(A Mulher desvia o olhar, talvez arrependida de ser ter revelado demasiado. A Irmã olha-a, com surpresa, com temor; com respeito, também. O silêncio é longo, desconfortável.)
IRMÃ (na sua voz normal, esforçando-se por parecer descontraída): Chiça, isto foi um bocado violento.
MULHER (forçando um sorriso mas desviando o olhar): Desculpa, deixei-me levar um bocado longe de mais.
IRMÃ (encolhendo os ombros e espreitando o telemóvel; num tom excessivamente informal): Bom, esse é que é o interesse deste teu jogozinho, não é? (Pausa breve. Recuperando o tom sério, preocupado.) Mas tens aí muita porcaria dentro, muita coisa a precisar de sair cá para fora. Nunca pensei, mana. (Pausa breve.) Nunca conversam sobre estas coisas, sobre vocês? Isso faz-me um bocado de impressão.
(A Mulher encolhe os ombros, talvez ligeiramente envergonhada. A Irmã aguarda uma resposta, um comentário.)
MULHER (num tom pensativo, distante): Conheces aquela sensação de estar a falar com alguém e de repente perceberes que a pessoa não está a ouvir, que não ouviu uma única palavra do que disseste nos últimos cinco minutos? (A Irmã acena com a cabeça, enquanto brinca com o telemóvel.) E logo depois, vem-te assim uma espécie de inspiração divina e percebes que isso já aconteceu mais vezes, sem que tu suspeitasses. Desconfias que se calhar até acontece desde sempre. (Pausa breve.) Já te aconteceu? Perceberes que se calhar nem faz grande diferença, que afinal interessa pouco se és ouvida ou não, que se calhar não és ouvida porque não tens nada de especial para dizer. (Olhando a Irmã directamente, quase com desafio.) Sabes do que estou a falar? Fazes ideia?
IRMÃ (pousando o telemóvel e olhando a Mulher, aceitando o desafio): Acho que não. (Olham-se, um pouco surpreendidas com a frontalidade da resposta.) Acho que nunca aconteceu, acho que não suportaria viver uma relação em que me sentisse irrelevante. (Pensativa.) Apaixono-me e desapaixono-me com muita facilidade, como sabes. Vou andando de homem em homem e sabe bem assim porque com cada um vou tendo coisas novas e diferentes e complementares, de cada um vou recolhendo qualquer coisa especial. Nem imaginas como sabe bem ir coleccionando, ir explorando, ir descobrindo. (Num tom carinhoso.) Sabes que essa coisa do homem perfeito e do amor eterno não é para mim, não me interessa o conhecido, a repetição, a previsibilidade. (Sorri.) Mas também não tenho a pretensão de ser o amor eterno de alguém. Aborreço-me com os homens, da mesma forma que eles se aborrecem comigo. É natural, acho eu. Acontece com toda a gente.
MULHER (tom triste, agastado): É, com toda a gente.
IRMÃ: Esquisito é que a partir do momento em que isso acontece, não se reaja, não se tente seja o que for para contrariar uma situação que não é confortável nem recompensadora, que não está a funcionar. Que não se procurem estratégias, se inventem mecanismos. Ou que não se siga em frente, noutro rumo. (Pausa breve.) Isso é que me faz confusão. Não se estar bem mas não se fazer nada para melhorar.
MULHER (tentando sorrir mas sem disfarçar a tristeza): Isso é o que diz a psiquiatra. (Pausa breve.) O que ela não percebe, como tu não percebes, é que não me interessa especialmente andar por aí a experimentar este e aquele, a testar homens. Já passei essa…
IRMÃ (interrompendo, aborrecida): Não digas que é uma fase, que eu passo-me já. Detesto essa condescendência de irmã mais velha.
MULHER (calma, sem hostilidade nem arrogância): Bom, para mim foi uma fase. Passei por ela e não quero voltar. Dá-se umas fodas e aprende-se umas coisas, chora-se pouco. (Encolhendo os ombros, desviando o olhar.) Ok, tem piada. Mas não pode durar para sempre; não chega. É preciso mais. É preciso investir em…
IRMÃ (interrompendo, irritada): Investir em quê? Num gajo que não te ouve? Que não quer saber o que pensas, o que sentes? Tem paciência mas prefiro não andar cheia de ilusões e de expectativas que se vão frustrando uma a uma; de fantasias com companheirismos e almas gémeas e essas porras todas. (Pausa breve.) Prefiro foder como deve ser, o que já não é mau.
