Gastar palavras

A velhinha estória Gastar Palavras fotografada por sonja valentina.



07h45

Custa-me tanto acordar.
Antes, era um momento mágico: um mundo de possibilidades pela frente, caminhos a percorrer, aprendizagens, dores e obstáculos e incompreensões a superar, partilhas; cada acordar era um nascimento, a descoberta deslumbrada da imensidão da vida. Como olhar um mapa que incluísse todos, mas mesmo todos, os caminhos existentes no mundo, todas as pequenas estradas e atalhos e ruelas e avenidas e becos sem saída; olhá-los, sem pressa, saboreando a indecisão, e escolher: hoje, vou por aqui. E ir.
Agora, adormecer é que é o momento mágico. Adormecer significa adiar e esquecer. Durmo muito, preciso de dormir muito: são esses os únicos instantes em que não sofro. Tudo se mantém, nada muda enquanto durmo; mas dormindo, consigo não pensar nisso, consigo ignorar. É a única fuga que me resta e estou, em cada dia que passa, mais dependente dela. Durmo, vou fugindo. Fujo da dor de pensar. Então, acordo: e eis a minha vida, à espera. É (também) como nascer: e descobrir uma cortina intransponível (nem importa se transparente ou não; é indiferente se há algo para além da cortina porque a impossibilidade de a ultrapassar é uma certeza absoluta); nasce-se e não se está perante um princípio, nem sequer perante um fim; abro os olhos e tudo o que vislumbro é um impasse, uma impossibilidade, uma incongruência. Abro-os; e de imediato, volto a fechá-los. E a incapacidade de os manter assim, cerrados, causa uma dor nova, acrescenta o sofrimento.
Acordo, agora. E o meu primeiro pensamento é: quando poderei voltar a dormir?


08h13

Caminho pelo apartamento. O branco das paredes agride-me, fura-me os olhos. Apetecem-me quadros, cores, janelas para a salvação; distracções. Este assobio constante que é o ruído do silêncio causa-me dores de cabeça; e desejo barulho, agitação. Há momentos em que penso: um grito de alguém seria o suficiente para me salvar. E olho em redor, em busca de quem possa gritar. Procuro, sabendo o que encontrarei. Penso: sabemos sempre o que vamos encontrar e mesmo assim procuramos; porquê? Vou à casa de banho, porque aí as paredes são beges; sempre é um branco diferente. Depois, olho-me ao espelho. Frente a frente com alguém, que até poderei nem ser eu. E canso-me. O silêncio perseguiu-me, aí está: ruidoso. Desejo barulho; e ligo a televisão, automaticamente começo a trautear as músicas publicitárias que vou ouvindo. Sento-me a comer o pequeno-almoço, feito de cereais. Engulo com indiferença. Trauteio. Vejo como o sol vai avançando pela janela, agredindo-me com a luminosidade da sua existência. Agora, resta vestir-me e sair pelo mundo, por aí fora. Penso: tenho quase meia hora para escolher a gravata.


08h53

Por vezes, julgo-me especial. Penso: sou especial. E acredito.
Nada de extraordinário, essa especialidade. É apenas uma consciência não muito racional que por vezes vem e se insinua, murmura junto ao ouvido: tens, em ti, lá dentro, lá fundo, algo para dar. Algo que até pode ser muito. Mas algo, para oferecer. Quero dar, sinto que posso dar. Nem sei o quê, na verdade não importa muito. Poderá ser apenas companhia ou compreensão ou carinho ou amor. Mas quero tanto dar. Provocar sorrisos. Ou até recolher lágrimas (as lágrimas são sempre pedaços de alma, provas de libertação, de entrega, de confiança; rastos de amor. Gostaria de andar pelo mundo e provocar choro; então, recolheria as lágrimas, e com elas formaria um oceano, um novo oceano. E esse oceano, constituído por pedacitos das almas de todos os homens, formaria uma alma gigantesca, que seria a alma do mundo; que seria, em simultâneo, de todos e todos.)
É isso que penso, que desejo: apetece-me dar; e sinto que posso. Depois, olho em redor, pergunto: mas quem receberá? (Novamente: uma cortina.) Muitas vezes, sinto-me pateta: como se fosse um daqueles loucos que percorrem as ruas das cidades com tabuletas penduradas ao peito, anunciando o fim do mundo; a minha tabuleta diria: dá-se amor. E andaria pelas cidades, exibindo-a, esfregando-a nos olhos de quem passasse. Para nada; porque ninguém diria: dá-me amor, que eu preciso.
E então, penso: não, não sou especial. E acredito.


