# 70: Cento e catorze mortos

Quando ela o viu entrar no bar, reconheceu-o imediatamente; teriam passado uns oito anos, talvez nove – não: oito; definitivamente –, desde o ano em que lhe dera aulas de língua portuguesa durante alguns meses, como professora de substituição, e nunca mais o vira, nunca mais pensara nele; ainda assim, reconheceu-o inequivocamente mal o viu, teve a certeza de que era um antigo aluno, conseguiu visualizá-lo de imediato (um rapaz envergonhado que nunca falava, nunca sorria, que se sentava a uma mesa recuada e olhava muito pela janela). Foi saboreando a bebida enquanto o espreitava, tentando calcular a sua idade – vinte e sete ou vinte e oito, algures por aí – e apreciando a sua desenvoltura e a forma confiante como circulava pelo bar, estudando o seu corpo, o seu sorriso, as suas mãos; (recordou, de súbito, que fora nesse ano lectivo que casara mas logo se concentrou em afastar essa memória, em focalizar-se no presente). Tentou perceber se o rapaz aguardava alguém, ou se era esperado por alguém, enquanto tentava lembrar o seu nome, enquanto se perguntava se ele a recordaria, se a olharia com interesse ou com agastamento, se gostaria de a reencontrar; enquanto ponderava, especialmente, se seria demasiado estranho e degenerado e desesperado ir para a cama com um ex-aluno.
Quando terminou a bebida (olhou distraidamente em redor, tentando perceber se alguém lhe viria oferecer outra; mas ninguém reparara em si, ninguém iria gastar três euros e cinquenta cêntimos consigo), decidiu que quando recordasse o nome dele, o abordaria e logo se veria como correria a conversa, logo se veria se as suas necessidades momentâneas seriam compatíveis ou não; pensava, por isso, em nomes – António, Diogo, Carlos, Francisco, Duarte, João, Afonso, Miguel, Tiago; como são banais e indistinguíveis os nomes, pensava ela: como se o nome de alguém não fizesse, afinal, grande diferença, nenhuma diferença –, tentando associar qualquer um desses nomes àquele rosto sereno e belo, tão jovem. Sim, iria abordá-lo, esperando que aquela ténue ligação mantida num passado distante e quase esquecido fosse suficiente para sustentar e impulsionar uma relação, mesmo que fugaz, no presente.

– Estás bom, João?
– Desculpe, mas conheço-a?
– Será que estou assim tão diferente? Não vais dizer que estou velha, pois não?
– Oh senhora, vai-me desculpar mas…
– Bolas, João. Não me chames senhora, que me fazes sentir ainda mais velha do que realmente sou.
– Não queria ofendê-la mas não estou a ver de onde…
– Fui tua professora, há uns anitos. Língua portuguesa, décimo segundo ano; professora de substituição, estivemos juntos apenas um trimestre. Mas lembro-me muito bem de ti, João; lembro-me que não ouvias nada do que dizia, que passavas o tempo a olhar pela janela.
– Stora Patrícia?
– Que querido, afinal até te lembras do meu nome.
– Está diferente, stora. Mesmo diferente.
– Para melhor, espero.
– Claro, claro que sim. Para melhor.
– E gostas do que vês?
– Desculpe?
– Gostas do que vês?
– Acho que sim, stora, acho que gosto.
– A sério? Bom, se me ofereceres uma bebida, podes tratar-me por tu.
– Ok. Sabe, se usasse esse tipo de roupa nas aulas, de certeza que eu não teria olhado tanto pela janela; suponho que foi por isso que não a reconheci. A roupa muda tudo, altera as pessoas; disfarça-as um pouco. Mas bebe o quê, stora?

Beberam e riram durante um bocado, trocando recordações e insinuações, piadinhas, olhares. Ela percebeu como ele ficou um pouco perturbado quando consciencializou que a noite iria terminar em sexo, que era isso – apenas isso? – que ela desejava dele; talvez até se tenha sentido desconfortável ao compreender que estava a ser um pouco manipulado, que iria servir como mera distracção de uma quarentona solitária. Mas também percebeu que ele estava curioso, que estava interessado; e sentiu-se lisonjeada, sentiu-se leve e confortável, sentiu-se feliz. Mais que tudo: sentiu-se aliviada.
Foi ela que pagou a conta, foi ela que decidiu para onde iriam; ele submeteu-se à sua liderança sem protestos nem sugestões, como se ainda estivessem na sala de aula, como se ainda existisse uma hierarquia a uni-los. Durante a viagem, tentaram falar um pouco da matéria que ela lhe ensinara e de que ele não recordava absolutamente nada, falaram do que ele sentia quando olhava pela janela e do que ela sentia quando via os alunos olharem pela janela; ela falou do seu casamento fracassado e ele falou dos seus namoros fracassados – ela teve a sensação que ele estava a exagerar, que as suas relações não teriam sido assim tão fracassadas, e sentiu-se comovida com o esforço dele. Falaram um pouco de música e bares, de filmes, de sítios interessantes para passar férias; falaram do facto de estarem a fazer algo que habitualmente não faziam – engatar pessoas num bar, colocar a necessidade de sexo à frente de tudo – mas não se esforçaram em justificar os seus actos. Falaram do tempo. Falaram do estado do país e de política e da crise e dos problemas dos professores e do desemprego dos licenciados. Falaram do facto de haver dezasseis anos de diferença a separá-los – ele disse que ela estava muito bem para a idade que tinha, mesmo mesmo bem, e ela quase acreditou.
Por fim, chegaram ao bairro onde ela vivia desde o divórcio (deram uma voltas em busca de um lugar para estacionar; e ambos sentiram que se não aparecesse rapidamente um lugar, o desconforto cresceria até se tornar insuportável, talvez tivessem que abortar o projecto, esquecer aquela noite). Ela conduziu-o ao seu apartamento, depois de subirem sete andares de elevador no mais completo silêncio, afastados um do outro, como se fossem desconhecidos – na verdade, eram desconhecidos. Entraram e durante um instante não souberam o que fazer, como começar. Não conseguiram, sequer, olhar o outro, enfrentar o olhar do outro.
Então, ela disse uma coisa absolutamente parva: vamos lá ver se mereceres um vinte. Ele sorriu, embaraçado – apenas embaraçado e não intimidado; aproximou-se e tocou-a, pela primeira vez; tocou-a no peito, que por acaso era onde ela queria mesmo ser tocada – um dos sítios em que queria ser tocada, na verdade; afastou-lhe a roupa, que fora escolhida considerando o grau de facilidade com que poderia ser removida, e baixou a cabeça com naturalidade, passou a língua pelo mamilo; ela fechou os olhos, quase sorriu; ele movimentou a língua com perícia, ela gemeu um pouco (achou que ele deveria estar à espera de um gemido); e etc., pela noite fora.

Quando terminaram, sentiram-se confusos e desconfortáveis, prisioneiros da escuridão e do silêncio que os envolvia, dos seus próprios cheiros, do eco dos seus gemidos mais ou menos forçados; sentiram-se quase à beira do arrependimento; e por isso (para se manterem ocupados, para se distraírem), também porque não havia absolutamente mais nada que pudessem fazer, foderam de novo.
E enquanto o faziam, com empenho e voracidade, fustigando os corpos – como se tentassem expulsar deles a apatia e a indiferença, forçando-os a sentir qualquer coisa, a reagir –, pensavam no que aconteceria depois, no que fariam e diriam, na forma como se olhariam, ambos percebendo que aquela relação – que ainda não era propriamente uma relação; que, na verdade, nunca chegaria a ser uma relação – estava condenada; ambos recordaram relacionamentos anteriores (fracassos anteriores), em que se sentiam prisioneiros porque deixara de existir comunicação possível (não havia nada a dizer ou a escutar), relacionamentos tão estáticos que seria necessário um sismo para os fazer mover nalguma direcção, e perguntavam-se como fora possível deixarem-se arrastar para uma nova situação sem futuro.
Iam simplesmente fodendo, mentes absortas enquanto os corpos interagiam – pensado, talvez, como serão infelizes aquelas pessoas que juram ser incapazes de fazer sexo quando não existe amor e ternura e cumplicidade e tralará; como conseguirão? –, ignorando que afinal havia algo a uni-los, a aproximá-los: a incapacidade e inépcia em se relacionar com alguém (e se, simplesmente, conversassem sobre isso? Poderiam partir daí e seguir em frente, sem pressa).

– Obrigada, João.
– Porquê?
– Por teres vindo. Por teres ficado. A sério, João. Obrigada.
– Não digas isso. Sinto-me esquisito.
– A sério, nem imaginas como me tenho sentido só e desapreciada. Foi muito importante, isto. Não imaginas, mesmo.
(Nem ela própria conseguia perceber se estava a ser totalmente sincera, ou pelo menos um bocadinho sincera; talvez precisasse apenas de se sentir agradecida, bastando verbalizar esse sentimento – se o conseguia verbalizar, talvez existisse mesmo. Afinal, a partir do momento em que se diz algo, deixa de importar se efectivamente se sente o que se acabou de se expressar; não é? Se está dito, dito está, end of story.)
– Olha, já que estamos a falar e assim, queria confessar uma coisa.
– Confessar? Confessar o quê, João?
– A verdade é que não me chamo João. Desculpa.
– Não?
– Não.
– Não te chamas João?
– Não. Desculpa não ter dito antes.
– Tinha a certeza que te chamavas João. Quase a certeza.
– Não faz mal.
– Pois não. Acho que não faz mal.
(E como ela não lhe perguntou qual era afinal o seu nome, ele sentiu-se um pouco envergonhado e não foi capaz de dizer mais nada.)

Tinham dormido um pouco, ou fingido que dormiam; entretanto, amanhecera. Estavam na varanda, partilhando um cigarro (excesso de intimidade, talvez?), quando ela fizera uma pergunta inesperada (costumavas imaginar-me nua, imaginar como seria o meu corpo, quando te dava aulas?) a que ele respondera sem pensar, instintivamente (claro que sim); ela percebeu a mentira e sentiu-se magoada, ele percebeu que ela estava magoada e sentiu-se verdadeiramente arrependido de estar ali (afinal, pensou lugubremente, uma boa foda – sim, fora boa – não vale tudo). Depois disso, não conseguiram voltar a dialogar, limitando-se a dividir o cigarro (e que aconteceria, o que fariam, quando o cigarro terminasse?); compreendiam que precisavam de iniciar o processo de separação, que seria necessariamente diplomático e hipócrita, mas não sabiam como. (Ele queria simplesmente dizer: olha, foi bastante bom mas tenho que ir, ok?; ela gostaria de dizer: dou-te um dez e meio, está bem?)
Poderiam retomar um dos assuntos da noite anterior mas, na verdade, já tudo fora dito; poderiam, talvez, fazer planos para o pequeno-almoço ou até fantasiar sobre uma qualquer viagem que fariam em conjunto (planeá-la com fingido entusiasmo, na certeza de que jamais a realizariam), perspectivar um próximo encontro, algures; poderiam confessar o que tinham considerado mais surpreendente no desempenho sexual do outro, confessar o que ainda gostariam de fazer com o corpo do outro; poderiam falar sobre o tempo, do estado do país e de política e da crise e dos problemas dos professores e do desemprego dos licenciados; e dos falsos recibos verdes. Poderiam esforçar-se: mas não conseguiam, não quiseram. E, por isso, limitavam-se a partilhar o cigarro, a soprar o fumo, a olhar em frente, a respirar silenciosamente; à espera que acontecesse algo, qualquer coisa que os salvasse, uma distracção, um pretexto de conversa, uma fuga; qualquer coisa.

Primeiro, ouviram um barulho estranho que não conseguiram identificar e, logo depois, viram o avião; viram como estava demasiado próximo, demasiado baixo; viram que havia uma asa em chamas, um rasto de fumo preto; viram que o avião ia cair na cidade, mesmo em cima da cidade, ali pertinho, que estava tão baixo que jamais conseguiria chegar ao aeroporto; viram quando embateu no chão, mesmo perante eles, no meio da auto-estrada, numa tentativa fracassada de aterragem forçada; viram como se arrastou, como embateu numa ponte, como explodiu tal e qual como acontece nos filmes. Não viram mas imaginaram pessoas a gritar, pessoas a chorar, pessoas a desesperar, pessoas a explodir, pessoas a morrer.
E sentiram-se agradecidos (apesar de horrorizados) porque agora havia um pretexto para suspender o desconforto que sentiam, para se esquecerem de si próprios durante uns minutos; não precisariam de falar do pequeno-almoço, de fingir que iriam voltar a estar juntos. Não precisariam de se expor, de se vulnerabilizar, agora que havia algo externo a uni-los; bastaria, por isso, deslumbrarem-se um pouco com aquela desgraça e, quando chegasse o momento, voltar a acender um cigarro; entretanto, o tempo passaria e, naturalmente, chegaria o momento da separação (ela ficaria a arrumar e a arejar o apartamento, ligaria a máquina de lavar, talvez comesse um iogurte; ele teria de chamar um táxi, demoraria algum tempo a escapar à confusão do trânsito provocada pelo acidente mas lá acabaria por chegar a casa).
Mais um dia, mais uma foda, mais algumas horas gastas; e a vida a prosseguir.