(A Mulher sorri, contrariada mas incapaz de não o fazer; abana a cabeça, como se desistisse.)
IRMÃ (conciliatória): Tu sabes que eu sempre gostei do teu marido, que sempre gostei de vos ver juntos. Que de vez enquanto até te invejo, só um bocadito. Sabes isso. (Pausa breve.) Mas não fazia ideia que tinhas uma relação frustrada…
MULHER (interrompendo, magoada): Não tenho nada uma relação frustrada.
IRMÃ (defensiva): É o que parece, depois deste teu teatrinho.
(Sem que notassem, aproximou-se da mesa uma terceira mulher que, com gestos decididos e peremptórios, puxa uma cadeira e senta-se, surpreendendo-as.)
AMIGA (sorrindo): Qual teatrinho?
MULHER (olhando a Amiga, quase assustada): Que susto, fogo. Sempre a mesma coisa. (Tentando recompor-se.) Por onde tens andado, estás atrasada.
AMIGA (encolhendo os ombros): Perdi-me numa lojinha. Temos que passar por lá, depois. Quero que me dês uma opinião.
(A Irmã pegou no telefone e fez uma chamada, aguardando que atendam. Pressente-se algum desconforto em relação à Amiga.)
AMIGA (olhando as chávenas): Apetecia-me um café. Ainda temos tempo?
MULHER (arrumando o telemóvel na bolsa, com gestos decididos): Acho que não. Já estava para ir sozinha.
AMIGA (sem pressa de se levantar): Estavam a falar de quê, afinal?
MULHER (dirigindo-se à Irmã, que aguarda com alguma ansiedade que lhe atendam a chamada): Ficas?
(A Irmã acena que sim, muda o telemóvel de orelha; a Mulher levanta-se e olha para a Amiga.)
MULHER (dirigindo-se à Amiga): Então?
AMIGA (levantando-se, contrariada): Qual é a pressa?
(A Mulher aproxima-se da Irmã e dá-lhe um beijo algo tímido, no rosto; a Irmã parece estremecer, surpreendida.)
MULHER (começando a afastar-se, dirigindo-se à Irmã): Depois falamos.
AMIGA (acompanhando a Mulher; dirigindo-se à Irmã, sem a olhar): Tchau. (Falando à Mulher, sorrindo.) Há séculos que não te via com saia.
IRMÃ (na sua voz normal, esforçando-se por parecer descontraída): Chiça, isto foi um bocado violento.
MULHER (forçando um sorriso mas desviando o olhar): Desculpa, deixei-me levar um bocado longe de mais.
IRMÃ (encolhendo os ombros e espreitando o telemóvel; num tom excessivamente informal): Bom, esse é que é o interesse deste teu jogozinho, não é? (Pausa breve. Recuperando o tom sério, preocupado.) Mas tens aí muita porcaria dentro, muita coisa a precisar de sair cá para fora. Nunca pensei, mana. (Pausa breve.) Nunca conversam sobre estas coisas, sobre vocês? Isso faz-me um bocado de impressão.
(A Mulher encolhe os ombros, talvez ligeiramente envergonhada. A Irmã aguarda uma resposta, um comentário.)
MULHER (num tom pensativo, distante): Conheces aquela sensação de estar a falar com alguém e de repente perceberes que a pessoa não está a ouvir, que não ouviu uma única palavra do que disseste nos últimos cinco minutos? (A Irmã acena com a cabeça, enquanto brinca com o telemóvel.) E logo depois, vem-te assim uma espécie de inspiração divina e percebes que isso já aconteceu mais vezes, sem que tu suspeitasses. Desconfias que se calhar até acontece desde sempre. (Pausa breve.) Já te aconteceu? Perceberes que se calhar nem faz grande diferença, que afinal interessa pouco se és ouvida ou não, que se calhar não és ouvida porque não tens nada de especial para dizer. (Olhando a Irmã directamente, quase com desafio.) Sabes do que estou a falar? Fazes ideia?
IRMÃ (pousando o telemóvel e olhando a Mulher, aceitando o desafio): Acho que não. (Olham-se, um pouco surpreendidas com a frontalidade da resposta.) Acho que nunca aconteceu, acho que não suportaria viver uma relação em que me sentisse irrelevante. (Pensativa.) Apaixono-me e desapaixono-me com muita facilidade, como sabes. Vou andando de homem em homem e sabe bem assim porque com cada um vou tendo coisas novas e diferentes e complementares, de cada um vou recolhendo qualquer coisa especial. Nem imaginas como sabe bem ir coleccionando, ir explorando, ir descobrindo. (Num tom carinhoso.) Sabes que essa coisa do homem perfeito e do amor eterno não é para mim, não me interessa o conhecido, a repetição, a previsibilidade. (Sorri.) Mas também não tenho a pretensão de ser o amor eterno de alguém. Aborreço-me com os homens, da mesma forma que eles se aborrecem comigo. É natural, acho eu. Acontece com toda a gente.
