Passado a limpo # 04

Era uma vez um homem que ia perdendo amigos, um após outro. Não percebia porquê, limitava-se a constatar que se iam afastando lentamente, sem explicações nem atritos; como se tivessem ficado cansados ou desinteressados; ou como se tivessem amizades melhores noutro sítio qualquer. Nunca pensara no significado ou no valor de cada uma das suas amizades, apenas se habituara a que existissem; da mesma forma que não pensava no oxigénio que respirava. Não pensava no ar que expirava: não lhe sentia a falta porque já cumprira a sua missão.Como seria a vida se houvesse consciência de cada respiração que se faz?
Nunca lhe faltou o ar. Portanto, seguiu com a sua vida.
Até que fez anos. Organizou uma festa e convidou todas as amizades que ainda permaneciam. Foi uma festa animada e ruidosa, com muita presença de oxigénio; respirava-se bem. E houve entrega de presentes, geralmente estúpidos e com o único propósito de provocarem risadas. As amizades alimentam-se de riso, tal como o corpo se alimenta de toque, e o toque se alimento de desejo, e o desejo se alimenta de imaginação, e a imaginação se alimenta da memória de um corpo.
Uma das suas amizades preferidas, que um dia esteve quase a ser amante e que talvez esteja à beira de se cansar de ser apenas amizade, aproximou-se dele já no final da festa, quando o riso colectivo desvanecera e uma certa melancolia espreitava; com um sorriso, entregou o seu presente. Ele abriu o embrulho e logo riu, sonoro e despreocupado, confiante, encarando o que tinha nas mãos como mais uma piada.
- Não preciso de óculos, sabes que não preciso.
- Achas que vês bem?
- Claro que sim. Vejo especialmente bem ao longe.
- Esses óculos não são para ver ao longe.
- Também vejo muito bem ao perto.
- Esses óculos também não são para ver ao perto.
- Ah, eu sabia. Uma brincadeira. Não servem para nada.
- Servem, sim.
- Acabaste de dizer que não dão para ver melhor nem ao longe nem ao perto. Servem para ver melhor para onde, então?
- Para dentro.
- Muito engraçada.
- Imagina que são uns óculos inversos. Não para olhar para fora, mas para dentro. Servem para te veres melhor a ti próprio. São uns óculos-espelho.
Deu-lhe um beijo na testa, um beijo de ternura mas com remanescências de desejo não concretizado. Ele ficou a olhá-la: mais uma amizade que se afastava?
Colocou os óculos e aguardou, à espera que algo fizesse sentido. Subitamente, faltou-lhe o ar. Só durante um instante, mas faltou.