Brincar ao cinema # 01

Vê-se uma sala ampla, repleta de pessoas que caminham em diversas direcções, com determinação mas sem pressa, como alguém que têm um destino mas não está particularmente ansioso por lá chegar; todas as pessoas que se vêem estão sozinhas, em silêncio, com expressões pesadas; ninguém sorri ou ri.
A câmara fixa-se num homem que está sentado num canto da sala, olhando fixamente para alguém. A sua expressão é atenta, curiosa, intrometida. Depois, a câmara segue o seu olhar, incidindo por fim na pessoa que ele observa. É uma mulher que está sentada, ali próximo. Parece aborrecida e enfadada, como se aguardasse a chegada de alguém que está muito atrasado. Olha para o telemóvel com impaciência.
No momento em que a câmara a fixa, chega um homem, apressado. Aproxima-se dela e beija-a, de forma rápida e quase desinteressada.
HOMEM (algo abrupto, sem fazer qualquer saudação; como se pretendesse disfarçar o seu atraso): Tens uns óculos novos?
MULHER (olhando para o telemóvel): Hum hum.
HOMEM (distraído): Gosto. Dão-te um ar mais austero.
MULHER (olhando-o subitamente com desagrado): Austero? Ok. Mas olha lá: diz-me uma coisa.
HOMEM (desinteressado): Sim?
MULHER (incisiva e acusadora): Não costumas olhar muito para mim, pois não?
HOMEM (surpreendido): O quê?
MULHER (irritada): Estamos juntos há tanto tempo, tão habituados um ao outro, que tu já deixaste de me olhar no rosto e nos olhos e assim. Não olhas para mim.
HOMEM (defensivo): Estás a exagerar.
MULHER (irritada): Se calhar, não estou. Sabes há quanto tempo uso estes óculos?
HOMEM (quase indiferente): Dois dias?
MULHER (suspirando):Três semanas.
HOMEM (envergonhado e confuso): Ok.
MULHER (acusadora): E durante este tempo todo, não reparaste na merda dos óculos.
HOMEM (incomodado): Ok, desculpa lá.
MULHER (pensativa): Não te percebo. Não sei se não me olhas ou se olhas mas não reparas. Ou, se calhar, até olhas, e isso não te serve de nada. Se calhar até viste logo a porcaria dos óculos mas não te apeteceu dizer nada, levaste este tempo todo a interessar-te. Falaste neles, agora, para disfarçar o teu atraso.
HOMEM (irritado): Olha, estava só a tentar fazer conversa. Está bem? A tentar fazer conversa. Só isso.
MULHER (subitamente desinteressada dele): Ok. Whatever.  
HOMEM (afastando-se, irritado): Vou ver se encontro o raio da Catarina, que estamos atrasados.
A mulher não responde e volta a concentrar-se no telemóvel, enquanto o homem se afasta, apressado. Durante todo este diálogo continuaram a passar pessoas por eles e foram observados pelo homem sentado, que escutou toda a conversa.
Pouco depois, a mulher é abordada por uma outra mulher, que chega da direcção oposta à que o homem tomara.
MULHER 2 (apressada): Então, onde anda o Ricardo?
MULHER (arrumando o telemóvel): Anda à tua procura.
MULHER 2 (irritada): Oh que cena. Nunca mais nos orientamos, assim.
MULHER (indiferente): É o normal, não é?
MULHER 2 (decidida e pragmática): Anda lá, vamos à procura dele. (A mulher levanta-se, sem grande entusiasmo mas também sem se opor. Começam a caminhar na direcção em que o homem seguiu pouco antes.) Olha, que giros. Gosto muito dos teus óculos novos.
MULHER (algo entusiasmada): São muito fixes, não são? (E depois de uma pequena pausa, quando estão mesmo a passar junto do homem que acompanhou toda a cena.) Fui buscá-los esta manhã mas parece que sempre os usei. Uma maravilha.
Nesse instante, o homem ri. Uma gargalhada enorme, que se ouve em toda a sala. Olha a mulheres e ri, sendo ignorado por elas, por toda a gente. Como se nem estivesse ali, como se o riso não tivesse qualquer valor, não existisse.
A câmara acompanha as mulheres que se afastam, misturadas na confusão de gente apática. Depois, aproxima-se do homem que lentamente deixa de rir, até se tornar tão sério como estava no início. Continuam pessoas a caminhar por todo o lado, sérias e silenciosas.