme que já conhecem; e há outras que adoram rever vezes sem conta os seus filmes
favoritos. E isto acaba por esconder um significado profundo, acho eu. De forma
subtil, divide as pessoas em duas categorias opostas: as que preferem o
conforto da previsibilidade e as que precisam permanentemente da novidade.
-
Não sei, isso das filosofias é contigo. Mas numa coisa tens razão: nunca vi
ninguém tão previsível como aquele homem. E por isso lá fomos ver um filme que
tínhamos visto há uns dias e que ele adorara. Estava ali, quieta e caladinha, a
pensar no tempo em que íamos ao cinema e ele não me largava a mão, como se me
achasse preciosa e tivesse medo que lhe fugisse, como se tocar-me em todos os
momentos fosse tão importante como respirar. Enfim, palermices. Mal olhava para
o filme e dizia a mim própria que, assim, mais valia ter ficado em casa. E foi
necessário fazer um certo esforço para aguentar até ao intervalo, apetecia-me
sair dali quanto antes.
-
Quando é preciso fazer esforços, não é nada bom sinal. Sentias assim há muito
tempo?
-
De forma consciente, não. Mas se calhar, sem o perceber, já andava a fazer um esforço
há algum tempo. A perder a paciência, talvez. Acho que é mais isso, ficar sem
paciência. Que foi precisamente o que aconteceu lá no cinema, perdi a
paciência. E mal chegou o intervalo, fugi para a casa de banho.
-
Fugiste?
-
Um termo um bocado forte, não é? Mas julgo que foi isso que senti: precisava de
fugir. E então tranquei-me na casa de banho. Nem sei bem do que fugia, talvez
precisasse apenas de respirar, de estar comigo própria, de não ter que representar
nem fingir nem nada. De encontrar um equilíbrio qualquer. Sei lá.
-
E que sentiste, enquanto estavas lá? Que pensaste? Que decidiste?
-
Fiquei no meu compartimento, quietinha. Havia outras mulheres por ali, ouvia-as
a andar de um lado para o outro, adivinhava o modo como se olhavam ao espelho.
Mas depois ficou tudo silencioso e percebi que ficara sozinha, percebi que o
filme já deveria ter recomeçado. Mas não fui capaz de sair dali, e deixei-me
estar.
-
Não foste capaz ou não quiseste?
-
Vai dar ao mesmo, não é? Interessa a forma como chegas a determinado lugar,
desde que chegues? Não fui capaz ou não quis. É igual.
-
Ficaste na casa de banho até ao final do filme?
-
Não. Fiquei algum tempo mas não até ao final. E, basicamente, durante todo esse
tempo, olhei para a ventoinha.
-
Qual ventoinha?
-
Era um cinema antigo, um edifício muito antiquado. E na parede da casa de banho
tinha uma daquelas ventoinhas antigas que funcionam como respiradouros ou algo
assim. Não percebo nada disso. Apenas sei que havia uma ventoinha e fiquei a
olhar para ela.
-
Porquê?
-
Porque estava a rodar; um movimento constante e monótono, imperturbável. E de
repente aquilo pareceu-me um símbolo muito forte, muito poderoso. Não conseguia
deixar de olhar.
-
Um símbolo de quê?
-
De um certo tipo de pessoas. De pessoas que vivem em círculos, sempre no mesmo
movimento constante, sem surpreenderem ninguém, sem imprevisibilidade, sem
vontade própria. Vão rodando e pronto; parece que nem é movimento de verdade. Rodando
sempre na mesma direcção. Porque uma ventoinha não pode girar em ambos os
sentidos, pois não? Parece que com algumas pessoas acontece o mesmo. E se
caminham sempre na mesma direcção, como poderão contrariar a normalidade? Como poderão
surpreender alguém? Como se poderão surpreender a si próprios?
-
Ok. A ventoinha é o teu marido. Já percebi.
-
Olhava para a ventoinha e pensava nele, sim; pensava como a sua vida, a sua
personalidade, se assemelhava ao movimento de uma ventoinha. Circular e
monótono, invariável; chato. De certa forma, irrelevante.
-
E isso não te parece um pouco exagerado? A vida não pode ter um padrão
reconhecível, mesmo quando analisada retrospectivamente; não podemos olhar para
uma vida e catalogá-la como sendo um movimento circular ou rectilíneo ou quadrado
ou o que seja. Não podes olhar para a vida de alguém e reduzi-la a uma forma
geométrica qualquer.
-
Pois, não podemos. O que não impede que certas vidas sejam formas geométricas.
