Uma espécie de western: fascículo # 02

Corro, ainda. Já não me lembro bem por que motivo o faço; ou melhor: lembro-me; mas de certo modo deixou de fazer sentido, de importar. Corro porque posso, porque decidi que o iria fazer. Porque sim. Antes, houve um propósito, um objectivo; acho que houve. Fugir, talvez apenas para provar que o podia fazer, que havia essa possibilidade, que era uma opção disponível e exequível. Que dependia apenas de mim, da minha vontade.
Corro, em silêncio, tentando ignorar o cansaço do corpo, o seu inútil protesto. E reconheço, sem surpresa, como esta necessidade de concretizar possibilidades, de testar limites, sempre me acompanhou, sempre determinou os meus comportamentos, sempre justificou loucuras e imprudências e temeridades. Reconheço como sempre me deixei subordinar a esta inexplicável urgência de materializar, em acções práticas e concretas, visíveis, todos os pensamentos e impulsos e ímpetos e desejos e devaneios e fantasias que, por algum fugaz instante, cruzassem a minha mente, excitassem o meu espírito, conduzissem os meus pensamentos. Penso nisto, pela primeira vez, talvez pela última vez: consciencializando-o; depois, deixa de importar.
As botas continuam a pisar a terra, que estala suavemente (ou estarei a imaginar?). As sombras movem-se, acompanhando-me, e a lua espreita, sobranceira; as estrelas também. Talvez haja animais, dormindo entre as arbustos, no cimo das árvores; pergunto-me se os animais também terão insónias; se sonharão. E lá à frente, sob a luz do luar, vejo a barraca onde o cavalo talvez ainda permaneça, à espera; diminuo a velocidade de forma quase imperceptível, respiro com menos sofreguidão.