MULHER (irritada): Não vou voltar à psiquiatra.
AMIGA (desatenta): Porquê? Estás curada?
MULHER: Não gozes.
AMIGA (sem verdadeiro interesse): A sério, não voltas porquê?
MULHER (contrariada): Aconteceu uma coisa esquisita, não percebi bem. Mas senti-me desconfortável.
AMIGA (levemente curiosa): Mas que te disse ela?
MULHER: Não foi nada que ela disse.
AMIGA: Então?
MULHER (num tom embaraçado): Dei com ela a olhar para mim com uma expressão esquisita.
AMIGA (curiosa): Esquisita, como?
MULHER (num tom desagradado): A olhar-me para as pernas. Com interesse, sabes?
AMIGA (espantada): Com interesse?
MULHER (irritada): Não te faças de parva.
AMIGA (tom agastado): Bom, realmente não é hábito presenteares o mundo com esse espectáculo de pernas, sempre escondidinhas nas calças, guardadas não sei para quem. Se calhar, apanhaste-a de surpresa e ela pôs-se a olhar.
MULHER (irritada; tentando não rir): Vai-te lixar. (Empertiga-se e tenta puxar a saia para baixo, protegendo-se.)
AMIGA: Ou achas que é lésbica?
MULHER: Sei lá eu.
AMIGA (provocadora): Estará interessada?
MULHER (peremptória): Não sei nem quero saber. É por isso que não regresso lá.
AMIGA: Conta-me lá como é essa tua psiquiatra, afinal. É gira?
MULHER (distraída): Nem por isso. Deve ser uns dez anos mais velha que nós. Muito formal, sempre impecável. (Pega na chávena de café vazia e brinca com ela, com gestos ligeiramente ansiosos.)
AMIGA: Mas é daquelas armadas em homem, todas tesas e assim?
MULHER: Não. É uma mulher normal. Nem gira nem feia. Passas por ela na rua e não reparas.
AMIGA (encolhendo os ombros): Banal.
MULHER: Como a maioria.
AMIGA (séria, realmente interessada): É simpática? Ri-se?
MULHER: Para mim, é sempre uma psiquiatra a dar consulta. Não a consigo imaginar de outra forma.
AMIGA (insistente): Mas parece-te uma mulher feliz? Triste? Aborrecida? Frustrada? Estimulante? Mal fodida?
MULHER (desgostosa): Estou tão arrependida de te falar disto.
AMIGA (tom firme e irritado): A sério. A mulher também lá deve ter os problemas dela, não? Está para ali todo o dia a aturar as merdas dos outros mas não consegue esquecer-se das suas próprias merdas. Que as há-de ter, não?
MULHER (desinteressada): Isso é lá com ela.
AMIGA (incisiva): Mas tu pegas nos teus problemazinhos e vais lá ver se ela te arranja um supositório para a mente. Um aliviozinho. Mas e ela, onde pode ir? Onde vão os psiquiatras que têm problemas? Com quem falam?
MULHER (tentando não se irritar): Com outros psiquiatras.
AMIGA (irónica): Achas?
MULHER (conclusiva): Acho. Ou se calhar, não falam com ninguém. Não precisam.
AMIGA (contrariada): Não precisam?
MULHER (num tom fingidamente paciente): Se conseguem dar supositórios aos outros também podem arranjar alguns para si próprios. (Concentra-se na chávena que tem nas mãos.)
AMIGA (pensativa): Isso é verdade. Anda tudo à procura de supositórios, já reparaste? É esse o mal. Em vez de se porem a pensar um bocado e tentarem compor as coisas, em vez de se analisarem, de se colocarem em questão, as pessoas preferem que alguém lhes dê soluções padronizadas e instantâneas.
(A Mulher larga a chávena e olha a Amiga, surpreendida.)
MULHER (exasperada): Hoje estás impossível.
AMIGA (tom provocatório, exagerado; fugindo ao olhar da interlocutora): Ai que o meu marido já não me fode; toma, leva o comprimido azul. Ai que o meu marido só pensa em foder; toma, leva o comprimido amarelo. Ai que o meu marido fode muito depressa; toma, leva o comprimido lilás. Ai que o meu marido quer foder em cima da arca frigorífica e eu tenho medo de a estragar; toma, leva o comprimido vermelho.