MULHER (tom triste, agastado): É, com toda a gente.
IRMÃ: Esquisito é que a partir do momento em que isso acontece, não se reaja, não se tente seja o que for para contrariar uma situação que não é confortável nem recompensadora, que não está a funcionar. Que não se procurem estratégias, se inventem mecanismos. Ou que não se siga em frente, noutro rumo. (Pausa breve.) Isso é que me faz confusão. Não se estar bem mas não se fazer nada para melhorar.
MULHER (tentando sorrir mas sem disfarçar a tristeza): Isso é o que diz a psiquiatra. (Pausa breve.) O que ela não percebe, como tu não percebes, é que não me interessa especialmente andar por aí a experimentar este e aquele, a testar homens. Já passei essa…
IRMÃ (interrompendo, aborrecida): Não digas que é uma fase, que eu passo-me já. Detesto essa condescendência de irmã mais velha.
MULHER (calma, sem hostilidade nem arrogância): Bom, para mim foi uma fase. Passei por ela e não quero voltar. Dá-se umas fodas e aprende-se umas coisas, chora-se pouco. (Encolhendo os ombros, desviando o olhar.) Ok, tem piada. Mas não pode durar para sempre; não chega. É preciso mais. É preciso investir em…
IRMÃ (interrompendo, irritada): Investir em quê? Num gajo que não te ouve? Que não quer saber o que pensas, o que sentes? Tem paciência mas prefiro não andar cheia de ilusões e de expectativas que se vão frustrando uma a uma; de fantasias com companheirismos e almas gémeas e essas porras todas. (Pausa breve.) Prefiro foder como deve ser, o que já não é mau.
(A Mulher sorri, contrariada mas incapaz de não o fazer; abana a cabeça, como se desistisse.)
IRMÃ (conciliatória): Tu sabes que eu sempre gostei do teu marido, que sempre gostei de vos ver juntos. Que de vez enquanto até te invejo, só um bocadito. Sabes isso. (Pausa breve.) Mas não fazia ideia que tinhas uma relação frustrada…
MULHER (interrompendo, magoada): Não tenho nada uma relação frustrada.
IRMÃ (defensiva): É o que parece, depois deste teu teatrinho.
(Sem que notassem, aproximou-se da mesa uma terceira mulher que, com gestos decididos e peremptórios, puxa uma cadeira e senta-se, surpreendendo-as.)
AMIGA (sorrindo): Qual teatrinho?
MULHER (olhando a Amiga, quase assustada): Que susto, fogo. Sempre a mesma coisa. (Tentando recompor-se.) Por onde tens andado, estás atrasada.
AMIGA (encolhendo os ombros): Perdi-me numa lojinha. Temos que passar por lá, depois. Quero que me dês uma opinião.
(A Irmã pegou no telefone e fez uma chamada, aguardando que atendam. Pressente-se algum desconforto em relação à Amiga.)
AMIGA (olhando as chávenas): Apetecia-me um café. Ainda temos tempo?
MULHER (arrumando o telemóvel na bolsa, com gestos decididos): Acho que não. Já estava para ir sozinha.
AMIGA (sem pressa de se levantar): Estavam a falar de quê, afinal?
MULHER (dirigindo-se à Irmã, que aguarda com alguma ansiedade que lhe atendam a chamada): Ficas?
(A Irmã acena que sim, muda o telemóvel de orelha; a Mulher levanta-se e olha para a Amiga.)
MULHER (dirigindo-se à Amiga): Então?
AMIGA (levantando-se, contrariada): Qual é a pressa?
(A Mulher aproxima-se da Irmã e dá-lhe um beijo algo tímido, no rosto; a Irmã parece estremecer, surpreendida.)
MULHER (começando a afastar-se, dirigindo-se à Irmã): Depois falamos.
AMIGA (acompanhando a Mulher; dirigindo-se à Irmã, sem a olhar): Tchau. (Falando à Mulher, sorrindo.) Há séculos que não te via com saia.
(As duas mulheres afastam-se e desaparecem. A Irmã permanece sentada, agarrando o telemóvel com força e olhando em frente.)
Edward Hopper - Chop suey