– Achas que morreu muita gente?
– De certeza.
– Coitados. Tenho pena das famílias. E também das pessoas que agora vão ter que andar pela auto-estrada a apanhar os pedaços de corpos.
– O trânsito vai ficar fechado durante dias, vai ser uma confusão.
– E de certeza que não vão conseguir recolher tudo. Já imaginaste passares ali daqui uma semana ou duas e teres a sensação que acabaste de pisar um pedaço de osso ou de crânio?
– Se calhar, quando um avião se incendeia e explode, os corpos das pessoas também se incendeiam e explodem, transformando-se em cinzas.
– Achas que terá sido um atentado?
– Duvido.
– Já alguma vez pensaste como gostarias de morrer?
– Não, nem por isso. Vou para dentro, ver o que estão a dizer na televisão sobre o acidente. Ficas?

Cento e catorze mortos, ao que parece. Foi o que disseram na televisão.
Talvez até possam falar disso, agora que sabem mais detalhes sobre o acidente (cento e catorze, já imaginaste? Mesmo ali à nossa frente, a caírem mesmo perante nós, como se fosse uma chuvada ou assim), caso um dia se voltem a cruzar num qualquer bar.

(Num jornal qualquer foi publicada a lista dos cento e catorze nomes; mas nenhum deles reparou, nenhum deles se interessou – na verdade, alguém teria lido os cento e catorze nomes? –. Afinal, eram apenas nomes; e como são banais e indistinguíveis os nomes, pensariam eles, pensa toda a gente: como se o nome de alguém não fizesse, afinal, grande diferença, nenhuma diferença.)

Esboço # 90

Parazo de validade expirado.

Esboço # 89

Prazo de validade expirado.

# 69: Apologia das telenovelas

ELE: Juro que não percebo o fascínio dela pela merda das telenovelas. Com a tua mulher é igual?
EU: Nem por isso.
ELE: Pois com a minha é sagrado; chega àquela hora e o mundo desliga, deixa de girar. Nada mais interessa, nada conta; é impossível tirá-la de perto da televisão, fazê-la sair de casa. Não sei se estás a ver.
EU: Estou.
ELE: E aquilo mói, sabes? É uma coisa que se põe entre nós, um muro intransponível. Podíamos estar a fazer montes de coisas, sei lá… Podíamos ver outra treta qualquer na televisão, um filme ou assim… ou podíamos beber um copo e conversar sobre o futuro e sobre ter filhos e sobre os amigos que se foram divorciando, podíamos ir para a varanda fumar enquanto contávamos estrelas, podíamos foder um bocado, podíamos ir a um bar ou ao teatro ou visitar uns amigos, podíamos fazer qualquer coisa juntos. Mas não, enquanto aquela merda dura, não há hipótese, não se mexe dali. Parece-te normal?
EU: Acho que sim.
ELE: A sério?
EU: Já pensaste fazer-lhe companhia?
ELE: A ver a telenovela? Estás a gozar comigo ou quê?
EU: Os casais estão sempre a desafiarem-se silenciosamente, a envolverem-se em duelos patetas. Uma espécie de luta não assumida pela liderança, pela supremacia; ou pela subsistência de alguma individualidade.
ELE: Grande tanga.
EU: A vida matrimonial é uma grande tanga. Até aposto que sei como são as coisas, lá em casa. Tu a ver se ela se farta das telenovelas e te faz a vontade, ela a ver se tu lhe fazes companhia nem que seja só uma noite; e se ninguém cede, apesar de serem cedências muito simples, a coisa vai-se arrastado, há-de chegar o momento em que um ou outro acaba por se desinteressar do que o outro faz ou deixa de fazer.
ELE: Que raio de conversa, tiraste um curso de psicólogo por correspondência ou quê?
EU: Olha lá, qual é que te parece o motivo dela, para ver telenovelas?
ELE: Isso gostava eu de perceber. Aquilo parece tudo tão básico, tão estereotipado. E ela é uma mulher inteligente, sabes isso. Porra, é mais inteligente que eu, muito mais, e sensível e pragmática e culta e sei lá que mais. E isso é que me faz confusão, ela perder tempo com aquilo. Deixar-se manipular, permitir que brinquem com as suas emoções de uma forma despudorada, como se fosse uma criança. Faz-me uma confusão que não imaginas.
EU: Pensa nisto. Quando olhas para uma telenovela, vês uma coisa; mas outras pessoas podem olhar exactamente para o mesmo e ver algo muito diferente. Ver algo que nem te passa pela cabeça.
ELE: Não compliques, carago.
EU: A sério. Olha lá, que representa para ti uma telenovela?
ELE: Perda de tempo.
EU: Está bem, mas e que mais? Que pensas quando ouves o conceito “telenovela”?
ELE: Conceito? Eh pá, não me fodas com filosofias.
EU: Talvez penses em histórias básicas e elementares, estruturadas em conflitos primários e oposições simplistas, histórias previsíveis e arrastadas, manipuladoras. Falhei muito?
ELE: Nem por isso. Mas o mais irritante é a previsibilidade. Um gajo vê cinco minutos daquilo e adivinha de imediato como tudo vai acabar, passados nove meses. E sabes o que é mais ridículo? Mesmo que ela não conseguisse prever quem morre e quem casa, quem é pai e quem é irmão, não haveria problema; sabes porquê?
EU: Porquê?
ELE: Porque antes de ver, lê tudo na porcaria das revistas. Já sabe o que vai acontecer, porque é fácil adivinhar e porque leu, e mesmo assim vê aquilo tudo, com prazer e ansiedade, como se estivesse a assistir a algo verdadeiramente inesperado e importante.
EU: Estás a dar-me razão.
ELE: Estou?
EU: Estás a confirmar aquilo que te dizia. Ela olha para aquilo de maneira diferente, vê algo muito diferente do que tu vês.
ELE: Mas que vê ela, afinal?
EU: Já experimentaste perguntar-lhe?
ELE: Já.
EU: E que respondeu ela?
ELE: Encolheu os ombros.
EU: Mas insististe?
ELE: Nem por isso.
EU: Não insististe?
ELE: Já disse que não, porra.
EU: Eh pá, não percebes muito de mulheres, pois não?
ELE: Vais tu ensinar-me, se calhar.
EU: Talvez devesses ver um bocado de uma telenovela e aprender qualquer coisa sobre mulheres. O básico e assim.
ELE: Ou talvez vá pedir à tua ex-mulher que me ensine uma coisas.
EU: Já pensaste que as telenovelas são metáforas da vida?
ELE: E a dar-lhe. Metáforas e conceitos e filosofias e o catano. Isso é palavreado de quem não sabe o que dizer. Estar para aí a gastar palavras, mais nada.
EU: Foste tu que puxaste a conversa.
ELE: E já me arrependi.
EU: Sabes, esta não liga muito mas a minha primeira mulher gostava de telenovelas, era mais ou menos como a tua. Sabes porquê?
ELE: Não. Porquê?
EU: Precisamente por causa daquilo que te estava a dizer.
ELE: O quê?
EU: Aquilo das telenovelas serem metáforas da vida.
ELE: E como sabes que era por isso que ela via telenovelas?
EU: Perguntei-lhe.
ELE: E ela respondeu? Disse, naquela voz de fumadora dela: gosto de telenovelas porque são metáforas da vida.
EU: Mais ou menos.
ELE: Suponho que te explicou que porra quer isso dizer.
EU: Não. Não foi preciso.
ELE: Não foi preciso? Tão esperto que o meu amigo é, percebe logo tudo. Ou já tinhas tirado o curso por correspondência?
EU: As telenovelas são previsíveis e repetitivas, repletas de momentos desnecessários e supérfluos, de ilusões e equívocos, são entediantes, enganadoras, são lineares, são incoerentes, são deterministas e circulares, são… Bom, resumindo são muito parecidas com a vida, ou pelo menos com uma certa visão que muita gente tem da vida, são retratos condensados e estilizados da vida comum, da vida de todos nós. Aquelas personagens somos nós, estás a ver?, aquelas histórias são as nossas vidas.
ELE: Falas tanto e não dizes nada. Repara que estou a dizer isto com um sorriso. Mas estou a dizê-lo. E se não mudas de disco, vou repeti-lo.
EU: Acho que foi algo do género que a minha ex quis dizer com a história da metáfora. Que via telenovelas porque se identificava com elas… Ou melhor, porque se identificava nelas. Via-as para se confrontar com a sua própria vida, para redimensionar a sua própria telenovela privada, para projectar a sua vidinha num contexto mais amplo, mais abrangente, mais clarificador.
ELE: Hum hum.
EU: Ou talvez tivesse esperança de ser surpreendida pelas telenovelas que via, uma esperança secreta de que apesar da previsibilidade e repetição dos argumentos, apesar das revelações que lia nas revistas, acabasse por assistir a qualquer coisa inesperada, a um desenlace surpreendente ou um rumo imprevisto ou um acontecimento inexplicável. Porque se isso acontecesse, e lembra-te que na perspectiva dela as telenovelas são imitações da vida quotidiana, talvez houvesse esperança de algo semelhante ocorrer na sua vida, uma surpresa qualquer que perturbasse a rotina dos dias, que lhe mudasse o destino.
ELE: Já viste, um gajo faz um comentário qualquer, só para fazer conversa e tal, uma perguntazinha inocente ou assim, e acabas sempre a falar de ti, nunca falha, pões-te logo com teorias e desculpas e tretas.
EU: É capaz de ser verdade.
ELE: E sabes que mais? Isso irrita, foda-se, nem imaginas o que irrita. Aliás, de certeza que foi por isso que ela se divorciou de ti. De certezinha.
EU: Divorciou-se porque percebeu que estava a viver na telenovela errada. E a tua mulher, pelo que contas, deve estar quase a perceber o mesmo.
ELE: Não digas isso nem a brincar.
EU: Ok, não digo. Mas que queres que te diga, afinal?
ELE: Tudo menos isso.
EU: Olha, acho que já percebi o que queres. Queres que te assegure que, na verdade, as telenovelas são apenas entretenimentos simplistas para alienar as pessoas, para distraí-las das coisas mesmo importantes como a crise e assim. O ópio do povo e tal. É isso, não é? Tal e qual a história do pai natal que contei ao meu filho; olha que ele acreditou, ainda acredita, e isto é mais ou menos igual. Ou não é? Porque eu consigo ser bastante convincente a contar histórias da carochinha; apesar de saber que o segredo é apenas contá-las a quem está predisposto a acreditar nelas, a quem precisa de acreditar nelas. Voltemos ao princípio, então. Como é que perguntaste, no início da conversa? Qual é o fascínio dela pela merda das telenovelas, não foi? Ou algo do género. Bom, eu respondo. Respondo-te assim. Deixa-a lá, não te preocupes com isso, é apenas uma forma de fuga e descompressão, uma forma ingénua e inofensiva de aliviar o stress do quotidiano e tal. Ok? Então vamos embora, que se faz tarde.