MULHER (sorrindo, contrariada): Pára com isso.
AMIGA (séria): Ninguém se põe a pensar porque raio o marido quer foder muito ou não quer foder nada. Tentar compreender. Perguntar. Não, vai-se logo pedir o comprimido.
MULHER (atenciosa): Mas que se passa contigo?
(Agora é a Amiga que pega na sua chávena vazia e a faz rodar entre os dedos, completamente abstraída.)
AMIGA: É como aquela tua colega mal cheirosa. Em vez de se lavar mais vezes, põe desodorizante; e é claro que assim não resolve nada, apenas disfarça, apenas adia. Mas é o mesmo por todo o lado, com toda a gente. (Pausa breve.) Andamos para aqui todos cheios de camadas de desodorizantes, a mamar supositórios de todas as cores, mas o cheiro a merda não desaparece.
MULHER (apreensiva): A sério. Que aconteceu? Conta.
AMIGA (irritada): Queres saber o que aconteceu?
MULHER (firme): Quero.
AMIGA (desgostosa): Pois olha que nem eu sei bem o que aconteceu.
MULHER: Contas-me ou não?
AMIGA (cansada): Não.
(A Amiga deixa que a chávena lhe escorregue dos dedos e rebole pela mesa, provocando um ruído inesperado; ambas olham a chávena, como se esperassem que caísse ao chão.)
MULHER: Regressaste da loja sem comprar nada e desististe de ir à cabeleireira, assim de repente. E pões-te para aí com essa palermice de comprimidos e desodorizantes. Só pode ter acontecido uma desgraça qualquer.
AMIGA (indiferente): Deixa lá. Fala-me da tua psiquiatra.
MULHER: Conta, porra.
(A Amiga levanta-se e desaparece; regressa muito tempo depois, com dois copos; pousa-os na mesa e bebe. A Mulher olha-a, atenta.)
AMIGA (num tom de voz algo apreensivo, quase assustado): Sabes quem encontrei quando ia a sair da cabeleireira?
MULHER (neutra): Não faço ideia.
AMIGA (contendo a revolta): O meu ex.
MULHER (surpreendida): Não.
AMIGA (abatida): É verdade.
MULHER: Então, voltou à cidade?
AMIGA (desgostosa): Parece que sim.
MULHER: Quem viu quem, primeiro?
AMIGA (contrariada): Foi ele. Pôs-se a chamar por mim, ali no meio do centro comercial. E eu toda confusa, a reconhecer a voz mas sem conseguir identificá-la.
MULHER (solidária): E depois?
AMIGA (tom triste, como se se sentisse miserável): Fico para ali meio aparvalhada, não sei bem porquê. Completamente apanhada de surpresa. E ele com sorrisinhos, a perguntar-me como tenho passado, a dizer que estou com bom aspecto e mais não sei quê.
MULHER (solidária): E tu?
AMIGA: Com vontade de fugir. Atrapalhada mas sem perceber por que motivo. Com medo não sei de quê.
(A Amiga pegou num guardanapo e está a dobrá-lo meticulosamente. A Mulher olha para as mãos dela, para o guardanapo que vai desaparecendo.)
MULHER: Mas não disseste nada?
AMIGA (forçando um sorriso, desgostosa): Nada. E então ele convida-me para tomar um café.
MULHER (incrédula): E tu aceitaste.
AMIGA (embaraçada): Lá vamos nós, de repente sem nada para dizer, meio embaraçados. Sentamo-nos na mesa mais afastada do primeiro cafezinho que encontramos. E ficamos ali a olhar para as mãos, à espera não sei de quê. Como o raio de um par de namorados.
MULHER: Mas porque não o despachaste logo?
(Agora é a Mulher que pega um guardanapo e o dobra, devagarinho.)
AMIGA (confusa): Sei lá. Porque não consegui. Porque não quis.
MULHER: E que queria ele? Chateou-te?
AMIGA: Não. (Pegando distraidamente num guardanapo e dobrando.) Foi muito civilizado. Falou do novo trabalho e das viagens e dos colegas e dos desafios. Depois, confessou que já se separou da minha substituta.
