Passado a limpo # 08

Tivemos uma infância feliz, eu e o meu irmão. Ainda no outro dia falávamos disso: como tinha sido uma infância feliz; e como a responsabilidade fora, em parte, do nosso pai. Porque o nosso pai tinha a mania da fotografia. Nessa época não era assim tão frequente as pessoas andarem de um lado para o outro com uma máquina fotográfica atrás. Mas para o nosso pai era uma rotina quotidiana; podia aparecer a qualquer momento, apanhar-nos sem que o pudéssemos prever, e fotografar-nos. Detestava poses e nunca pedia para fixarmos a máquina ou para sorrirmos. Interessava-lhe fotografar apenas os nossos sorrisos reais, ou a ausência de sorrisos; não queria máscaras nem felicidades encenadas. Apenas a realidade. Se estivéssemos concentrados numa qualquer actividade ou jogo, se estivéssemos absorvidos num livro que líamos ou num desenho que criávamos, se estivéssemos simplesmente a olhar as nuvens com uma expressão indecifrável, se estivéssemos entretidos com nada na expectativa da chegada dos vizinhos ou dos primos para iniciar uma qualquer aventura: era certo que ele apareceria discretamente e captaria as nossas expressões reais-e-nada-encenadas com a sua máquina. Uma coisa que nos aborrecia era que nunca nos mostrava as fotos que tirava.
- Não interessa vê-las, importa que saibam que existem.
Era o que ele sempre dizia, irritando-nos um bocado. Mas com o tempo habituámo-nos, e creio que passámos a acreditar no que dizia. Importava saber que existiam. E por isso é que achamos – falámos disso no outro dia, eu e o meu irmão – que a felicidade subtil que nos acompanhou ao longo da infância se deveu muito ao nosso pai. Porque nos acostumámos à sua presença discreta, sempre atento aos nossos estados de espírito, sempre preocupado em captar e fixar as nossas emoções. Nossa testemunha. Gostávamos que ele nos fotografasse; precisávamos que ele nos fotografasse. É possível – não somos nós que achamos, mas talvez um psicólogo mais esperto o pudesse afirmar – que de algum modo inconsciente criássemos momentos que o nosso pai pudesse testemunhar. Não fingíamos, não inventávamos, não representávamos, não encenávamos. Não. Mas talvez nos esforçássemos por estar felizes para que o nosso pai pudesse assistir; e deixar-se contagiar por essa felicidade. Porque sabíamos que, para ele, a nossa felicidade era a coisa mais importante do mundo.
- A vossa felicidade é a coisa mais importante do mundo.
Dizia ele, depois de nos surpreender com a sua máquina fotográfica. E nós acreditávamos. Ainda acreditamos, apesar disto ter acontecido há muito tempo. Numa época em que não era frequente as pessoas terem a paixão da fotografia; numa época em que a fotografia era um passatempo caro, por causa do custo dos rolos e das revelações. Mas foi através da fotografia que nos ensinou sobre a banalidade da felicidade, sobre a sua omnipresença: em todo o lado, a todo o momento, sempre à espreita. E só muito depois da nossa infância feliz ter terminado é que o nosso pai confessou que não tinha fotos nenhumas; confessou que apenas fingia que fotografava.
- Não tinha dinheiro para comprar rolos.
Disse ele; ficámos a olhá-lo, incrédulos. E então ele riu; e logo depois rimos nós, eu e o meu irmão.