Coisas que me contam no consultório # 01

No outro dia fomos jantar naquele restaurante novo que abriu junto ao rio, eu e a minha mulher; tínhamos voltado a discutir por causa da universidade do miúdo e, talvez por isso, estávamos um pouco mais silenciosos do que o normal, mais distantes e rancorosos, mais isolados; sabe como é. Talvez tenhamos ido ao restaurante apenas para não ficarmos os dois em casa, silenciosos e agastados, acumulando ressentimentos e desviando propositadamente os olhares, calculámos – separadamente – que talvez fosse mais seguro estar em público, rodeados de gente, para não cedermos à tentação de nos agredirmos, para não cedermos à tentação fácil de provocar uma reacção do outro, forçando-o a fazer qualquer coisa má apenas para depois o podermos acusar de ter feito essa coisa má. Bom, a verdade é que não sei bem porquê mas lá fomos. Lá estávamos. E então, como precisava de me distrair um pouco, tal como o senhor doutor diz, não é?, procurar focos de interesse que permitam aliviar a tensão latente e isso, comecei a fazer o que costumo fazer algumas vezes, que é olhar para as pessoas, observá-las e estudá-las, espiar um pouco. Já falámos sobre isso, lembra-se? Nada de novo, portanto. Bom, acontece que acabei por reparar num casal que estava na mesa ao lado. Mais jovens do que nós, no início dos trinta; gente com bom gosto; bonita, ela. Lá estavam, caladinhos, ainda mais apáticos e distantes do que nós, como se nem se conhecessem, como se fossem dois desconhecidos que tivessem sido forçados a partilhar uma mesa; era o que pareciam, dois anónimos surpreendidos numa situação constrangedora. E afinal, talvez tenha sido por isso que concentrei a minha atenção neles, por intuir que enquanto casal estavam ainda em pior estado do que nós. Ele olhava para a televisão, absorto e inerte, talvez um pouco esquecido do local onde se encontrava, quase agindo como se estivesse sozinho em casa, estendido no sofá à espera que o sono chegasse ou o tempo passasse, o que calhasse acontecer primeiro. E ela comia devagarinho, o garfo na mão direita, levando espaçadamente pequenos pedaços de comida à boca; tal e qual uma criança contrariada, uma criança aborrecida; uma criança de castigo, foi o que pensei: olha, esta age como se o casamento fosse um castigo. Claro que não faço ideia por que motivo concluí que se tratava de um casal, talvez nem fosse, poderia ser um primeiro encontro, ou um blind date, ou outra coisa qualquer, sei lá eu, mas também não importa. Parti do princípio que eram casados e fui espiando. Bom, foi então que, por acaso, foi mesmo por acaso, reparei que ela tinha a mão, a outra mão, entre as pernas, ali esquecida e arrumadinha, como se estivesse a aquecê-la ou assim; ou como se estivesse a escondê-la, a protegê-la, não sei bem; percebe? Uma coisa banal e irrelevante, sem interesse; mas logo depois notei que, por vezes, ela movia a mão de uma forma que me chamou a atenção: discretamente mas com intenção, sabe? Não era uma acção distraída e inconsciente, havia intenção. Como se estivesse a acariciar-se, percebe? Propositadamente e em público, em frente do namorado ou do marido ou lá o que era. A mão entre as coxas, ali mesmo junto do sexo, está a ver? Não que fosse um toque descaradamente sexual, uma espécie de tentativa de masturbação em público ou assim, não é isso que estou a dizer, mas também não se tratava de um simples toque ocasional e inócuo, inofensivo. Isso, não era; e sabe porquê? Porque sempre que o fazia, sempre que se tocava, apenas as calças justas a separar os dedos e o sexo, desculpe por falar assim, ela olhava o marido; olhava-o, como se estivesse a desafiá-lo; ainda pensei que seria para o vigiar, para se certificar que ele não a surpreendia, tal como uma criança vigia o pai para perceber se ele já notou que está a dar comida ao gato aninhado ali ao lado da cadeira, mas depois percebi que era mesmo desafio, talvez até provocação; como se pretendesse ser surpreendida, talvez forçá-lo a quebrar a indiferença, a reagir; a regressar ao restaurante. Fui assistindo, levemente excitado, já lhe disse que ela era uma mulher bonita; sentia-me um pouco envergonhado mas continuava a espiar, deixando-me seduzir por aquele pequeno drama um pouco pateta, talvez até imaginado, quem sabe?, podia ser tudo imaginação minha. Fui espreitando, esquecendo-me das minhas circunstâncias, do local onde me encontrava, do que devia estar a fazer ou a dizer. Fugindo de mim e dos meus problemas, tentando entrar um pouco à força num mundo diferente, desconhecido e cativante, novo. É sempre assim, não é senhor doutor?, temos aversão ao vazio, precisamos é de ocupar o cérebro com qualquer coisa; e é sempre mais fácil distrairmo-nos com os problemas dos outros do que dar atenção aos nossos, vale tudo desde que não pensemos nos nossos dramazinhos, se não fosse assim não precisávamos de psiquiatras para nada, não acha senhor doutor? Enfim. Não sei quanto tempo durou este devaneio mas, de repente, a minha mulher falou, apanhando-me desprevenido, foi quase um susto, tinha esquecido completamente que ela estava mesmo ali à minha frente; ouvi-a e vi-a e voltei subitamente a tomar consciência do seu perfume, assim de repente. Regressei. Perguntou-me se o bacalhau não me parecia um pouco salgado. Uma banalidade completa, está a ver?, mas sabe melhor do que eu como os casais gastam as coisas relevantes que têm a dizer entre si logo no primeiro ano de casamento, depois limitam-se a ir repetindo fórmulas, numa tentativa por vezes desesperada de encontrar novas formas de dizer as mesmas coisas, que de qualquer modo vão perdendo a relevância por já terem sido tão repetidas, foram-se esvaziando devagarinho; e o resto, são insignificâncias que se vão dizendo apenas para preencher o silêncio ou para dar sinal de vida. Coisas como aquilo do bacalhau, que ela me perguntou assim de repente. Disse que sim, forçando-me a regressar à minha realidade, à minha mesa; ela respondeu que não comia um bacalhau decente há décadas, eu disse que não estava assim tão mau, ela não soube como continuar a conversa. Ficámos a olhar para os pratos, para o bacalhau. À espera de qualquer coisa que pudesse acontecer, é um bocado triste quando uma pessoa se habitua a esperar que as coisas aconteçam, quando desiste de provocar e controlar os acontecimentos. É triste mas é mesmo assim, paciência. Mas olhe que foi bom termos conversado sobre o bacalhau, se é que aquilo se pode qualificar como uma conversa, foi um sinal de que tínhamos esquecido a zanga, um sinal de que era altura de seguir em frente. Como vê, até as conversas mais indigentes têm a sua utilidade, o que é certamente um consolo para os idiotas. Não se ria, é mesmo assim. A apatia lá foi caindo suavemente sobre nós, na realidade não chegara a dissipar-se verdadeiramente, não é? Talvez nunca chegue a dissipar-se, sei lá eu. Tudo como antes, mais ou menos. Os minutos a arrastarem-se e o olhar a fugir-me para a mesa do lado. Lá estava ela, a mãozinha entre as pernas. Deixei-me estar a olhar. Depois, espreitei a minha mulher, apenas para conferir que não me espiava; vi a expressão reflectiva e distante, pensei maldosamente que talvez ainda estivesse a pensar no bacalhau, mas que sei eu do que pensa ela, afinal? Contudo, houve algo nessa expressão que me fez deter o olhar e me impediu de regressar à mesa do lado; havia no seu rosto, no seu olhar, um halo, gosto desta palavra, senhor doutor, foi a minha mãe que ma ensinou, um halo de distância e de apatia, de desinteresse, que me incomodou de uma forma especialmente desconfortável. Sabe porquê? Porque compreendi, assim de súbito, numa daquelas epifanias de que falam nos filmes, que era uma expressão muito semelhante à da mulher da mesa do lado; mesmo muito semelhante. Igualzinha, para dizer a verdade. E então, logo de seguida, veio a dúvida, uma dúvida atroz: será que a minha mulher já fez algo semelhante? Algo tão… como dizer? Desesperado, talvez seja a palavra. Desesperado. Percebe, doutor? E se ela estivesse a fazer precisamente a mesma coisa naquele momento, lá do outro lado da mesa? Ou algo do género, um qualquer disparate típico de gente desesperada. Como um garoto que rouba fruta apenas para chamar a atenção dos pais, porque o castigo que possa sofrer sempre é melhor que o desinteresse; não me saía esta ideia da cabeça, um garoto a roubar fruta. Talvez me consiga explicar o significado desta ideia em concreto, senhor doutor; ou, se calhar, não tem significado nenhum, é apenas uma ideia. Somos todos um pouco como os garotos, não acha? Ou, na verdade, nunca deixamos de ser garotos? Não interessa. O que importa é que percebi, assim de repente, que é a maneira como se percebem as coisas importantes, sabemos que algo é importante apenas porque percebemos o seu significado ou impacto de repente, caso contrário não seria importante, não sei se concorda, e… e perdi-me, desculpe senhor doutor. Ora bem, o que estava a querer dizer é que percebi, de repente, como lhe estava a explicar, o quanto estávamos afastados, eu e a minha mulher, o quanto aprendêramos a desconhecer-nos; percebi como havia muito pouco a ligar-nos, a aproximar-nos, a unir-nos. Nada em comum, na verdade; nem o bacalhau, já reparou? Nenhum interesse em saber do outro, em olhar para o outro. Percebe onde quero chegar, senhor doutor? É que, na verdade, se ela estivesse a fazer qualquer coisa, fosse o que fosse, algo semelhante ao que estava a fazer a mulher da mesa do lado, isso pouco me importaria. Pouco, nada. Mesmo nada, nadinha. Por isso, diga-me lá: acha que fiz mal em avançar assim de repente para o divórcio? Bom, de repente não foi, há quem diga que é no dia do casamento que se começa a preparar o divórcio e não sou eu que vou discordar. Mas a verdade é que… Bom, a verdade é que durante um bocado ainda pensei que talvez fosse melhor seguir o sentido oposto; não sei porquê mas pensei nisso; sei lá… levá-la numa viagem qualquer, por exemplo; uma coisa romântica tipo segunda lua de mel, está a ver?, passear de mãos dadas e abraçá-la e tal, fazê-la sentir-se amada ou pelo menos desejada, ou pelo menos ouvida, sorrir-lhe e fazê-la sorrir, beijá-la em público, oferecer-lhe uma pulseira que ela tivesse espreitado numa montra, dividir um jornal na esplanada do hotel e sei lá que mais; disparates que os rapazes de vinte anos fazem quando julgam que estão apaixonados; está a perceber, doutor? Confesso que ainda pensei nisso, admito que sim, pensei. Mas olhe lá, deixe-me perguntar-lhe isto: parece-lhe que eu ainda tenha idade para romantismos? É que eu acho que não tenho.