MULHER (surpreendida): A sério?
AMIGA (tom desdenhoso): Parece que sim. Explicou detalhadamente o que correu mal; tudo culpa dela, como é óbvio. (Pausa breve.) E então, muito tempo depois, percebeu que tinha estado todo o tempo a falar de si próprio. E quis saber de mim.
MULHER: E tu, que disseste?
AMIGA (irritada): Disse-lhe que me despedi e que tenho andado por aí a viajar que nem uma doida. Que me farto de comprar roupa e foder com homens mais novos. Que tenho a maior colecção de sapatos desta parte do país e que por causa disso tive que mudar de casa, que já não tinha espaço para os arrumar.
MULHER (indiferente): Não acredito.
AMIGA (tentando sorrir): Pelo menos, foi o que me apeteceu dizer. Mas limitei-me a encolher os ombros e emborcar meio litro de chá verde.
MULHER (solidária): Este tempo todo depois e ainda não o consegues enfrentar. (Pega num segundo guardanapo e dobra-o meticulosamente.)
AMIGA (tom frio e distante): Estamos divorciados há um ano. Já não há nada a enfrentar.
MULHER: Então porque não reages?
AMIGA (sorrindo): Aí é que te enganas. Reagi.
MULHER (correspondendo ao sorriso): Conta.
(Ambas as mulheres pousam os guardanapos dobrados na mesa; olham o pequeno monte e depois olham-se.)
AMIGA (tom falsamente bem-disposto, irónico): De repente, comecei a perceber as insinuações. Que tinha saudades minhas, que podíamos aproveitar os dias que ele vai ter de passar por cá, que somos os dois jovens e livres.
MULHER (perplexa): Filho da puta.
AMIGA (desgostosa): Convencido que depois da merda que fez, basta chegar aí com o sorrisinho especial e aqui a estúpida vai logo atrás.
MULHER: Mas que disseste?
AMIGA (sorrindo): Disse que também tinha saudades dele.
MULHER (perplexa): O quê?
AMIGA: Disse que precisava de ir tratar de uns assuntos, era só um instantinho. Ele que esperasse ali por mim, que comesse um gelado para ganhar energia. E fugi para aqui. Ainda lá deve estar, à espera.
(A Amiga pego um novo guardanapo; a Mulher olha-a e pouco depois imita-a.)
MULHER (cuidadosa): Mas não te sentiste tentada, pois não?
AMIGA (confusa): Tentada?
MULHER: A regressar ao café.
AMIGA (tom irritado, brutal): Achas que sou como tu?
MULHER (defensiva): Como eu, o quê?
AMIGA (acusatória): Como tu. A ganhar coragem para te divorciares há dois anos. Ou mais.
MULHER (atónita): Cala-te.
(A Mulher atira o guardanapo para cima da mesa, irritada; olha em redor, confusa; como se procurasse uma fuga; tenta acalmar-se.)
AMIGA (tom subitamente indiferente): Eu já sofri tudo o que tinha a sofrer. Posso não saber o que quero mas sei muito bem o que não quero. E uma coisa que não quero é ser o supositório dos outros. Um aliviozinho temporário. Uma distracção. (Sorri, triste; pousa o guardanapo cuidadosamente dobrado e pega de imediato num novo.)
MULHER (magoada): Estás a querer dizer que eu sou um supositório?
AMIGA (neutra): Não. Estou a dizer que andas há dois anos, ou mais, à procura de supositórios.
MULHER (irritada): Não me lixes. Que ganhaste tu com o divórcio? És mais feliz, agora?
AMIGA (após uma hesitação): Incomparavelmente.
MULHER (acusatória): Então porquê esse descontrolo todo, só porque de repente o encontras numa esquina?
AMIGA (fingindo indiferença e desinteresse): Não estou descontrolada.
MULHER (impaciente): Então estás o quê?
AMIGA (subitamente irritada): Danada.
MULHER (espantada): Danada? Porquê?
