Passado a limpo # 03

Era uma vez um menino que foi passear numa floresta: a sua primeira caminhada exploratória entre árvores imensas e silenciosas, descobrindo como todas pareciam iguais, mas eram afinal únicas; descobrindo como cada uma daquelas árvores possuía uma identidade própria. Como as pessoas. Quis dar nome a todas elas, e assim torná-las suas amigas. Quis dar-lhes abraços, apesar de não entender por que motivo lhe apetecia abraçar mais umas do que outras. Como às pessoas.
A primeira vez em que esteve numa floresta: pareceu-lhe um local fascinante e quase mágico. Não saberia explicar o motivo desse fascínio, e isso fazia-o sorrir; já aprendera que os sentimentos mais valiosos não tinham explicação. Desejou regressar muitas vezes, regressar logo no dia seguinte. Mas o dia seguinte era dia de escola. E não se conteve: falou da sua visita aos amigos, que o ouviram sem grande entusiasmo. Até que alguém perguntou se não tinha tido medo dos pássaros, dos esquilos, dos bichos que fazem barulhos esquisitos e não se vêem; respondeu que não vira pássaros nem esquilos nem bichos barulhentos.
- E caracóis?
- Também não.
De repente, sentiu vergonha de contar que gostara de dar abraços às árvores. E de lhes inventar nomes. E de falar com elas, apesar de não lhes ouvir respostas.
- Se não viste animais, não foste a uma floresta de verdade.
- Fui pois. Não há florestas de mentira.
- As florestas de verdade têm caracóis.
- Se calhar os caracóis estavam a dormir.
- Não percebes nada de caracóis. Nem de florestas.
Não valia a pena continuar a discutir. Foram falar com a professora, para desempatar. E a professora confirmou que nas florestas há sempre caracóis a passear de um lado para o outro; e pássaros, muitos pássaros.
- Se não encontraste caracóis, talvez tenhas ido a uma floresta alternativa. São florestas em que ocuparam terras desertas com árvores de plástico, a imitar as verdadeiras; são muito bonitas, parecem mesmo, mesmo reais. Mas não enganam os caracóis nem os pássaros.
O menino ouviu a explicação da professora e não respondeu. Já percebera que os sentimentos mais valiosos não tinham explicação; e os mais tristes também não.