# 68: Ok

ELA: Sabes, desculpa falar nisto mas gostava de te pedir um favor.
ELE: O quê?
ELA: Gostava que dissesses que me amas. Que olhasses para mim e dissesses: amo-te. Só uma vez, chegava.
ELE: Mas eu não te amo. Sabes isso.
ELA: Sei. Mas podias dizê-lo na mesma. Não podias?
ELE: Suponho que sim.
(Pausa.)
ELA: Não ficaste aborrecido, pois não?
ELE: Claro que não.
ELA: Não queria aborrecer-te.
ELE: Eu sei. Mas deixaste-me pensativo.
ELA: Desculpa.
ELE: Não faz mal.
(Pausa.)
ELA: Continuas pensativo.
ELE: Sim, estava a pensar que tens razão, que poderia perfeitamente olhar para ti e dizer que te amo.
ELA: Apesar de não o sentires.
ELE: Sim. Mas não é isso que importa. O que conta é que poderia dizê-lo.
ELA: Um favor que me fazias.
ELE: Não seria propriamente um sacrifício ou assim.
ELA: Não quero que faças sacrifícios.
ELE: Não, claro que não seria um sacrifício. Seria uma espécie de presente.
ELA: Como se fosse o nosso aniversário.
ELE: É, mais ou menos isso.
(Pausa.)
ELE: Então, aqui vai.
ELA: Está bem.
ELE: Amo-te.
(Pausa.)
ELA: Obrigado. Obrigado por dizeres.
ELE: Não precisas de agradecer.
(Pausa.)
ELE: E foi bom?
ELA: Ouvir-te dizê-lo? Sim, foi bom. Interessante.
ELE: Ainda bem, fico contente.
ELA: Ok.
ELE: Talvez até possa voltar a fazê-lo. Qualquer dia.
ELA: A sério? Seria simpático.
(Pausa.)
ELE: Mas achas que mudou alguma coisa? Sentes que mudou alguma coisa?
ELA: Penso que não.
ELE: Seria estranho, se tivesse mudado.
ELA: Pois seria. Mesmo estranho.
(Pausa.)
ELA: Mas, apesar de tudo, foi bom.
ELE: Agradável?
ELA: Sim, penso que é o termo adequado. Agradável.
(Pausa.)
ELA: Continuas pensativo?
ELE: Engraçado, de repente comecei a imaginar que se o dissesse mais vezes, se o fosse repetindo uma e outra vez, talvez começasse a acreditar.
ELA: Acreditar? Que queres dizer? Estás a falar de quê?
ELE: Estou a falar de dizer que te amo. Estranho, não é? Afinal, é só uma palavra. Mas poderia ir repetindo e repetindo e, quem sabe, talvez começasse a acreditar.
ELA: Achas?
ELE: Não sei, estava só a pensar nisso.
ELA: É um pensamento estranho.
ELE: Eu sei.
ELA: Mas bonito.
(Pausa.)
ELE: Sabes o que é ainda mais estranho?
ELA: O quê?
ELE: Vais rir.
ELA: Prometo que não.
ELE: Bom, levei o pensamento mais longe, até às últimas consequências.
ELA: Que queres dizer?
ELE: Estava a pensar que se acreditasse nisso, se o repetisse tanta vez que começasse a acreditar que te amo…
ELA: Sim?
ELE: Talvez começasse a senti-lo.
ELA: Senti-lo?
ELE: Sim, senti-lo. Sentir que te amo.
ELA: Amar-me mesmo? É o que estás a dizer?
ELE: Suponho que sim.
(Pausa.)
ELA: Acho que ia gostar disso.
ELE: Imaginei que sim.
ELA: Seria agradável.
ELE: Estava a pensar que poderia ser interessante experimentar. Depois deste tempo todo, tentar algo novo, algo diferente.
ELA: Sim, acho que devíamos tentar. Devíamos mesmo. Se quiseres, é claro.
ELE: Quero.
(Pausa.)
ELA: Como viste, não ri.
ELE: Pois não.
(Pausa.)
ELE: Vamos então experimentar?
ELA: Sim.
ELE: Nem que seja apenas para nos distrairmos um bocado e tal.
ELA: Para não nos aborrecermos tanto.
ELE: Isso.
(Pausa.)
ELE: Aqui vai, então.
ELA: Está bem.
ELE: Amo-te.
ELA: Ok.
(Pausa.)
ELA: Se calhar é um bocado com dizia um filósofo.
ELE: Qual?
ELA: Não me lembro, acho que era um alemão qualquer.
ELE: E que dizia ele?
ELA: Dizia que o que conta não é tanto a verdade ou os factos mas a forma como se fala dessa verdade ou desses factos.
ELE: Isso é um bocado esquisito.
ELA: Se calhar estou a fazer confusão. Mas tenho a certeza que houve alguém que defendia que o conteúdo do que é dito depende da forma como é enunciado.
ELE: Queres dizer que isso se pode aplicar ao nosso caso?
ELA: Um pouco, talvez.
(Pausa.)
ELE: Aparentemente, somos pessoas filosóficas. Quem diria.
ELA: Ninguém.
(Pausa.)
ELA: Quanto tempo achas que vai demorar?
ELE: Não faço ideia. Afinal, é só uma experiência, pode nem sequer resultar.
ELA: Sim, é verdade. Não devemos apressar a ciência.
ELE: Ciência?
ELA: Claro. Especulaste uma teoria e agora vais testá-la; é ciência pura.
ELE: Tens razão.
ELA: E a ciência, sabes como é. É científica. Implica paciência e perseverança e mais não sei quê.
ELE: É um pouco como o amor, não achas?
ELA: Sim, parece-me uma boa comparação.
ELE: Talvez o amor seja simples ciência.
ELA: Teorias e experimentações e assim?
ELE: Algo do género.
ELA: Talvez.
(Pausa.)
ELA: Nesse caso, no amor existe muita margem para o erro. Não é? Experiências que falham e isso.
ELE: É inevitável.
ELA: E connosco?
ELE: Que queres dizer?
ELA: A experiência não tem corrido mal, pois não?
ELE: Parece-me que não.
ELA: Também penso que não.
(Pausa.)
ELE: Filosóficos e científicos. Parecemos o casal perfeito.
ELA: É verdade.
ELE: Apesar de não nos amarmos.
ELA: Pois não.
ELE: Quase perfeitos, então.
ELA: É.
(Pausa.)
ELE: Achas que já posso dizê-lo novamente?
ELA: Penso que sim.
ELE: Muito bem, aqui vai.
ELA: Estou pronta.
ELE: Amo-te.
ELA: Ok.
ELE: Continua a ser agradável para ti?
ELA: Mais ou menos.
ELE: Ainda bem.
(Pausa.)
ELE: Há pouco, falaste de aniversário.
ELA: Sim.
ELE: Quando é o nosso aniversário, afinal?
ELA: Na verdade, não sei.
ELE: Não?
ELA: Não. Isso desagrada-te? Que eu não saiba.
ELE: Claro que não. De todo.
ELA: Mas ficaste surpreendido.
ELE: Um pouco. Não sei bem porquê.
ELA: Decepcionado.
ELE: Não, claro que não. Acredita que não fiquei.
ELA: Tens a certeza?
ELE: Tenho.
ELA: Ok.
(Pausa.)
ELA: Voltando à experiência.
ELE: Sim.
ELA: E tu, já começaste a sentir alguma diferença?
ELE: A acreditar, é o que queres dizer? A acreditar que te amo?
ELA: Sim.
ELE: Penso que é muito cedo.
ELA: Também pensei o mesmo, era só para ter a certeza.
ELE: Fizeste bem. Gosto que tenhas perguntado.
ELA: Por vezes, penso que estamos de tal forma em sintonia que nem precisaríamos de falar para nos entendermos.
ELE: Sim, também já senti isso.
ELA: E é bom.
ELE: Pois é.
ELA: Tanta gente que se ouve por aí, casais e isso, com conversas irrelevantes. Falam e falam e falam mas não dizem nada. Não se entendem, vê-se logo que estão apenas a falar para si próprios.
ELE: Sim, é um pouco irritante. Ou triste, conforme as situações.
ELA: Pessoas que não têm mesmo noção da figurinha que fazem.
ELE: Pois não.
(Pausa.)
ELA: Mas nós não somos assim.
ELE: Claro que não.
ELA: Filosóficos e científicos.
ELE: Isso mesmo.
(Pausa.)
ELA: Estou a ficar aborrecida.
ELE: Sim? E que te apetece fazer?
ELA: Não sei. Talvez foder um bocado?
ELE: Foder?
ELA: Só para distrair.
ELE: Ok.
ELA: Ok?
ELE: Ok.

# 66: Bimby

1.
Quando chega a casa, ele senta-se no sofá e liga a televisão; vê o final do Portugal em Directo (por causa da meteorologia; mas, na verdade, que lhe importa que chova ou não?), o Preço Certo de princípio ao fim e o início do Telejornal, enquanto a ouve na cozinha a caminhar de um lado para o outro, pegando nisto e largando aquilo, ligando e desligando máquinas, suspirando uma e outra vez. Não gosta particularmente dos programas que vê, muitas vezes nem sequer está muito atento à televisão, mas uma apatia profunda e paralisante invade-o mal entra em casa e impede-o de se erguer do sofá para fazer seja o que for (apesar de ter consciência de que qualquer coisa que se lembre de fazer será sempre mais útil e recompensadora do que aquilo, do que aquela prostração), força-o a manter-se ali, silencioso e inconsciente, desligado, como se precisasse da televisão para se distrair momentaneamente da trivialidade da sua vida, do dia de trabalho que terminara e que se repetiria com exactidão no dia seguinte, e no próximo, indefinidamente.
Mas o que lhe custa mais, o que lhe corrói a consciência e perturba a lassidão habitual, é a permanência constante dela na cozinha, como se fosse prisioneira daquelas quatro paredes, escrava daqueles utensílios; não percebe nem vislumbra o que faz ela durante tanto tempo na cozinha (na verdade, nunca lhe perguntara; mas que poderá ela lá fazer, se não cozinhar?), não percebe por que motivo não lhe faz companhia na sala, partilhando a televisão consigo ou lendo uma revista ou simplesmente estando lá – a possibilidade de ser ele a fazer-lhe companhia na cozinha sempre lhe parecera imprudente e arriscada: e se ela reagisse com desagrado à sua presença, ou mesmo com indiferença?
Não sente propriamente ciúmes da cozinha, apesar de por vezes suspeitar (e sabe que este é um pensamento muito, muito palerma) que não tem grandes hipóteses de concorrer com a diversidade e versatilidade de ofertas de que ela pode usufruir naquele espaço (que tem ele, afinal, para oferecer à mulher que ama – ama? –, além da sua presença silenciosa e apática, do seu toque ocasional e displicente, do seu sorriso forçado? Até a Bimby, por exemplo, poderá oferecer muito mais do que isso, muito mais); mas intui que aquela presença ostensiva na cozinha, conciliada com a sua própria presença ostensiva no sofá, simboliza de modo incisivo e clarividente o crescente afastamento a que estão condenados, como se com a passagem dos anos deixassem de ter o que dizer ao outro (ou, pior: perdessem a vontade de dizer fosse o que fosse ao outro), restando apenas o silêncio e a solidão a uni-los.
Ela trouxe o jantar para a sala quando ia o telejornal na quarta notícia e agora jantam em silêncio, olhando com indiferença para a televisão; o noticiário não anuncia nada que mereça ser comentado ou discutido, não lhes proporciona nenhum pretexto para quebrarem o silêncio. Limitam-se a mastigar e pestanejar, mecanicamente, como se fossem duas Bimbys ocupadas na elaboração de um empadão, competindo para terminar em primeiro lugar. Nunca lhe ocorrera que ela pudesse detestar a sua cozinha e que todo o tempo que lá passa, fingindo-se ocupada, sirva apenas para não ser forçada – forçada? – a estar com ele (seria possível tamanha dissimulação?, perguntar-se-ia ele, sem perceber que o seu próprio interesse fingido na televisão representa igual grau de hipocrisia), sirva apenas para se proteger dele – porque, afinal, a cozinha não é uma prisão mas um refúgio; nunca lhe ocorrera que ela lá permanecesse, junto da sua ruidosa e multifuncional Bimby, apenas para evitar a sua companhia, para não o ver nem ouvir, para não ser constrangida a falar-lhe porque não tinha nada, absolutamente nada, para lhe dizer. Nunca lhe ocorrera; mas quando ocorresse (e iria certamente ocorrer, num qualquer fim de tarde, enquanto tentava adivinhar o valor da montra final do Preço Certo e o apito da Bimby inundasse subitamente a casa), era muito provável que continuasse sentado no seu sofá, a olhar para a televisão sem verdadeiramente ver ou ouvir e à espera que acontecesse o que tivesse de acontecer.

2.
Enquanto transporta a louça suja para a cozinha, ela questiona-se se, agora que chega o momento de cumprir uma vez mais a tradição de comemorar o aniversário do casamento – o décimo sétimo – com um jantar teoricamente romântico num qualquer restaurante absurdamente caro, não será a altura ideal para olhá-lo nos olhos e formular a única questão que precisa de ser formulada e que anda a mastigar há demasiado tempo: há quanto tempo terminou o nosso casamento?
Está ainda a pensar nisto, perguntando-se se alguma vez terá coragem de o fazer, quando o ouve levantar-se do sofá e caminhar com vagar pela sala, como se hesitasse na direcção a tomar; pensa que irá à casa de banho mas, afinal, entra na cozinha e dá uma voltinha por ali, confuso e embaraçado, parando finalmente em frente do armariozinho onde se encontra a Bimby; e, incapaz de a olhar directamente (há quanto tempo não se olham directamente?), pergunta: para que serve esta maquineta, afinal? Ela estranha a sua presença, a sua pergunta, o seu interesse; e não sabe como reagir. Apenas passados muitos segundos, quando o silêncio se tornara atroz (mais atroz do que o habitual), consegue responder: serve para tudo; e após uma ligeira hesitação, começa a concretizar a sua resposta, detalhando as utilidades da máquina com uma vaga irritação e contrariedade na voz mas, logo depois, com crescente entusiasmo e surpresa, ao perceber que ele a ouve com aparente interesse, com vontade, com atenção. Agradada por constatar que ele não só formulara uma pergunta como ouvia a resposta: fizera um esforço, tentara, tomara uma iniciativa, levantara-se do sofá; está ali, à sua frente, olhando-a e escutando-a, quem sabe se à beira de um sorriso.
E enquanto fala (enquanto se ouve falar), há uma ideia disparatada, de uma irracionalidade e absurdez sem limite mas de certo modo irresistível, que lhe baila na cabeça: talvez algum do sucesso comercial da Bimby resida na sua capacidade oculta de adiar o fim (salvar seria demasiado) de alguns casamentos. Sorri, surpreendida com a frivolidade da ideia – na verdade, surpreendida com a frivolidade do seu comportamento; e irritada com o facto de se contentar com tão pouco, com uma simples migalha de tempo, de atenção – e continua a tagarelar, sabendo que acabará por chegar o momento em que não haverá nada mais a dizer, o momento em que tudo voltará ao que foi, ao que sempre será.