AMIGA (exasperada): Porquê? Não vês porquê? Por causa da presunção dele. Da arrogância. Da desconsideração. Da sobranceria. Percebes? Porque ele parte do princípio que está tudo bem, que o sofrimento que me causou já não conta para nada; que se pode começar tudo de novo, como se não tivesse havido um casamento que acabou miseravelmente. (Pausa breve. Atira o guardanapo que tinha nas mãos e cruza os braços, como se se quisesse impedir de pegar noutro.) Como se bastasse fazer um sinal e aqui a parvalhona vai logo a correr.
MULHER (tentando aparentar calma): Talvez estejas a interpretar mal. Talvez ele queira apenas.
AMIGA (interrompendo, furiosa): O quê? Foder? Mas se for isso, ainda é pior. Não percebes? É uma instrumentalização completa da relação entre duas pessoas. De mim.
MULHER (correspondendo à irritação; tom arrogante): Qual instrumentalização, qual quê. Chama-se casamento. Tu fazes coisas por mim e eu faço coisas por ti. Tu aturas-me e eu aturo-te. Claro que há momentos maus, momentos em que as vontades e os interesses não coincidem. Claro que há dificuldades em perceber o outro, principalmente quando se deixa de falar, quando se parte do princípio que já se conhece tudo o que há a saber sobre o outro, de tal modo que já não é necessário perguntar. É isso, um casamento. Mas qual é alternativa? Mudar de relação a cada seis meses, mal surja o primeiro indício de monotonia? Ir coleccionando?
AMIGA (agastada): Não sabes o que estás dizer.
MULHER (afrontada): Não sei? Sei é demasiado bem. Não imaginas como sei. Sei que não estou bem, isso pelo menos sei. E não é há dois anos, como dizes. É há mais.
AMIGA (impertinente): Então estás à espera de quê?
MULHER (subitamente cansada): Estou à espera de perceber como funciona isto dos casamentos, da vida. A tentar perceber se viver é como participar numa peça de teatro em que vais seguindo o teu papel, repetindo-o noite após noite, tentando atinar, tentando melhorar, obedecendo ao texto que alguém escreveu, às arbitrariedades de um encenador invisível. Será isso, a vida? (Subitamente desconsolada.) Ou é como aquela coisa que agora toda a gente faz, como se chama? Quando está um tipo sozinho no palco, a dizer graçolas.
AMIGA: Stand up.
MULHER: Isso. Está-se ali sozinho, a improvisar; tem-se umas ideias do que se quer dizer mas o discurso vai variando de acordo com os estímulos do público, de acordo com a própria vontade de se estar ali naquele momento. Não há encenador a mandar isto ou aquilo, não há determinismos nem instrumentalizações. Está-se livre.
AMIGA: Livre para quê?
MULHER: Sei lá. Livre, simplesmente. Não é o que toda a gente quer? Ser livre?
(A Mulher começa distraidamente a recolher todos os guardanapos dobrados que estão em cima da mesa, reunindo-os num montinho.)
AMIGA (tentando aligeirar o diálogo): É disso que falas lá com a tua psiquiatra?
MULHER (indiferente à provocação): Não. É o que penso quando não consigo dormir. Se viver é integrar uma equipa onde cada um sabe o que tem de fazer, sabe quem manda, sabe o que é esperado de si; ou se é estar sozinho em cima do palco e ir improvisando, tentando que os outros não se aborreçam.
AMIGA (sem qualquer provocação): E já chegaste a alguma conclusão?
MULHER (contrariada): Ide chegar, um dia destes.
AMIGA (sorrindo): E depois, que fazes com a tua conclusão?
(A Mulher encolhe os ombros, deixando claro que não irá responder; olha em redor, espreguiçando-se ligeiramente.)
MULHER (forçando um tom aligeirado, bem-disposto): Já reparaste que agora isto está sempre vazio? Vamos mas é dar uma volta. (Começa a levantar-se, perante o olhar indiferente da Amiga.) Onde vamos almoçar? (Arruma a cadeira e olha a Amiga, subitamente impaciente.) Anda lá.
(A Amiga começa a levantar-se, contrariada. Arruma a cadeira sem grande cuidado, embatendo com ela na mesa; ouve-se um ruído metálico, intenso e irritante; alguns dos guardanapos dobrados caem ao chão, esvoaçando ligeiramente, e são distraidamente pisados pelas duas mulheres, que se afastam em silêncio.)