-
Sim, tens alguma razão; há uma diferença entre aquilo que uma pessoa é e a
forma como vemos e consciencializamos o que essa pessoa é. E por vezes, vemos
mal, consciencializamos mal. Criamos imagens, distorcemos. No fundo, é tudo um
jogo de espelhos. Não achas?
-
Não faço ideia.
-
O problema, penso eu, é que muitas vezes nem sequer conseguimos ter um conhecimento
correcto de nós próprios. Como poderemos, então, ter a pretensão de conhecer os
outros? Por isso, deveríamos começar por ter noção do que somos; mas como? Era
bom se conseguíssemos vermo-nos de fora, como se fossemos um personagem num
filme. Sermos espectador da nossa vida. Mas isso não é possível, certo?, e o
mais aproximado que podemos ambicionar é revermo-nos nos outros, permitir que
os outros sejam o nosso espelho; o que implica que consigamos mostrar aquilo
que realmente somos, para que o outro o possa simplesmente reflectir.
-
Porque estamos a falar de espelhos?
-
Por nada. Estava apenas a pensar que antes de olhares para uma ventoinha,
talvez pudesses olhar para o espelho. Estás nunca casa de banho e tens que optar
entre uma ventoinha e um espelho; ou seja: olhar para o outro ou para ti. Só
isso.
-
Parece uma acusação. Porque me estás a acusar? Já imaginaste que talvez esteja
cansada de olhar para o espelho e de me ver reflectida? E já imaginaste que os
espelhos também podem deformar e distorcer, que não são neutrais e imparciais?
-
Tens razão. No olhar do outro encontramos aquilo que de pior temos e por isso é
que, tantas vezes, nos afastamos. Mas no fundo, estamos a tentar fugir de nós
próprios, esquecendo que estamos apenas a olhar para um reflexo nosso. É
verdade que os outros podem acentuar o nosso lado pior. É verdade que não
sabemos bem como fazer para que o outro reflicta aquilo que temos de melhor, da
mesma forma que raramente reflectimos aquilo que os outros têm de melhor. Mas
também é verdade que precisamos desesperadamente dos outros, de espelhos; ou
então definhamos de solidão.
-
Estás muito melodramática. Muito pomposa. Muito palavrosa. Muito opinativa.
Muito presunçosa. Que se passa contigo, afinal?
-
Falta de homem, se calhar.
-
És tão parva.
-
Mas acaba lá de contar a tua estória. Estavas a olhar para a ventoinha e a
pensar no teu marido.
-
Pois. Lá fiquei não sei quanto tempo. E então acabei por abandonar a casa de
banho e regressar para junto dele. Aguardei que o filme terminasse e, depois,
pedi-lhe que me acompanhasse à casa de banho. Barafustou, como é óbvio. Mas lá
foi; porque na verdade não tem vontade própria; tal como as ventoinhas. A pouca
gente que estivera no cinema já desaparecera, tínhamos a casa de banho para
nós. Parecia que estávamos num mau filme.
-
Desculpa a curiosidade. Mas alguma vez fizeram sexo numa casa de banho pública?
-
Raio de pergunta. Não, nunca fizemos.
-
É pena. Mas esquece isso, agora. E depois?
-
Mostrei-lhe a ventoinha, apontei, disse que era aquilo que lhe queria mostrar.
E ele ficou a olhar, sem fazer comentários. Lembro-me do silêncio, da penumbra,
do cheiro a casa de banho, como se ainda lá estivesse. A ventoinha a girar
devagarinho e nós a olharmos. E então não me contenho e digo: isto és tu.
-
Foi incontrolável. Como um espirro. E ele?
-
Ficou a olhar para mim, sem reacção; tal como antes olhara para a ventoinha. E
depois sorriu. Um sorriso infinitamente triste e melancólico. Um sorriso
bonito. E disse: não sei bem quem é a ventoinha, na verdade; se eu, se tu.
-
A sério? Surpreendeu-te, afinal. Foi como se, de repente, a ventoinha começasse
a rodar na direcção inversa.
-
Apeteceu-me bater-lhe, apeteceu-me mandá-lo ao caralho, apeteceu-me
desaparecer. Mas não fui capaz de fazer nada disso e, entretanto, ele virou as
costas e saiu. Deixou-me ali com o cheiro e a penumbra e o silêncio e a
ventoinha.
-
E assim termina uma relação de quatro anos.
-
É. Mas provavelmente não há uma forma boa de terminar, não é?
-
Por vezes, pergunto-me: separarmo-nos de alguém significa reconquistar a liberdade?
É uma libertação ou uma condenação? Afinal, talvez estejamos condenados a
permanecer sós.