# 65: Supositórios

(As duas mulheres estão sentadas na única mesa ocupada de uma pequena pastelaria.)
MULHER (irritada): Não vou voltar à psiquiatra.
AMIGA (desatenta): Porquê? Estás curada?
MULHER: Não gozes.
AMIGA (sem verdadeiro interesse): A sério, não voltas porquê?
MULHER (contrariada): Aconteceu uma coisa esquisita, não percebi bem. Mas senti-me desconfortável.
AMIGA (levemente curiosa): Mas que te disse ela?
MULHER: Não foi nada que ela disse.
AMIGA: Então?
MULHER (num tom embaraçado): Dei com ela a olhar para mim com uma expressão esquisita.
AMIGA (curiosa): Esquisita, como?
MULHER (num tom desagradado): A olhar-me para as pernas. Com interesse, sabes?
AMIGA (espantada): Com interesse?
MULHER (irritada): Não te faças de parva.
AMIGA (tom agastado): Bom, realmente não é hábito presenteares o mundo com esse espectáculo de pernas, sempre escondidinhas nas calças, guardadas não sei para quem. Se calhar, apanhaste-a de surpresa e ela pôs-se a olhar.
MULHER (irritada; tentando não rir): Vai-te lixar. (Empertiga-se e tenta puxar a saia para baixo, protegendo-se.)
AMIGA: Ou achas que é lésbica?
MULHER: Sei lá eu.
AMIGA (provocadora): Estará interessada?
MULHER (peremptória): Não sei nem quero saber. É por isso que não regresso lá.
AMIGA: Conta-me lá como é essa tua psiquiatra, afinal. É gira?
MULHER (distraída): Nem por isso. Deve ser uns dez anos mais velha que nós. Muito formal, sempre impecável. (Pega na chávena de café vazia e brinca com ela, com gestos ligeiramente ansiosos.)
AMIGA: Mas é daquelas armadas em homem, todas tesas e assim?
MULHER: Não. É uma mulher normal. Nem gira nem feia. Passas por ela na rua e não reparas.
AMIGA (encolhendo os ombros): Banal.
MULHER: Como a maioria.
AMIGA (séria, realmente interessada): É simpática? Ri-se?
MULHER: Para mim, é sempre uma psiquiatra a dar consulta. Não a consigo imaginar de outra forma.
AMIGA (insistente): Mas parece-te uma mulher feliz? Triste? Aborrecida? Frustrada? Estimulante? Mal fodida?
MULHER (desgostosa): Estou tão arrependida de te falar disto.
AMIGA (tom firme e irritado): A sério. A mulher também lá deve ter os problemas dela, não? Está para ali todo o dia a aturar as merdas dos outros mas não consegue esquecer-se das suas próprias merdas. Que as há-de ter, não?
MULHER (desinteressada): Isso é lá com ela.
AMIGA (incisiva): Mas tu pegas nos teus problemazinhos e vais lá ver se ela te arranja um supositório para a mente. Um aliviozinho. Mas e ela, onde pode ir? Onde vão os psiquiatras que têm problemas? Com quem falam?
MULHER (tentando não se irritar): Com outros psiquiatras.
AMIGA (irónica): Achas?
MULHER (conclusiva): Acho. Ou se calhar, não falam com ninguém. Não precisam.
AMIGA (contrariada): Não precisam?
MULHER (num tom fingidamente paciente): Se conseguem dar supositórios aos outros também podem arranjar alguns para si próprios. (Concentra-se na chávena que tem nas mãos.)
AMIGA (pensativa): Isso é verdade. Anda tudo à procura de supositórios, já reparaste? É esse o mal. Em vez de se porem a pensar um bocado e tentarem compor as coisas, em vez de se analisarem, de se colocarem em questão, as pessoas preferem que alguém lhes dê soluções padronizadas e instantâneas.
(A Mulher larga a chávena e olha a Amiga, surpreendida.)
MULHER (exasperada): Hoje estás impossível.
AMIGA (tom provocatório, exagerado; fugindo ao olhar da interlocutora): Ai que o meu marido já não me fode; toma, leva o comprimido azul. Ai que o meu marido só pensa em foder; toma, leva o comprimido amarelo. Ai que o meu marido fode muito depressa; toma, leva o comprimido lilás. Ai que o meu marido quer foder em cima da arca frigorífica e eu tenho medo de a estragar; toma, leva o comprimido vermelho.
MULHER (sorrindo, contrariada): Pára com isso.
AMIGA (séria): Ninguém se põe a pensar porque raio o marido quer foder muito ou não quer foder nada. Tentar compreender. Perguntar. Não, vai-se logo pedir o comprimido.
MULHER (atenciosa): Mas que se passa contigo?
(Agora é a Amiga que pega na sua chávena vazia e a faz rodar entre os dedos, completamente abstraída.)
AMIGA: É como aquela tua colega mal cheirosa. Em vez de se lavar mais vezes, põe desodorizante; e é claro que assim não resolve nada, apenas disfarça, apenas adia. Mas é o mesmo por todo o lado, com toda a gente. (Pausa breve.) Andamos para aqui todos cheios de camadas de desodorizantes, a mamar supositórios de todas as cores, mas o cheiro a merda não desaparece.
MULHER (apreensiva): A sério. Que aconteceu? Conta.
AMIGA (irritada): Queres saber o que aconteceu?
MULHER (firme): Quero.
AMIGA (desgostosa): Pois olha que nem eu sei bem o que aconteceu.
MULHER: Contas-me ou não?
AMIGA (cansada): Não.
(A Amiga deixa que a chávena lhe escorregue dos dedos e rebole pela mesa, provocando um ruído inesperado; ambas olham a chávena, como se esperassem que caísse ao chão.)
MULHER: Regressaste da loja sem comprar nada e desististe de ir à cabeleireira, assim de repente. E pões-te para aí com essa palermice de comprimidos e desodorizantes. Só pode ter acontecido uma desgraça qualquer.
AMIGA (indiferente): Deixa lá. Fala-me da tua psiquiatra.
MULHER: Conta, porra.
(A Amiga levanta-se e desaparece; regressa muito tempo depois, com dois copos; pousa-os na mesa e bebe. A Mulher olha-a, atenta.)
AMIGA (num tom de voz algo apreensivo, quase assustado): Sabes quem encontrei quando ia a sair da cabeleireira?
MULHER (neutra): Não faço ideia.
AMIGA (contendo a revolta): O meu ex.
MULHER (surpreendida): Não.
AMIGA (abatida): É verdade.
MULHER: Então, voltou à cidade?
AMIGA (desgostosa): Parece que sim.
MULHER: Quem viu quem, primeiro?
AMIGA (contrariada): Foi ele. Pôs-se a chamar por mim, ali no meio do centro comercial. E eu toda confusa, a reconhecer a voz mas sem conseguir identificá-la.
MULHER (solidária): E depois?
AMIGA (tom triste, como se se sentisse miserável): Fico para ali meio aparvalhada, não sei bem porquê. Completamente apanhada de surpresa. E ele com sorrisinhos, a perguntar-me como tenho passado, a dizer que estou com bom aspecto e mais não sei quê.
MULHER (solidária): E tu?
AMIGA: Com vontade de fugir. Atrapalhada mas sem perceber por que motivo. Com medo não sei de quê.
(A Amiga pegou num guardanapo e está a dobrá-lo meticulosamente. A Mulher olha para as mãos dela, para o guardanapo que vai desaparecendo.)
MULHER: Mas não disseste nada?
AMIGA (forçando um sorriso, desgostosa): Nada. E então ele convida-me para tomar um café.
MULHER (incrédula): E tu aceitaste.
AMIGA (embaraçada): Lá vamos nós, de repente sem nada para dizer, meio embaraçados. Sentamo-nos na mesa mais afastada do primeiro cafezinho que encontramos. E ficamos ali a olhar para as mãos, à espera não sei de quê. Como o raio de um par de namorados.
MULHER: Mas porque não o despachaste logo?
(Agora é a Mulher que pega um guardanapo e o dobra, devagarinho.)
AMIGA (confusa): Sei lá. Porque não consegui. Porque não quis.
MULHER: E que queria ele? Chateou-te?
AMIGA: Não. (Pegando distraidamente num guardanapo e dobrando.) Foi muito civilizado. Falou do novo trabalho e das viagens e dos colegas e dos desafios. Depois, confessou que já se separou da minha substituta.
MULHER (surpreendida): A sério?
AMIGA (tom desdenhoso): Parece que sim. Explicou detalhadamente o que correu mal; tudo culpa dela, como é óbvio. (Pausa breve.) E então, muito tempo depois, percebeu que tinha estado todo o tempo a falar de si próprio. E quis saber de mim.
MULHER: E tu, que disseste?
AMIGA (irritada): Disse-lhe que me despedi e que tenho andado por aí a viajar que nem uma doida. Que me farto de comprar roupa e foder com homens mais novos. Que tenho a maior colecção de sapatos desta parte do país e que por causa disso tive que mudar de casa, que já não tinha espaço para os arrumar.
MULHER (indiferente): Não acredito.
AMIGA (tentando sorrir): Pelo menos, foi o que me apeteceu dizer. Mas limitei-me a encolher os ombros e emborcar meio litro de chá verde.
MULHER (solidária): Este tempo todo depois e ainda não o consegues enfrentar. (Pega num segundo guardanapo e dobra-o meticulosamente.)
AMIGA (tom frio e distante): Estamos divorciados há um ano. Já não há nada a enfrentar.
MULHER: Então porque não reages?
AMIGA (sorrindo): Aí é que te enganas. Reagi.
MULHER (correspondendo ao sorriso): Conta.
(Ambas as mulheres pousam os guardanapos dobrados na mesa; olham o pequeno monte e depois olham-se.)
AMIGA (tom falsamente bem-disposto, irónico): De repente, comecei a perceber as insinuações. Que tinha saudades minhas, que podíamos aproveitar os dias que ele vai ter de passar por cá, que somos os dois jovens e livres.
MULHER (perplexa): Filho da puta.
AMIGA (desgostosa): Convencido que depois da merda que fez, basta chegar aí com o sorrisinho especial e aqui a estúpida vai logo atrás.
MULHER: Mas que disseste?
AMIGA (sorrindo): Disse que também tinha saudades dele.
MULHER (perplexa): O quê?
AMIGA: Disse que precisava de ir tratar de uns assuntos, era só um instantinho. Ele que esperasse ali por mim, que comesse um gelado para ganhar energia. E fugi para aqui. Ainda lá deve estar, à espera.
(A Amiga pego um novo guardanapo; a Mulher olha-a e pouco depois imita-a.)
MULHER (cuidadosa): Mas não te sentiste tentada, pois não?
AMIGA (confusa): Tentada?
MULHER: A regressar ao café.
AMIGA (tom irritado, brutal): Achas que sou como tu?
MULHER (defensiva): Como eu, o quê?
AMIGA (acusatória): Como tu. A ganhar coragem para te divorciares há dois anos. Ou mais.
MULHER (atónita): Cala-te.
(A Mulher atira o guardanapo para cima da mesa, irritada; olha em redor, confusa; como se procurasse uma fuga; tenta acalmar-se.)
AMIGA (tom subitamente indiferente): Eu já sofri tudo o que tinha a sofrer. Posso não saber o que quero mas sei muito bem o que não quero. E uma coisa que não quero é ser o supositório dos outros. Um aliviozinho temporário. Uma distracção. (Sorri, triste; pousa o guardanapo cuidadosamente dobrado e pega de imediato num novo.)
MULHER (magoada): Estás a querer dizer que eu sou um supositório?
AMIGA (neutra): Não. Estou a dizer que andas há dois anos, ou mais, à procura de supositórios.
MULHER (irritada): Não me lixes. Que ganhaste tu com o divórcio? És mais feliz, agora?
AMIGA (após uma hesitação): Incomparavelmente.
MULHER (acusatória): Então porquê esse descontrolo todo, só porque de repente o encontras numa esquina?
AMIGA (fingindo indiferença e desinteresse): Não estou descontrolada.
MULHER (impaciente): Então estás o quê?
AMIGA (subitamente irritada): Danada.
MULHER (espantada): Danada? Porquê?
AMIGA (exasperada): Porquê? Não vês porquê? Por causa da presunção dele. Da arrogância. Da desconsideração. Da sobranceria. Percebes? Porque ele parte do princípio que está tudo bem, que o sofrimento que me causou já não conta para nada; que se pode começar tudo de novo, como se não tivesse havido um casamento que acabou miseravelmente. (Pausa breve. Atira o guardanapo que tinha nas mãos e cruza os braços, como se se quisesse impedir de pegar noutro.) Como se bastasse fazer um sinal e aqui a parvalhona vai logo a correr.
MULHER (tentando aparentar calma): Talvez estejas a interpretar mal. Talvez ele queira apenas.
AMIGA (interrompendo, furiosa): O quê? Foder? Mas se for isso, ainda é pior. Não percebes? É uma instrumentalização completa da relação entre duas pessoas. De mim.
MULHER (correspondendo à irritação; tom arrogante): Qual instrumentalização, qual quê. Chama-se casamento. Tu fazes coisas por mim e eu faço coisas por ti. Tu aturas-me e eu aturo-te. Claro que há momentos maus, momentos em que as vontades e os interesses não coincidem. Claro que há dificuldades em perceber o outro, principalmente quando se deixa de falar, quando se parte do princípio que já se conhece tudo o que há a saber sobre o outro, de tal modo que já não é necessário perguntar. É isso, um casamento. Mas qual é alternativa? Mudar de relação a cada seis meses, mal surja o primeiro indício de monotonia? Ir coleccionando?
AMIGA (agastada): Não sabes o que estás dizer.
MULHER (afrontada): Não sei? Sei é demasiado bem. Não imaginas como sei. Sei que não estou bem, isso pelo menos sei. E não é há dois anos, como dizes. É há mais.
AMIGA (impertinente): Então estás à espera de quê?
MULHER (subitamente cansada): Estou à espera de perceber como funciona isto dos casamentos, da vida. A tentar perceber se viver é como participar numa peça de teatro em que vais seguindo o teu papel, repetindo-o noite após noite, tentando atinar, tentando melhorar, obedecendo ao texto que alguém escreveu, às arbitrariedades de um encenador invisível. Será isso, a vida? (Subitamente desconsolada.) Ou é como aquela coisa que agora toda a gente faz, como se chama? Quando está um tipo sozinho no palco, a dizer graçolas.
AMIGA: Stand up.
MULHER: Isso. Está-se ali sozinho, a improvisar; tem-se umas ideias do que se quer dizer mas o discurso vai variando de acordo com os estímulos do público, de acordo com a própria vontade de se estar ali naquele momento. Não há encenador a mandar isto ou aquilo, não há determinismos nem instrumentalizações. Está-se livre.
AMIGA: Livre para quê?
MULHER: Sei lá. Livre, simplesmente. Não é o que toda a gente quer? Ser livre?
(A Mulher começa distraidamente a recolher todos os guardanapos dobrados que estão em cima da mesa, reunindo-os num montinho.)
AMIGA (tentando aligeirar o diálogo): É disso que falas lá com a tua psiquiatra?
MULHER (indiferente à provocação): Não. É o que penso quando não consigo dormir. Se viver é integrar uma equipa onde cada um sabe o que tem de fazer, sabe quem manda, sabe o que é esperado de si; ou se é estar sozinho em cima do palco e ir improvisando, tentando que os outros não se aborreçam.
AMIGA (sem qualquer provocação): E já chegaste a alguma conclusão?
MULHER (contrariada): Ide chegar, um dia destes.
AMIGA (sorrindo): E depois, que fazes com a tua conclusão?
(A Mulher encolhe os ombros, deixando claro que não irá responder; olha em redor, espreguiçando-se ligeiramente.)
MULHER (forçando um tom aligeirado, bem-disposto): Já reparaste que agora isto está sempre vazio? Vamos mas é dar uma volta. (Começa a levantar-se, perante o olhar indiferente da Amiga.) Onde vamos almoçar? (Arruma a cadeira e olha a Amiga, subitamente impaciente.) Anda lá.
(A Amiga começa a levantar-se, contrariada. Arruma a cadeira sem grande cuidado, embatendo com ela na mesa; ouve-se um ruído metálico, intenso e irritante; alguns dos guardanapos dobrados caem ao chão, esvoaçando ligeiramente, e são distraidamente pisados pelas duas mulheres, que se afastam em silêncio.)