10h37

O que mais me custa neste emprego de vendedor de automóveis é ter de sorrir tanto. Aquela velha conversa pateta do palhaço que tem de mostrar alegria estridente quando sente dor lancinante. Sorrio, muito sorrio eu. E esta gente cega deverá pensar: que alegre e feliz é este homem. Ouço os lamentos, detecto os sonhos. Tagarelices inconsequentes. E falo das cilindradas e das cores metalizadas e das jantes em liga leve. Digo: hoje em dia, os carros são feitos para durarem uma vida. E recebo a resposta em forma de acenos de cabeça. Passo horas a repetir cassetes, com indiferença, disfarçando o ódio com sorrisos. Por vezes, dizem-me: que gravata tão bonita. Sorrio e falo da minha colecção de gravatas. Faço-o com entusiasmo, invento entusiasmo. E tenho a certeza que toda esta gente pensa: que rapaz tão feliz. E eu grito-lhes, em silêncio: cegos dum caralho.


13h01

Almoço todos os dias no mesmo restaurante. Já me conhecem, aqui. Sorriem-me muito. E eu sei: para eles, é só trabalho, é um sorriso profissional; o sorriso que exibem quando me dão o prato com as batatas e a carne e o ovo e a alface é o mesmo, exactamente o mesmo, que eu exibo, quando falo de suspensões e consumos e alarmes. Penso: agora, sou eu o cego. Finjo não perceber. Todos aceitámos esta regra primária da civilização: fingir não perceber o sofrimento dos outros. Ignorar. E então, rio alto. Eles sorriem e eu rio. Falamos, somos joviais. Espirituosos. Eles dizem: és um tipo mesmo porreiro. E eu concordo. Mas sei o que eles pensam, na verdade: cego dum caralho. É o que eu também penso, deles, de mim. Somos sempre os mesmos, o mesmo, dia após dia. Sorrimo-nos tanto; e nada sabemos uns dos outros. Não sei porquê mas nem curiosidade sentimos. Representamos as nossas comédias, falamos de banalidades, sorrimos tanto. Mas não conhecemos nada, não partilhamos nada. Podemos estar a morrer de dor, de solidão, de desespero; mas enrolamos sempre as batatas fritas em sorrisos e engolimo-las com a nossa dor. Dor que amarga, sempre; mas que disfarçamos: com mais sorrisos. Tão estranho, isto. O que precisamos, todos nós, é de um simples abraço. Mas recusamos pedi-lo, dá-lo. Sentimos vergonha, embaraço. Não encontramos conforto no facto de partilharmos as mesmas dúvidas, as mesmas angústias. Somos incapazes de estender a mão, abrir a mão. Todos sentimos que temos algo para dar, queremos dar, queremos desesperadamente dar, qualquer coisa, a alguém. Mas temos medo, somos tolhidos por um estranho e dilacerante medo, que nos inibe, que nos controla. E então, tudo o que fazemos é sorrir. Sorrimos. Disfarçamos o medo. E aprendemos a odiar, odiar com todas as nossas forças, as pessoas que nos sorriem. É também uma maneira de nos odiarmos.


16h42

Isto é o que sinto, ultimamente: que a minha alma diminui. Que vai encolhendo e encolhendo e encolhendo. Tenho medo que, assim, desapareça. E pergunto-me o que será de mim, sem alma. Depois, há alturas em que me revolto. E penso: mas se eu já sou um simples pedaço de carne... e sou incapaz de completar o pensamento. Sim, admito: a minha vida é pouco diferente da existência de um poste de electricidade. Ergo os meus braços, segurando os fios que conduzem a electricidade que alimenta o mundo; momentos de arrogância, em que me julgo útil. Mas, na verdade, sei, admito: que a electricidade existe sem mim, para além de mim; que sou apenas um instrumento, facilmente substituível. Há acontecimentos que passam através de mim, pequenas banalidades angustiosamente irrelevantes (acuso-me: sou um instrumento da banalidade; ou nem isso, menos que instrumento, menos que veículo.); mas, se eu não estivesse lá, estaria outro poste, o que mais existe são postes.
Mas preocupa-me, isto. Ainda me preocupa. Há camadas de alma que vou perdendo, isso sinto. Devagarinho, suavemente. Sem dor (e isto, espanta-me um pouco). Como se a alma fosse feita de translúcidas camadas de água; e por vezes, uma camada desaparecesse, assim, simplesmente. Evaporou. Transformou-se noutra coisa. Era substância, agora é... não sei: vapor. Ou fantasma. Sim, talvez isso: aos poucos, a minha alma morre, transforma-se em espírito de alma, fantasma de alma. Sinto isso: e perturbo-me. Custa-me, ser assim habitado por fantasmas. Custa-me, estar assim a evaporar, aos poucos.
E se alguém perguntasse: quem és? Responderia: um poste de electricidade com um fantasma de alma dentro?


