Já não há memória desses tempos, como se tivesse ocorrido uma combinação secreta, silenciosa, entre toda a humanidade para esquecer o que foi diferente. Mas houve um tempo em que todas as pessoas tinham um sentido extra. O sexto sentido era tão banal, e tão essencial, como todos os outros. Agora, já ninguém o lembra; mas houve tempos em que qualquer pessoa possuía a capacidade – hoje encarada como irreal ou até mágica – de reconhecer o que os outros sentiam. Da mesma forma simples e não consciente que alguém olhava para outra pessoa e via a sua expressão ou ouvia a sua voz, conseguia identificar se o outro estava feliz ou angustiado ou tenso ou excitado ou revoltado ou melancólico ou qualquer outra coisa.
Já não há memória disso, mas houve tempos em que as pessoas, todas as pessoas, eram transparentes. Não existiam segredos nem máscaras nem fingimentos nem representações nem hipocrisias nem mentiras. Porque não era possível, da mesma forma que não era possível evitar cheirar os outros. Vivia-se num tempo de total abertura; de evidência. Não era necessário perguntar a alguém como se sentia, se estava bem ou mal ou assim assim; bastava sentir o outro, e o seu estado tornava-se evidente.
Viveu-se desse modo durante séculos: em evidência.
Até que algo mudou, porque há sempre algo que muda. O tempo é apenas uma sequência de mudanças. A eternidade é apenas uma sequência de mudanças. A existência é apenas uma sequência de mudanças. Portanto, algo mudou.
Uma pessoa – basta uma; toda a mudança começa em alguém, através de alguém; e depois, propaga-se – sentiu desconforto por ser transparente; por ser evidente. E ousou pensar que havia emoções que gostaria de guardar apenas para si; emoções privadas; emoções opacas. Claro que aconteceu o óbvio: quem estava à sua volta percebeu esse desconforto, e compreendeu a sua origem. Esse pensamento, essa rebelião, ressoou nos outros. E assim, quase por acaso, iniciou-se uma onda de questionamento que, devido à transparência das emoções, se propagou a toda a humanidade.
O tempo é apenas uma sequência de acasos. A eternidade é apenas uma sequência de acasos. A existência é apenas uma sequência de acasos.
Depois, tudo se precipitou: todos perceberam as potencialidades da opacidade. Todos se inebriaram com a possibilidade de não serem completamente transparentes. Todos começaram a desenvolver mecanismos de dissimulação, protegendo o que queriam manter apenas seu. Como se quisessem manter o seu cheiro apenas seu; ou o seu toque apenas seu. Quiseram manter as suas emoções apenas suas.
Os mecanismos foram sendo aperfeiçoados, pessoa a pessoa. Na verdade, não há limites para a capacidade humana. Se a espécie, no seu conjunto, optasse por deixar de ver o outro, ou de ouvir o outro, ou de tocar o outro, certamente alcançaria esse objectivo. Mas optou por abdicar da capacidade de sentir o outro.
E agora já não há memória desses tempos, como se tivesse ocorrido uma combinação secreta, silenciosa, entre toda a humanidade para esquecer o que foi diferente.
Entendes?
Entendes-me?