Dão-se livros # 11

Desta vez, os livros seguem para a Marisa, para a Lina e para a Ângela. Obrigado a todos pela participação.

20 de Dezembro de 2005

A 20 de Dezembro de 2005 nasceu a Gaveta; poucos dias antes, o primeiro livro (Gastar Palavras) tinha sido apresentado pelo Pedro Rolo Duarte e pelo Jorge Listopad, ali à beirinha da lareira do Alinhavar; o nascimento do blogue foi planeado nessa mesma noite.
A primeira estória a surgir na Gaveta foi “O Perguntador”, um conto inspirado num quadro de Munch e que mais tarde seria integrado no segundo livro (Os Mundos Separados que Partilhamos). Recoloco-o agora na Gaveta, em nome da nostalgia (só um pouquinho, que já chega de fado) e como agradecimento aos fiéis que ainda se mantêm por perto, desde esse longínquo Dezembro. Obrigado.


O Perguntador

1.
Escondo-me por trás do jornal: como se estivesse perante uma ameaça, como se necessitasse de protecção. Mas não consigo deixar de olhar, de assistir ao seu desfile; caminha entre as mesas com indiferença, senta-se, pousa a enorme pasta; não olha para ninguém, para nada; um rapaz aproxima-se e ela faz o seu pedido sem o olhar; desdobra um jornal, começa a ler. Por vezes, passa a mão pelo cabelo. Lê com atenção, sorri, abana a cabeça, muda a página. Não repara que há um mundo à sua volta; não quer saber do mundo que está à sua volta.
É ela: a mulher por quem estou apaixonado há dez anos. Que não via há dez anos.

2.
Escurece.
O mar está tranquilo, empurrando as ondas com suavidade; ei-las, perante nós: chegam envergonhadas, hesitam durante um momento e deslizam de regresso ao oceano, deixando-nos apenas a memória do seu rumor, do seu suspiro. Mais ninguém na esplanada: só nós. Conversamos devagarinho; tu falas, com entusiasmo; eu tento concentrar-me no que dizes, tento acompanhar-te; tento parecer mais interessante do que realmente sou, cativar-te; invento-me, finjo um pouco; mas a nossa relação é desequilibrada: eu esforço-me para te seduzir, tu já me seduziste completamente. Vais falando e eu permito-me uma distracção: pergunto-me se perceberás o meu entusiasmo, preferindo ignorá-lo. Talvez. Por vezes, parece-me que brincas comigo, que me provocas, que insinuas. E depois recuas, rindo. Enfurecendo-me.
Vais falando mas não te ouço; vou imaginando qual será o sabor da tua pele.

3.
Pousou o jornal e concentra-se no chá. Pergunto-me se esperará alguém. Observo-a e percebo, com alguma surpresa, que apesar de não pensar nela há muito tempo, ainda a desejo, sempre a desejei. Vou reconhecendo os seus gestos, vou permitindo que as recordações cheguem e se instalem, perturbando-me. Vou fantasiando: o que poderia ter acontecido se a nossa amizade tivesse evoluído, se tivesse inventado a coragem necessária para lhe confessar que estava apaixonado, que a amava. Desvio o olhar, envergonhado, e passeio-o pelos rostos dos desconhecidos que me rodeiam, que me ignoram, que me desprezam (que talvez me amem, em silêncio; sabe-se lá); mas não resisto a regressar, permito que o meu olhar explore vagarosamente, com deleite, os seus cabelos, os seus ombros. E dou mais um passo: pergunto-me se me teria encorajado caso tivesse tido a coragem de lhe tocar o seio, numa daquelas noites escuras que passávamos na esplanada da praia.
O telemóvel toca, atende. Não sorri, fala pouco, abana a cabeça.
Espio os seus movimentos, as suas reacções; intrometo-me na sua existência, violo-a. E pergunto-me: o que teria sido diferente, se tivéssemos feito amor? Teríamos casado, construindo uma vida em conjunto que ainda hoje perduraria? Ou poderia ter sido um momento inconsequente e facilmente esquecível, apenas sexo, um acontecimento embaraçante, talvez constrangedor, algo que acabaria por nos afastar um do outro?
Pousa o telemóvel, pega no jornal. Lê. Muito tempo depois, sorri.
E eu insisto em sofrer, em aprofundar o delírio; o que teria sido preferível: deixar a amizade perecer lentamente, transformando-se em nada, ou ter feito amor – o que eu desejava e ela também, talvez – e, após saciarmos os corpos, afastarmo-nos, e esquecermo-nos? Pergunto-me: se tivéssemos feito amor, uma única vez que fosse, a sua recordação deixaria de me assombrar, poupando-me à perplexidade desta fantasia persistente e um pouco embaraçante, que durante anos me forçou a exorbitar nostalgias e destilar arrependimentos?
Pergunto-me. Sempre fui exímio a perguntar. Sempre fui dos que perguntam, nunca serei dos que agem.

4.
Agora, há mais gente na esplanada; pares de namorados, que segredam e riem, que se olham com fúria e ansiedade, com volúpia. Falas e eu escuto; olho em volta, distraio-me um pouco, regresso a ti. Por vezes, quando consigo reunir a coragem ou o atrevimento suficiente, permito que o meu olhar divague pelo teu corpo e espreite, durante um fragmento de instante, o teu peito; sob o tecido da camisola que vestes, noto o contorno dos mamilos, ligeiramente erectos, expostos e insinuantes, convidativos; culpa do vento fresco que chega do mar, certamente. Olho e sorvo, engulo; depois fujo, embaraçado. Pergunto-me como seria acariciar os teus seios, beijar os teus mamilos; pergunto-me como seria fazer amor contigo. E cerro os dentes, odiando a minha hesitação, o meu medo. Penso como seria fácil: bastaria prolongar o olhar o tempo suficiente até perceberes o brilho dos meus olhos; nem seria necessário falar, verbalizar o meu desejo; bastaria um certo olhar: e tu perceberias. Mas insisto em hesitar, em temer, em adiar.
Continuas a falar; sorrio, aceno com a cabeça. Sinto-me ligeiramente ausente, um pouco alheado, desligado do mundo, de mim mesmo: como aquela estranha amálgama de pânico e indiferença que se sente quando se adivinha um desmaio, quando se sabe que já nada o poderá suspender, quando se percebe a irreversibilidade. Admito que talvez não seja capaz, que não depende de mim. E, de certo modo, intuo que estou perante a minha última oportunidade: se não te falar esta noite, talvez não haja outra ocasião. Talvez desapareças para sempre da minha vida, deixando-me apenas a tua memória; e a dúvida: consigo imaginar-me daqui dez anos, arrependido e amargo, a perguntar-me como teria sido, se ao menos tivesse arriscado.
Felizmente, a noite será longa. Haverá tempo.

5.
Levanto-me e caminho. Passaram todos estes anos: o tempo necessário para reunir alguma coragem, alguma confiança, alguma indiferença. Passo mesmo à sua frente, com esperança que olhe, que me reconheça. Permitindo que seja ela, uma vez mais, a decidir, a tomar a iniciativa. Não tenho tempo para pensar no que faria no caso de ela não me olhar, não me reconhecer, não me chamar: porque ela olha-me, reconhece-me, chama-me.

6.
De repente, dizes: estou farta disto, vamos passear na praia.
Pergunto-me o que significará este convite, pergunto-me se estarás a tomar a iniciativa. Sigo-te, quase entusiasmado. Com medo.

7.
Afinal, é tão fácil. Conversamos freneticamente, com medo que o tempo passe, sem notarmos a sua passagem; rimos, nervosos e felizes; trocamos olhares, partilhamos saudades; quase sentimos o tempo regredir, o passado regressar. Falamos exclusivamente do que foi, não sentimos qualquer curiosidade em conhecer as nossas vidas actuais, em actualizar os nossos currículos pessoais; por enquanto. Fugimos para o passado e lá permanecemos, irredutíveis: como se ainda estivéssemos naquela praia, onde nos vimos pela última vez.
Retomando.

8.
Caminhámos, em silêncio, até às ondas e sentámo-nos na areia húmida e áspera. Pensei: agora, vais beijar-me.
Mas começas a chorar. Falas de desespero e vazio, de cansaço e medo, de morte; falas de ódio e raiva e fúria, de angústia e dúvida, de solidão. Falas muito e preciso de algum tempo até perceber o significado do que dizes, do que choras; não respondo porque não sei que dizer, porque sei que não te apetece ouvir. Pego a tua mão, que está gelada, e aperto-a. Calas-te e soluças, em silêncio. Um pensamento medonho ocorre-me: precisas apenas de alguém que te escute o choro, que te pegue a mão; não importa quem, calhou ser eu. Aperto com mais força e tu correspondes. Permanecemos assim muito tempo; sou incapaz de adivinhar os teus pensamentos, de sentir a tua dor. Não partilhaste nada comigo, não me revelaste a tua alma; confessaste apenas um desânimo profundo e virulento mas passageiro, um desânimo comum a todos os Homens, o desânimo de viver e não perceber para quê. Sinto frio e desconforto, cansaço. Aguardo. Já respiras com mais calma.
Levantas-te e aguardas que me erga, olhando-me com afeição e ternura; depois, abraças-me, aconchegando o teu corpo no meu. Sinto os teus seios comprimirem-se contra o meu peito e fecho os olhos, espero, sinto; sabendo que nunca voltarei a estar tão próximo. Penso: agora, sou eu que tenho vontade de chorar.
Regressamos, apressados. Em silêncio.
Lembras-te?

9.
Inesperadamente, diz: vem comigo, a minha casa.
Saímos à rua, rindo alto; e logo regressamos, envergonhados: esquecemo-nos de pagar a conta; como um par de adolescentes, tolos.
Separamo-nos com um sorriso, continuamos em carros separados; tudo isto me parece tão estranho e apressado que nem tenho tempo para analisar o que está a acontecer, para antever o que se seguirá; não tenho tempo, nem vontade, para fantasiar, para antecipar; ou para temer. Porque já estamos no elevador do seu prédio; sinto o seu cheiro, recordo-o. Apetece-me abraçá-la; mas aguardo.
Abre a porta, entramos. Um garoto aparece a correr, saído das entranhas do apartamento; depois, uma menina muito pequenina, sorridente, tímida; finalmente, o marido. Apresenta-me a todos, com um sorriso inocente e sincero, com um sorriso feliz.
Desvio o olhar do seu rosto, estendo a mão ao marido. E sorrio.

Dão-se livros # 11

Para compensar a escassez de actualizações, oferecem-se livros. Para quem estiver interessado, basta enviar um email (até 19 de Dezembro) dizendo a quem gostaria de oferecer um dos livros que aparecem aqui ao lado; entre os autores dos email recebidos, serão sorteados livros.

# 64: Contabilidade afectiva

1.
Talvez o segredo do sucesso da sua relação fosse o facto de não falarem. Trocavam um sms para definir horas e locais, encontravam-se na recepção do hotel e subiam juntos, depois de se terem saudado sem grandes voracidades ou entusiasmos. O silêncio no interior do elevador não era propriamente agradável ou reconfortante; contudo, também não era particularmente incómodo. Na verdade, se pretendessem falar – não pretendiam –, que poderiam dizer um ao outro? Que havia a dizer, afinal? Talvez pudessem, por exemplo, conversar sobre o facto de a partir de certa idade – a deles –, o diálogo ser quase sempre um simples e imprescindível veículo para alcançar sexo, para superar os primeiros momentos, para justificar e disfarçar e apressar a motivação principal, muitas vezes exclusiva; sim, poderiam talvez conversar sobre isso e sorrir, agradados com a ironia, com a ilusão de subversão. Mas e depois, quando o assunto se esgotasse e não houvesse nada mais a acrescentar, como seria? Não, era preferível nem começarem. E por isso olhavam-se no espelho, sorriam silenciosamente (um sorriso diferente daquele que dirigiriam a um estranho mas, na verdade, não demasiado diferente), talvez se tocassem. Depois, o elevador teria finalmente chegado ao seu destino, um corredor seria percorrido e uma porta aberta; restaria, então (finalmente), foder. E eles foderiam.