-
Sabes o que tenho pensado, nestes dias? Se não serei eu a ventoinha; se não serei
eu que tenho andado a rodar inconsequentemente, devagarinho, sempre na mesma
direcção. Ou pior, se nos últimos tempos não terei sido uma ventoinha que nem
sequer roda; e de que serve uma ventoinha imobilizada, se a sua essência é o
movimento?
-
Talvez te tenhas olhado ao espelho, afinal. Mas estou farta desta conversa.
Olha, sabes o que estava a pensar? Podíamos ir dançar. Como fazíamos antes,
lembras-te? Anda lá, está-me a apetecer. E enquanto dançarmos, nunca seremos
ventoinhas, não é?
-
As ventoinhas não dançam, pois não? Rodam e rodam e rodam mas por mais que
rodem são incapazes de dançar. Gosto muito da tua ideia, há séculos que não
danço. Vamos a isso. Vamos dançar, vamos ser movimento de verdade.
E
foram.
Alienação
Um conto escrito a partir de uma foto de sonja valentina, disponível na enfermaria 6.
"E de
repente (é impressionante como estas coisas acontecem sempre de repente),
percebeu que se tinha enganado totalmente, que se tinha iludido infantilmente;
percebeu que tudo aquilo fora uma forma de fuga à realidade, uma alienação. (Afinal,
a alienação é uma fuga ou uma procura?)"
Quando danço
A partir de uma foto de Carla de Sousa.
- Sabes o
que me apaixona mesmo? O movimento do corpo. Podes mostrar-me o mundo inteiro e
todos os fenómenos da natureza mas acredito que não existirá nada tão belo e
inebriante como o movimento harmonioso de um corpo. Pois, já sei; vais dizer-me
que, para ti, a beleza está na ordem e no rigor, na absoluta previsibilidade
dos números; vais explicar-me que a beleza se encontra na certeza de que após o
quatro virá o cinco. Mas não concordo contigo. Para mim, a verdadeira beleza
esconde-se, por exemplo, na forma como se acaricia o cabelo de alguém que se
ama: os dedos entrelaçam-se suavemente e o cabelo afasta-se, com languidez; e
esse ligeiro movimento do cabelo representa, afinal, ternura pura; materializa
ternura. Ou então um sorriso; já reparaste quanta beleza existe num simples
sorriso? Já estudaste a delicadeza com que os músculos do rosto se contraem e
os lábios movem, ganhando vida? Haverá algo mais belo? O sorriso é apenas um
pequeno movimento, contracções e distensões de músculos, mas transmite muito mais
emoção do que livros repletos de poesia, do que discursos infindáveis. Sabes,
acredito que um sorriso contém em si mais beleza do que toda a filosofia do
mundo. E é apenas um sorriso, imagina se sorrires com o corpo inteiro. Sim, já
sei que não estás de acordo. Precisas de exactidão, anseias pelo rigor do
número e da palavra para não te sentires perdido e vulnerável; e, por isso, encontrarás
beleza na tabuada ou no dicionário, encontrarás beleza na ordenação. Mas, para
mim, o número e a palavra são apenas convenções, são símbolos a que se confere
determinado valor que depois se torna inquestionável; são criações da mente,
projecções do espírito, nada mais do que instrumentos, a que atribuímos
significados concretos e exactos que acabamos por aceitar como certezas
absolutas. Mas no fundo, são apenas ideias e conceitos. Como podes estar absolutamente
certo de que após o sete virá o oito? Na verdade, é apenas uma questão de fé,
já reparaste? Digam o que disserem, comprovem o que puderem, encham quilómetros
de papel com equações, mas no fundo a matemática é uma religião como outra
qualquer; na essência, onde está a diferença entre o teorema de Pitágoras e a crença
na vida após a morte apregoada por místicos e salvadores? Mas tudo bem, cada um
entrincheira-se nas convicções que lhe convêm mais. E desculpa, afinal estou para
aqui a divagar. Não ligues. Queria apenas falar de movimento, da beleza que
encontro no movimento corporal. Estava a tentar explicar-te que o movimento do
corpo me parece uma forma superior de comunicação pois abdica de signos e
convenções, abdica da palavra, reduzindo, por isso, a possibilidade de ilusão e
equívoco; porque a palavra é sempre subjectiva e dúplice, é condicionadora; não
achas? Claro que não achas. Mas acredito que uma comunicação baseada no
movimento do corpo é mais genuína, mais directa. Mais animal, se quiseres. Cada
gesto representa e transmite acção e vontade, inconformidade, busca,
interrogação. Já reparaste como tudo isso está presente num gesto tão banal
como o estender da mão a alguém? No fundo, o corpo é a ferramenta mais adequada
que possuímos para interagir genuinamente com o mundo e com o outro; e é por
isso mesmo que não podemos satisfazer-nos em ser corpo e desfilar pelo mundo, não podemos satisfazer-nos em
simplesmente ocupar espaço; é importante que nos preocupemos com o modo como
ocupamos o espaço, pois já que o ocupamos deveríamos fazê-lo de forma bela. De
forma útil e bela, o que vai dar ao mesmo porque a utilidade encerra beleza e
não há beleza que não seja útil. E já sabes que entretanto vou começar a falar
de dança. Sabes que te vou dizer, uma vez mais, como acredito que a dança pode
ser a forma mais inebriante e arrebatadora de movimento; e, portanto, de
beleza. A dança é um desafio à imobilidade, um desafio à natural apatia do
corpo; é uma forma de dar vida ao corpo, de ser vida. É uma busca permanente de
graciosidade e elegância, de leveza, de coordenação, de simplicidade. Mas estou
a entusiasmar-me, como sempre.