21h17

O pior é não apetecer.
Não ter vontade nem desejo, não querer nada. Acontece-me muito, agora. Não apetece. Nada apetece. Não sinto vontade de nada. Espero, apenas. Ou nem isso: por vezes, não espero nada. Basta a passagem do tempo. No máximo, espero nada; e esperar nada é estar morto, vegetando. Como morto: é assim que me sinto, tanta vez. Prisioneiro da indiferença; pior: apreciando a indiferença. Sinto-me doente, sei que é uma doença; mas sou incapaz de me contrariar. Pergunto-me, sempre, tanta e tanta vez: para quê?
Forço-me. Tento pensar em coisas boas. Pedaços de felicidade. Nada de especial, porque a felicidade não é nada de especial; a felicidade é, muitas vezes, simplesmente conseguir sentir, derrotar por momentos a indiferença, a anestesia, o torpor. A felicidade pode ser, tantas vezes, apenas conseguir sentir. E então, evoco recordações. Momentos em que consegui sentir qualquer coisa. Banalidades: o sabor de um gelado, o brilho do sol num fim de tarde de Verão, uma carícia na perna, o som de um riso, um passeio na beira de um rio, o ladrar de um cão, a sensualidade de uma palavra escrita à mão numa folha de papel, o toque ansiado de um telemóvel, um passeio de carro sem destino nem objectivo nem fim, um olhar que não se desvia, crianças a brincar, ter um jornal na mão. Coisitas que me encheram, preencheram o vazio. Penso nelas, tento recuperar a sua consistência. Faço força. Mas não resulta, já não resulta. Apenas memórias indefinidas, voláteis. Perdidas. Tento tocar-lhes, mas elas passam-me através dos dedos; fantasmas.
E volta a não apetecer. Nada, nem sequer tentar.


23h37

Acabei de fazer amor. Comecei por despir-lhe a lingerie, aquela azul e semi-transparente, depois fui percorrendo-lhe o corpo com a língua, acariciando, molhando, provando. Movimentos frenéticos, gestos desastrados. Passou muito tempo; e agora há cheiros insinuados e nuances de escuridão, movimentos tímidos, simulacros de partilha. Dantes, dava importância a isto: a minha vida dependia disto. Agora, há apenas cansaço. Ou nem isso: resignação. Ela adormeceu, enroscada em mim. De repente, ressona. E acho isto bonito. É bom descobrir imperfeições nos outros: lembramo-nos assim que também somos imperfeitos. E partilhar os defeitos é uma forma superior de amor. Imagino-me a dizer, não sei a quem, não importa a quem: amo-te porque ressonas, porque tens manchas na pele, porque és egoísta.
De qualquer modo, penso que ainda a amo. Muito. Ou o suficiente.
Penso nisto, durante muito tempo; depois, adormeço.


01h13

Custa-me falar. Custa-me dizer palavras que não conduzam a lado nenhum, que não originem intimidade, que não toquem; E por vezes, penso: vou gastando as minhas palavras, assim, desapaixonadamente, desinteressadamente; e quando precisar mesmo delas – ainda acredito que esse dia chegará –, descobrirei que se me acabaram; procurarei dentro de mim e não encontrarei; apenas o vazio estará lá: maior que hoje. E preocupo-me: porque não sei onde se podem ir buscar palavras, não sei se é possível obter e usar mais palavras que aquelas que nos dão à nascença (nascemos apenas com dois olhos, e assim temos de sobreviver; nunca ninguém pensou partir pelo mundo, em busca de mais olhos, por achar que dois são insuficientes).
Por vezes, gosto de imaginar que as palavras nascem nos ramos de uma árvore misteriosa, uma árvore milenar que existe desde o início dos tempos, que nunca morre (árvores que são, também colunas: que de algum modo sustentam o mundo); gosto de imaginar que há planícies imensas serpenteadas destas árvores e que, por vezes, algumas pessoas podem passear-se entre elas e colher as palavras que desejam. Como meninos, brincando num laranjal, num fim de tarde de Primavera.
Também já houve alturas em que pensei: as palavras vêm do mar. Existiriam entre as ondas, envolvidas pela água. Como bebés, nas placentas das mães. Nascendo, a todo o momento: formas invisíveis soltando-se com ternura da água, sacudindo a espuma, e flutuando nas costas do vento, por aí. A atmosfera estaria repleta delas, infinidades de palavras virgens, ansiosas por serem ditas, gritadas, segredadas; ou adiando o propósito da sua existência, o momento em que alguém as pega e, envolvendo-as na humidade da garganta (outra placenta), extrai o som que é a sua essência, esvaziando-as.
Penso (pensar não consome as palavras) muitas coisas, assim. E tenho pena de não poder falar disto a ninguém, não ter as palavras necessárias em mim. Sinto-me deficiente: nasci com défice de palavras.
Não percebo para que estou a gastá-las contigo.