2.
Claro que ela finge os orgasmos, todos eles, desde o primeiro; por que não o faria? É sempre mais fácil – mais confortável – fingir: dá menos trabalho e revela menos, denuncia menos, vulnerabiliza menos. Ele não imagina que é tudo fingido (como poderia imaginar, porque haveria sequer de suspeitar?), na verdade nem repara bem na actuação (na presença?) dela, não pensa nisso (como se a expressão do prazer dela, fingido ou não, tivesse pouca ou nenhuma relevância); numa ou noutra ocasião, notou que ela era um pouco ruidosa, um pouquinho mais do que o aceitável, mas como estão num hotel, anónimos e sós, não importa. A ele jamais lhe ocorreria que o ruído e o esbracejar e o frenesim (a exteriorização) pudesse ser uma distracção, destinada a desviar a atenção e iludir. E ela não é uma mulher especialmente subtil ou perspicaz ou inteligente (apenas uma pessoa normal); contudo, sabe, intuitiva e inconscientemente, que deve exagerar o que sente (ou, se for preciso, inventar; fingir que sente) e, desse modo, evitar intimidades excessivas. Contudo, é sensível (muito sensível) à atenção dele, à ternura que o comportamento dele revela e consubstancia; gosta particularmente quando ele (logo após ela fingir o seu orgasmo), a toca com cuidado e reverência, como se ela fosse frágil e preciosa; quando ele sorri, sereno e saciado, terno; quando ele diz que a ama (não é frequente mas acontece, por vezes). Gosta, muito; claro que não lhe ocorre que ele finge, que a ternura e sensibilidade e amor que ele exterioriza são tão fabricados quanto os seus próprios orgasmos.
Sim, talvez o segredo do sucesso da relação seja o facto de não falarem; caíssem nessa tentação e inevitavelmente acabariam por se denunciar, acabariam por se revelar demasiado; ambos perceberiam o fingimento do outro e cederiam ao desânimo, à revolta, à decepção, ao constrangimento. E depois, logo depois, viria o afastamento; a separação (mais uma).

3.
Ou talvez seja ao contrário: talvez ambos saibam que o outro finge; talvez ambos tenham percebido exactamente aquilo de que o outro necessita e lho ofereçam, não por generosidade mas porque assim o outro se sentirá em dívida, impelido a também oferecer algo. Talvez uma relação madura e sustentável, adulta, seja apenas isso: uma troca. Uma alternância entre débitos e créditos, uma contabilidade afectiva, uma transacção de sentimentos e expectativas e toques e orgasmos e tudo o mais que forma e alimenta a intimidade.
Sim, dirá a psiquiatra mais tarde, toda essa racionalização é muito conveniente e confortável; mas o que acontecerá quando um dos dois deixar de se satisfazer com fingimentos?

4.
(Possibilidade teórica: e se fosse ao contrário? Se ele buscasse amor e não apenas quem lhe amparasse as ejaculações? Se ela buscasse prazer, apenas prazer? Como seria?)

5.
E se eles efectivamente acabassem por conversar, poderia ser assim:
- Eu sei, compreendo o que sentes.
- Não sei se compreendes.
- Compreendo, claro que compreendo. Mas diz-me: que posso fazer? Diz-me, porque eu não sei. Fingir um orgasmo é algo que posso fazer, que consigo fazer.
- Pois consegues.
- Agora, sentir um orgasmo é que eu não sei como fazer. Gostava muito, não imaginas como gostava de sentir, sentir mesmo a sério. Senti-lo, simplesmente. E depois oferecer-te parte dessa sensação, agradecer-ta. Mas não consigo, não sei como se faz. Desculpa, mas não sei que mais dizer.
- Suponho que entendo. Ou tenho que entender, o que vai dar ao mesmo. Afinal, é verdade que também não sei como sentir amor por ti. Fingi-lo é fácil mas senti-lo, efectivamente senti-lo, confesso que…
- Desculpa mas de que estás a falar? Fingir amor? Queres dizer que…

6.
Claro que é melhor manterem-se calados. Claro que sim. Continuar a acreditar (a fingir) que fingimentos é quanto basta, é melhor que nada. Depois, chega sempre o momento em que o silêncio se torna um pouquinho mais desconfortável que antes; e então, quase de repente, ambos sentem pressa de partir, de estar noutro lado qualquer, com outra pessoa; e ambos fingem (quase em simultâneo, o que é curioso) um qualquer compromisso, uma urgência repentina, um pretexto que apresse a despedida; e convergem num fingimento conjunto, comum aos dois: a separação é o único momento em que estão em verdadeira empatia, próximos.
Mas, por enquanto, ele ainda ressona ligeiramente enquanto ela pensa como será quando tiver um orgasmo a sério, se sentirá (como tem sido hábito) sono e enfado e vontade de tomar banho, necessidade de se desligar; ou se será completamente diferente e inimaginável.
O hotel está muito tranquilo e silencioso, nada interrompe ou incomoda a languidez da tarde, nada lembra ou denuncia a pressa e o frenesim e a voracidade inerentes à vida quotidiana, à vida lá de fora, à vida além-hotel; um intervalo, pensa ela, sabe sempre bem. Sempre.
Temos que repetir isto com mais frequência, diz ela quando ele acorda. E não dirão mais nada, até que cada um deles entre no seu automóvel e zarpe em direcção à respectiva família.

# 63: O ensaio (último momento)

(A Mulher desvia o olhar, talvez arrependida de ser ter revelado demasiado. A Irmã olha-a, com surpresa, com temor; com respeito, também. O silêncio é longo, desconfortável.)
IRMÃ (na sua voz normal, esforçando-se por parecer descontraída): Chiça, isto foi um bocado violento.
MULHER (forçando um sorriso mas desviando o olhar): Desculpa, deixei-me levar um bocado longe de mais.
IRMÃ (encolhendo os ombros e espreitando o telemóvel; num tom excessivamente informal): Bom, esse é que é o interesse deste teu jogozinho, não é? (Pausa breve. Recuperando o tom sério, preocupado.) Mas tens aí muita porcaria dentro, muita coisa a precisar de sair cá para fora. Nunca pensei, mana. (Pausa breve.) Nunca conversam sobre estas coisas, sobre vocês? Isso faz-me um bocado de impressão.
(A Mulher encolhe os ombros, talvez ligeiramente envergonhada. A Irmã aguarda uma resposta, um comentário.)
MULHER (num tom pensativo, distante): Conheces aquela sensação de estar a falar com alguém e de repente perceberes que a pessoa não está a ouvir, que não ouviu uma única palavra do que disseste nos últimos cinco minutos? (A Irmã acena com a cabeça, enquanto brinca com o telemóvel.) E logo depois, vem-te assim uma espécie de inspiração divina e percebes que isso já aconteceu mais vezes, sem que tu suspeitasses. Desconfias que se calhar até acontece desde sempre. (Pausa breve.) Já te aconteceu? Perceberes que se calhar nem faz grande diferença, que afinal interessa pouco se és ouvida ou não, que se calhar não és ouvida porque não tens nada de especial para dizer. (Olhando a Irmã directamente, quase com desafio.) Sabes do que estou a falar? Fazes ideia?
IRMÃ (pousando o telemóvel e olhando a Mulher, aceitando o desafio): Acho que não. (Olham-se, um pouco surpreendidas com a frontalidade da resposta.) Acho que nunca aconteceu, acho que não suportaria viver uma relação em que me sentisse irrelevante. (Pensativa.) Apaixono-me e desapaixono-me com muita facilidade, como sabes. Vou andando de homem em homem e sabe bem assim porque com cada um vou tendo coisas novas e diferentes e complementares, de cada um vou recolhendo qualquer coisa especial. Nem imaginas como sabe bem ir coleccionando, ir explorando, ir descobrindo. (Num tom carinhoso.) Sabes que essa coisa do homem perfeito e do amor eterno não é para mim, não me interessa o conhecido, a repetição, a previsibilidade. (Sorri.) Mas também não tenho a pretensão de ser o amor eterno de alguém. Aborreço-me com os homens, da mesma forma que eles se aborrecem comigo. É natural, acho eu. Acontece com toda a gente.
MULHER (tom triste, agastado): É, com toda a gente.
IRMÃ: Esquisito é que a partir do momento em que isso acontece, não se reaja, não se tente seja o que for para contrariar uma situação que não é confortável nem recompensadora, que não está a funcionar. Que não se procurem estratégias, se inventem mecanismos. Ou que não se siga em frente, noutro rumo. (Pausa breve.) Isso é que me faz confusão. Não se estar bem mas não se fazer nada para melhorar.
MULHER (tentando sorrir mas sem disfarçar a tristeza): Isso é o que diz a psiquiatra. (Pausa breve.) O que ela não percebe, como tu não percebes, é que não me interessa especialmente andar por aí a experimentar este e aquele, a testar homens. Já passei essa…
IRMÃ (interrompendo, aborrecida): Não digas que é uma fase, que eu passo-me já. Detesto essa condescendência de irmã mais velha.
MULHER (calma, sem hostilidade nem arrogância): Bom, para mim foi uma fase. Passei por ela e não quero voltar. Dá-se umas fodas e aprende-se umas coisas, chora-se pouco. (Encolhendo os ombros, desviando o olhar.) Ok, tem piada. Mas não pode durar para sempre; não chega. É preciso mais. É preciso investir em…
IRMÃ (interrompendo, irritada): Investir em quê? Num gajo que não te ouve? Que não quer saber o que pensas, o que sentes? Tem paciência mas prefiro não andar cheia de ilusões e de expectativas que se vão frustrando uma a uma; de fantasias com companheirismos e almas gémeas e essas porras todas. (Pausa breve.) Prefiro foder como deve ser, o que já não é mau.
(A Mulher sorri, contrariada mas incapaz de não o fazer; abana a cabeça, como se desistisse.)
IRMÃ (conciliatória): Tu sabes que eu sempre gostei do teu marido, que sempre gostei de vos ver juntos. Que de vez enquanto até te invejo, só um bocadito. Sabes isso. (Pausa breve.) Mas não fazia ideia que tinhas uma relação frustrada…
MULHER (interrompendo, magoada): Não tenho nada uma relação frustrada.
IRMÃ (defensiva): É o que parece, depois deste teu teatrinho.
(Sem que notassem, aproximou-se da mesa uma terceira mulher que, com gestos decididos e peremptórios, puxa uma cadeira e senta-se, surpreendendo-as.)
AMIGA (sorrindo): Qual teatrinho?
MULHER (olhando a Amiga, quase assustada): Que susto, fogo. Sempre a mesma coisa. (Tentando recompor-se.) Por onde tens andado, estás atrasada.
AMIGA (encolhendo os ombros): Perdi-me numa lojinha. Temos que passar por lá, depois. Quero que me dês uma opinião.
(A Irmã pegou no telefone e fez uma chamada, aguardando que atendam. Pressente-se algum desconforto em relação à Amiga.)
AMIGA (olhando as chávenas): Apetecia-me um café. Ainda temos tempo?
MULHER (arrumando o telemóvel na bolsa, com gestos decididos): Acho que não. Já estava para ir sozinha.
AMIGA (sem pressa de se levantar): Estavam a falar de quê, afinal?
MULHER (dirigindo-se à Irmã, que aguarda com alguma ansiedade que lhe atendam a chamada): Ficas?
(A Irmã acena que sim, muda o telemóvel de orelha; a Mulher levanta-se e olha para a Amiga.)
MULHER (dirigindo-se à Amiga): Então?
AMIGA (levantando-se, contrariada): Qual é a pressa?
(A Mulher aproxima-se da Irmã e dá-lhe um beijo algo tímido, no rosto; a Irmã parece estremecer, surpreendida.)
MULHER (começando a afastar-se, dirigindo-se à Irmã): Depois falamos.
AMIGA (acompanhando a Mulher; dirigindo-se à Irmã, sem a olhar): Tchau. (Falando à Mulher, sorrindo.) Há séculos que não te via com saia.
(As duas mulheres afastam-se e desaparecem. A Irmã permanece sentada, agarrando o telemóvel com força e olhando em frente.)