- Como
sempre.
- Porque é
nisto que penso tantas vezes, em dançar e oferecer beleza com o corpo. Quando
danço, busco harmonia, busco a perfeição do movimento; ou a perfeição através
do movimento. Todo o corpo trabalha para um objectivo comum e único, todos os
sentidos se transformam em acção pura. De certa forma, é uma busca de luz.
Nunca tinha pensado nisso mas parece-me que faz algum sentido. Que achas?
Afinal, dançar representa uma tentativa de fugir à escuridão porque, apesar da
escuridão ser uma inevitabilidade, é através do movimento que impedimos o seu
domínio sobre nós; enquanto dançamos, as sombras não nos alcançam, não nos
soçobram. A escuridão é, no fundo, imobilidade; e o movimento, o movimento
harmonioso e intencional, belo, é o seu antídoto. É claridade. Claro que sei
que consideras tudo isto um devaneio de rapariga idealista, sei que me escutas
com impaciência, sei que os movimentos musculares que conseguiste transformar
nesse sorriso esforçado disfarçam, afinal, a tua impaciência e contrariedade;
mas é nisto que acredito: através da dança, através do gesto e do movimento
harmonioso, posso transformar pensamento e desejo, medo e esperança, alegria,
em matéria física concreta; transformo sensação em acção. E, desse modo, fujo à
escuridão que me rodeia e, por momentos, iludo as sombras que me perseguem; ofereço
um pouco de luz ao mundo, porque beleza é luz e quando danço sinto-me bela. Tão
simples quanto isto. Quando danço sinto-me bela. E é por isso, pai, que serei
bailarina. É o que desejo, é o que farei. Desculpa-me mas não serei economista
como tu; esse é o teu sonho, não o meu. Os números aborrecem-me, limitam-me,
aprisionam-me; os números entediam-me. Todos tentamos fugir à escuridão, claro;
apenas o sentido do que é escuridão diverge de pessoa para pessoa; para mim, a
escuridão está na imobilidade, para ti deve estar num crash da bolsa ou assim.
Tudo bem, somos diferentes. E se há algo que nunca serei é uma cópia de ti,
nunca desejarei dissolver a minha diferença. Por isso, serei bailarina e a
minha vida será repleta de movimento e graciosidade, de busca da beleza, de
dádiva ao outro. Será assim porque só assim pode ser, não há alternativa. Quero
dançar. Por mim e para mim. Mas também para ti; quero tanto que me vejas dançar
e te sintas feliz. Quero ver-te sorrir, pai. Fazes isso por mim? Olhas-me e
sorris de verdade? Porque nunca
quiseste ver-me dançar, pai? Se o fizesses talvez percebesses tudo isto que
estou a dizer-te, todos estes sentimentos que estou a tentar converter em
palavras. Bastaria olhares mesmo e
perceberias. E não seriam necessárias mais palavras. Vê-me dançar e não me
faças falar mais, pai. É tudo o que te peço.
- Deixa-me
ver a minha agenda. Afinal, a que horas é esse espectáculo?
Uma surpresa, dizes tu
A partir de uma fotografia de Andreia Monteiro.
Uma surpresa, dizes tu.
