Uma surpresa, dizes tu

A partir de uma fotografia de Andreia Monteiro.





Uma surpresa, dizes tu. Apareces no meu trabalho e anuncias, com um sorriso, que tens uma surpresa. Lá seguimos de carro, como se nada de especial estivesse para acontecer (e talvez nada de especial venha a acontecer); ouvimos as mesmas músicas de sempre e vamos conversando, felizes por podermos escutar a voz do outro; rimos bastante; tocas-me muitas vezes, há momentos em que desvias o olhar da estrada e olhas-me durante um instante, como se me visses pela primeira vez. Tudo normal, portanto: estamos apaixonados e o mundo não nos interessa absolutamente nada quando nos encontramos junto do outro.

Mas quando, por distracção, reparo no mundo que passa por nós, lá do lado de fora do carro, percebo que abandonámos a cidade, o que me surpreende um pouco; estamos no campo, numa estrada secundária e deserta, sem grandes vestígios de presença humana. O céu está resplandecente, como se estivesse a estrear um novo tom de azul; abro um pouco a janela e uma brisa suave invade o carro, acariciando-me o cabelo, trazendo consigo o inebriante cheiro da natureza, um cheiro ancestral e tranquilizador. Por vezes, lembro-me que é profundamente estúpido que nos isolemos do mundo, como se apenas as nossas vidinhas tivessem valor e tudo o resto fosse apenas cenário; mas depois passa. Estamos calados e sorridentes, confortáveis. Começo a interrogar-me sobre qual será a surpresa. Talvez tenhas descoberto um pequeno lago, quase secreto, encantador, e o queiras partilhar comigo; e poderemos nadar juntos, quase nus, esquecidos de tudo. Ou um santuário de borboletas; falámos disso no outro dia, confessei como gostaria de visitar um daqueles lugares mágicos onde centenas de borboletas esvoaçam ao acaso, compondo uma sinfonia de cor e movimento. Fico a pensar em borboletas e depois, de repente, lembro-me que pode ser uma coisa completamente diferente: sexo. Sexo entre as árvores, sob o céu azul, com o sol quente a aquecer a pele e a mata a ecoar os nossos gemidos. Por um momento, parece-me óbvio que será mesmo essa a surpresa e arrependo-me por não estar com vestido. Fico excitada, apetece-me. Mas o carro continua a avançar aos solavancos enquanto falas do nosso futuro – um futuro indefinido e incerto, do qual apenas sabemos que será muito feliz; e o desejo acaba por se dissipar.

A floresta termina um pouco abruptamente e a pequena estrada percorre um enorme descampado, onde vemos as ruínas de um armazém há muito abandonado. Aproximamo-nos das ruínas e saímos do carro, caminhamos no chão fofo, pisando pequenas flores não muito bonitas (é estranho que possam existir flores feias); caminhamos de mãos dadas, sentindo os dedos do outro e escutando as melodias algo irritantes de pássaros ocultos (é estranho que os cânticos dos pássaros possam ser feios); não vejo uma única borboleta. Caminhamos, sem pressa. Não explicas em que armazém estamos, porque foi abandonado, como o encontraste; e isso comove-me um pouco; porque me sinto agradecida, porque me sinto feliz por reconheceres o valor do silêncio e não o temeres; feliz por saberes que o excesso de palavras é tão irritante como o excesso de cantorias dos pássaros. Não irás falar, irás simplesmente agir; e isso comove-me.

Então, quando estamos rodeados de destroço e decadência, numa ilha de ruína que nem o esplendor do sol consegue iluminar e embelezar, pegas na minha mão e nela depositas uma pequena caixinha que retiraste do bolso; abro e olho: um anel, claro. Tão lindo que, por um momento, falta-me a respiração. Perguntas: casas comigo? E sorris. E olhas-me. E esperas.

Apenas muito mais tarde, quando já estamos na cidade, explicas (e apenas porque eu insisti): queria pedir-te em casamento num local em ruínas e não num daqueles sítios lindíssimos e mágicos mas, no fundo, profundamente ocos e vazios; e queria fazê-lo num local em ruínas porque acredito que a felicidade não é uma dádiva mas algo que temos que conquistar, algo que implica esforço e empenho. Mas também algo que terá, inevitavelmente um fim, que se transformará num destroço. Queria que o primeiro momento do nosso casamento ocorresse num local em ruínas para que nunca esquecêssemos que apenas com o nosso esforço permanente a felicidade será possível, que apenas com o nosso esforço permanente a nossa relação jamais definhará, sucumbindo à ruína. Foi por isso que escolhi aquele sítio, percebes?

Tenho o anel no dedo e sorrio. Talvez continue a sorrir para sempre.



Durou quase dois anos, o casamento. E agora que recordo tudo isto, não consigo deixar de notar o quanto eras ridículo. Enfim.