Edward Hopper - Chop suey

# 63: O ensaio (segundo momento)

(A Irmã abana a cabeça, suspira; olha o relógio, pega o telemóvel que está no cima da mesa, volta a pousá-lo; ajeita o cabelo, de forma inconsciente. A Mulher observa-a, sorrindo.)
IRMÃ (fingindo-se exasperada): Ensaiar o pedido de divórcio. (Ri.) E como se faz isso?
MULHER (sorrindo): Fácil. Só tens que fingir que és o meu marido. E ires reagindo como achas que ele reagiria.
IRMÃ (abanando a cabeça): És tão infantil, tu. (Pausa breve. Verdadeiramente curiosa.) E que esperas conseguir com uma palhaçada dessas?
MULHER (irónica): Divertir-te.
IRMÃ (rindo): Estúpida. (Volta a pegar o telemóvel, confirma o ecrã; depois, espreita a sua chávena.) Apetece-me mais chá?
MULHER (abanando a cabeça): Estás à espera de alguma chamada?
IRMÃ (num tom pesaroso, triste): Já me contentava com uma mensagem. (Fica a olhar para o telemóvel, desconsolada.)
(Silêncio. As duas mulheres parecem momentaneamente distantes, quase ausentes; esquecidas da outra.)
IRMÃ (forçando-se a rir): Vamos lá, então. (Tosse. Fala numa caricatura de voz masculina.) Olá querida. Como foi a tua tarde? (Forçando o tom de paródia na voz.) Sabes o que me apeteceu todo o dia? (Tentando conter o riso.) Que me fizesses um broche. (Ri, descontrolada.)
MULHER (chateada mas incapaz de não rir): Vai-te lixar.
IRMÃ (rindo). Disseste que era para me divertir.
(Olham-se, enquanto o riso se vai dissipando lentamente. Permanecem em silêncio, confortáveis.)
IRMÃ (tom de voz masculino, incongruente, mas forçando-se a permanecer séria): Pareces cansada, amor. O dia foi duro?
MULHER (contrariada): Sabes bem que ele não me trata por amor.
IRMÃ (exasperada, no seu tom de voz normal): Queres fazer isto ou não? (Pausa breve.) Tens que me dar algum espaço, que diabo. (Olhando para o telemóvel.) Vá lá, que está a fazer-se tarde para mim. (Pausa breve. Num tom prático, decidido.) Faz de conta que já jantámos e estamos a ver o noticiário. O garoto… (Interrompendo-se.) Onde costuma estar o meu sobrinho, enquanto vocês discutem?
MULHER (irritada): Nós não costumamos discutir. O problema é precisamente esse, como sabes muito bem. (Breve hesitação; tom desconsolado, rendido.) Quem não fala não pode discutir. (Pausa breve. Percorre o olhar pela sala, como se sentisse desconfortável, aprisionada.) O menino está sempre no quarto dele, entretido com isto ou aquilo. Longe. (Sorriso triste.) Para não interromper o nosso silêncio.
IRMÃ (tentando parecer decidida, prática.) Ok. Estão os dois no sofá, a olhar para a televisão, em silêncio. Sem se tocarem. Aquele chato das orelhas grandes a apresentar as notícias do governo, todo exaltado. Ou aquela que veste mal e toda a gente diz que é sexy, não sei porquê. (Disfarça um sorriso.) O meu sobrinho no quarto a jogar playstation, aqueles jogos de carros de que ele gosta. (Pausa breve. Tom exageradamente subserviente.) Parece-te bem assim?
(A Mulher acena com a cabeça, tentando permanecer séria, tentando não sorrir.)
IRMÃ (afinando a sua imitação de voz masculina): Então começa lá. Livra-te de mim.
(Silêncio. De repente, surge um incómodo indefinido, uma tensão entre as duas. A boa disposição dos momentos anteriores desaparece por completo.)
MULHER (num tom hesitante, empertigado): Desculpa, queria falar uma coisa contigo.
IRMÃ (no seu tom de voz normal; irritada): Porra, que início mais merdoso. (Fugindo ao olhar furioso da Mulher.) Desculpa. (No tom de voz masculino, cada vez mais afectado, mais inverosímil.) Continua.
MULHER (hesitante): Acho que precisamos de falar.
IRMÃ (revirando os olhos e abanando a cabeça, não se contendo): Chiça, és pior que um filme americano.
MULHER (ignorando o comentário): Há coisas que não estão bem, que precisamos de resolver.
IRMÃ (voz masculina e grossa, tentando aparentar distracção, quase indiferença): Há algum problema com o garoto?
MULHER (irritada): Com o garoto, não. (Pausa breve.) Não é com o garoto. É entre nós.
IRMÃ (voz masculina): Nós?
MULHER (irritada mas esforçando-se por manter a calma): Sim, nós. Ou achas que está tudo bem?
IRMÃ (voz masculina): Que queres dizer com isso? Claro que está tudo bem.
MULHER (surpreendida): Achas mesmo? (Incrédula.) Acreditas nisso? Acreditas que este casamento ainda é feliz?
IRMÃ (voz masculina): Ainda? Que queres dizer com ainda? (Pausa breve.) Claro que é um casamento feliz. Eu sou feliz. (Hesitando momentaneamente.) Porquê, tu não és?
MULHER (após um silêncio, num tom tímido): Não sei. (Pausa muito breve.) Não sei se sou.
(Pausa. Espreitam-se mas logo desviam o olhar.)
IRMÃ (voz masculina): Desculpa. Apanhaste-me de surpresa. (Pausa breve.) Que queres dizer com isso? Desculpa, mas não percebo. Acho que estou chocado. (Pausa breve.) Não és feliz?
MULHER (hesitante, num tom sonhador, como se pensasse alto; completamente absorvida pela fantasia): Desculpa, não queria magoar-te. Mas nunca falamos sobre isto. Partes do princípio que está tudo bem, de que não há lugar a dúvidas nem hesitações, a perguntas. De que não há nada para falar. (Pausa breve.) E faz-me falta falar, não imaginas quanto.
IRMÃ (voz masculina): Falar? Falar o quê? (Hesitação.) Nós falamos. Fartamo-nos de falar.
MULHER (tentando não se irritar): Não, acho que não nos fartamos de falar. Mas se calhar, até está tudo bem. E a única coisa que falta é mesmo isso: falar um pouco sobre tudo isto, para perceber que as coisas afinal não estão más. Não achas? Enquanto estamos para ali às voltas na cama, sem conseguir dormir, vamos pensando e pensando e tudo parece assustador e sem solução, tudo parece perdido. Mas depois, se falamos um bocado sobre isso, a acompanhar o primeiro cigarro da manhã ou assim, se falamos com alguém que está verdadeiramente interessado em ouvir, as preocupações começam logo a parecer um bocadinho exageradas, um bocadinho apalermadas. Até parece que só por verbalizarmos os nossos medos eles perdem logo um bocado do seu poder.
IRMÃ (voz masculina): Desculpa. A culpa é minha. (Hesitação.) Não fazia ideia que te sentias assim.
MULHER (irritada, subindo o tom de voz): Claro que não sabias. (Olhando em redor, envergonhada. Baixando a voz.) Claro que não sabias. Esse é que é o problema. Eu amo-te e tu amas-me mas a verdade é que, de repente, esse amor passou a ser uma espécie de entidade separada, algo que existe sem a nossa intervenção, sem o nosso esforço. Existe e pronto. (Pausa breve. Confusa.) Amámo-nos e isso foi tão forte que o amor passou a ser auto-suficiente. Independente de nós, da nossa vontade. Uma espécie de amor de subsistência, ou assim.
IRMÃ (voz masculina): Amor de subsistência? Não percebo onde queres chegar. Não percebo o que estás a tentar dizer-me.
MULHER (baixando ainda mais a voz, ignorando a interrupção): Amamo-nos, sim. Mas já não nos conhecemos. (Pausa breve.) E isso é que é assustador, isso é que me atormenta. (Aproximando-se, como se estivesse mesmo em frente do marido): Acredito que nos amamos e que esse amor é verdadeiro e forte e eterno e tudo isso. Mas amor não é felicidade. Amar e ser amado não é suficiente, não é isso que é ser feliz.
(A Mulher desvia o olhar, talvez arrependida de ser ter revelado demasiado. A Irmã olha-a, com surpresa, com temor; com respeito, também. O silêncio é longo, desconfortável.)

# 63: O ensaio (primeiro momento)

(Duas mulheres jovens sentadas numa mesa de pastelaria, frente a frente; bules de chá e pedaços secos de torrada pela mesa; dois telemóveis. As outras mesas estão desocupadas.)
MULHER (num tom falsamente desprendido, algo receoso): Preciso que me faças um pequeno favor.
IRMÃ (tom decidido e confiante, sem hesitações calculistas): Diz lá.
MULHER (deixando o olhar vaguear, embaraçada): Quero que me ajudes a treinar o pedido de divórcio.
IRMÃ (rindo, surpreendida mas sem antagonismo): Treinar o quê?
MULHER (sorrindo, envergonhada): O pedido de divórcio.
IRMÃ (abanando a cabeça, ainda rindo): Agora é que vai? É desta vez?
MULHER (encolhendo os ombros): Duvido. (Embaraçada.) É só para ensaiar. (Olhando em redor, desconfortável.) Ver qual é a sensação.
IRMÃ (subitamente séria, apreensiva): As coisas pioraram?
MULHER (hesitante, após uma breve pausa): Não, acho que não. (Sorrindo, sem vontade.) Até melhoraram ligeiramente, nos últimos dias.
IRMÃ (simultaneamente incrédula e satisfeita): A sério? Melhoraram como?
MULHER (incomodada): Sei lá, melhoraram. Não me apetece falar disso agora. (Pausa breve, desconfortável.) Às vezes andas tão cansada que só a intensidade do teu desejo para que as coisas melhorem é suficiente. (Encolhe os ombros.) Queres tanto que melhorem que melhoram mesmo, ou parece que melhoram. (Pausa breve.) O que vai dar ao mesmo, não é?
IRMÃ (desconfortável com a súbita agressividade da interlocutora, falando num tom hesitante): Então para que serve esse disparate de ensaiar pedidos de divórcio? (Pausa breve. Correspondendo inconscientemente com um tom igualmente hostil.) Não te percebo. Por um lado queres que as coisas resultem, nem que seja à força; por outro pareces ansiar por que terminem, de uma vez. (Pausa breve.) Em que ficamos?
(A Mulher desvia o olhar, desconfortável, talvez agastada; a Irmã olha-a com insistência.)
IRMÃ (tom acusatório, vagamente descontrolado): Às vezes, pare que tens vivido numa ilusão de casamento, entretida com uma espécie de ilusão de felicidade. Agora queres um divórcio de ilusão? (Pausa breve.) Foda-se, que me parece ilusão a mais.
(A Mulher mantém-se alheada, mas não necessariamente incomodada; como se estivesse habituada a reprimendas da Irmã.)
IRMÃ (num tom pesaroso, estendendo a mão e acariciando-lhe o braço): Desculpa.
MULHER (magoada, tentando parecer indiferente): Não faz mal.
IRMÃ (tom apologético): Sabes que isto irrita-me como tudo. A tua hesitação. A forma como adias e adias e adias. (Sorrindo, com compreensão; tentando compensar a agressividade anterior.) A tua maldita indecisão.
(A Mulher deixa-se acariciar pela Irmã, sem corresponder, quase sem reparar; não a olha; parece momentaneamente ausente, imperturbável. Confiante nas suas certezas.)
MULHER (num tom rígido, com se recitasse algo): A felicidade não é ilusão. Nem sempre. (Pausa breve.) Muitas vezes, não é. (Pausa breve.) Sabes bem.
IRMÃ (irritada): Está bem. Às vezes, não é ilusão. (Retirando a mão.) Mas e as outras vezes? A maior parte das vezes?
(A Mulher encolhe os ombros, como se desinteressada da conversa.)
IRMÃ (num tom quase impertinente): Basta ser feliz três dias por mês. E os outros vinte e sete?
MULHER (encarando a Irmã, subitamente interessada no diálogo): Três dias? Se eu fosse feliz três dias todos os meses, não me queixava de nada.
(Olham-se e riem em simultâneo. A tensão desaparece de imediato. Permanecem em silêncio, sorrindo.)
IRMÃ (curiosa, ainda sorrindo; falsamente despreocupada): Este mês já tiveste os teus três dias?
MULHER (subitamente alegre e despreocupada): Só um. Mas valeu por um monte deles.
IRMÃ (atenta): Conta lá.
MULHER (depois de uma hesitação): Hoje, não. Logo vou estar com a psiquiatra e não me apetece nada estar desbobinar a história toda duas vezes seguidas. (Estende a mão acariciando o braço da Irmã, tal como ela fizera momentos antes.) Desculpa lá.
IRMÃ (sorrindo): Estúpida. Pagar setenta euros para…
MULHER (interrompendo): Oitenta e cinco.
IRMÃ (ignorando a interrupção): Ouvires exactamente as mesmas coisas que eu te posso dizer de borla.
MULHER (num tom arreliador): Mas ela diz de uma forma mais bonita.
IRMÃ (correspondendo ao tom falsamente provocatório): E por que não lhe pedes a ela para te ajudar a ensaiar o divórcio?
MULHER (sorrindo): Isso é privilégio das irmãs mais novas. (Retira a mão do braço da Irmã.)
(A Irmã abana a cabeça, suspira; olha o relógio, pega o telemóvel que está no cima da mesa, volta a pousá-lo; ajeita o cabelo, de forma inconsciente. A Mulher observa-a, sorrindo.)

Para quando novos contos?

Quando calhar, que por estes dias (meses) não se tem escrito muito (nada).

Dão-se livros # 10

Os livros seguiram para a Patrícia. Obrigado a todos pela participação.