Apareces no meu trabalho e anuncias, com um sorriso, que tens uma surpresa. Lá
seguimos de carro, como se nada de especial estivesse para acontecer (e talvez
nada de especial venha a acontecer); ouvimos as mesmas músicas de sempre e
vamos conversando, felizes por podermos escutar a voz do outro; rimos bastante;
tocas-me muitas vezes, há momentos em que desvias o olhar da estrada e olhas-me
durante um instante, como se me visses pela primeira vez. Tudo normal, portanto:
estamos apaixonados e o mundo não nos interessa absolutamente nada quando nos
encontramos junto do outro.
Mas quando, por distracção,
reparo no mundo que passa por nós, lá do lado de fora do carro, percebo que
abandonámos a cidade, o que me surpreende um pouco; estamos no campo, numa
estrada secundária e deserta, sem grandes vestígios de presença humana. O céu
está resplandecente, como se estivesse a estrear um novo tom de azul; abro um
pouco a janela e uma brisa suave invade o carro, acariciando-me o cabelo,
trazendo consigo o inebriante cheiro da natureza, um cheiro ancestral e
tranquilizador. Por vezes, lembro-me que é profundamente estúpido que nos
isolemos do mundo, como se apenas as nossas vidinhas tivessem valor e tudo o
resto fosse apenas cenário; mas depois passa. Estamos calados e sorridentes,
confortáveis. Começo a interrogar-me sobre qual será a surpresa. Talvez tenhas
descoberto um pequeno lago, quase secreto, encantador, e o queiras partilhar
comigo; e poderemos nadar juntos, quase nus, esquecidos de tudo. Ou um
santuário de borboletas; falámos disso no outro dia, confessei como gostaria de
visitar um daqueles lugares mágicos onde centenas de borboletas esvoaçam ao
acaso, compondo uma sinfonia de cor e movimento. Fico a pensar em borboletas e
depois, de repente, lembro-me que pode ser uma coisa completamente diferente:
sexo. Sexo entre as árvores, sob o céu azul, com o sol quente a aquecer a pele
e a mata a ecoar os nossos gemidos. Por um momento, parece-me óbvio que será mesmo
essa a surpresa e arrependo-me por não estar com vestido. Fico excitada, apetece-me. Mas o carro continua a
avançar aos solavancos enquanto falas do nosso futuro – um futuro indefinido e
incerto, do qual apenas sabemos que será muito feliz; e o desejo acaba por se
dissipar.
A floresta termina um
pouco abruptamente e a pequena estrada percorre um enorme descampado, onde
vemos as ruínas de um armazém há muito abandonado. Aproximamo-nos das ruínas e
saímos do carro, caminhamos no chão fofo, pisando pequenas flores não muito
bonitas (é estranho que possam existir flores feias); caminhamos de mãos dadas,
sentindo os dedos do outro e escutando as melodias algo irritantes de pássaros
ocultos (é estranho que os cânticos dos pássaros possam ser feios); não vejo
uma única borboleta. Caminhamos, sem pressa. Não explicas em que armazém estamos,
porque foi abandonado, como o encontraste; e isso comove-me um pouco; porque me
sinto agradecida, porque me sinto feliz por reconheceres o valor do silêncio e
não o temeres; feliz por saberes que o excesso de palavras é tão irritante como
o excesso de cantorias dos pássaros. Não irás falar, irás simplesmente agir; e
isso comove-me.
Então, quando estamos
rodeados de destroço e decadência, numa ilha de ruína que nem o esplendor do sol
consegue iluminar e embelezar, pegas na minha mão e nela depositas uma pequena
caixinha que retiraste do bolso; abro e olho: um anel, claro. Tão lindo que,
por um momento, falta-me a respiração. Perguntas: casas comigo? E sorris. E olhas-me. E esperas.
Apenas muito mais
tarde, quando já estamos na cidade, explicas (e apenas porque eu insisti): queria pedir-te em casamento num local em
ruínas e não num daqueles sítios lindíssimos e mágicos mas, no fundo,
profundamente ocos e vazios; e queria fazê-lo num local em ruínas porque
acredito que a felicidade não é uma dádiva mas algo que temos que conquistar,
algo que implica esforço e empenho. Mas também algo que terá, inevitavelmente
um fim, que se transformará num destroço. Queria que o primeiro momento do nosso
casamento ocorresse num local em ruínas para que nunca esquecêssemos que apenas
com o nosso esforço permanente a felicidade será possível, que apenas com o
nosso esforço permanente a nossa relação jamais definhará, sucumbindo à ruína.
Foi por isso que escolhi aquele sítio, percebes?
Tenho o anel no dedo
e sorrio. Talvez continue a sorrir para sempre.
Durou quase dois
anos, o casamento. E agora que recordo tudo isto, não consigo deixar de notar o
quanto eras ridículo. Enfim.
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