Passado a limpo # 07

Hesitei um pouco. A viagem de autocarro demoraria mais de cinco horas; aceitando a oferta de boleia, reduziria o tempo de percurso para menos de três horas. O problema – o potencial problema – seria passar essas quase três horas na companhia de um colega que conhecia de vista mas com quem nunca conversara durante mais de vinte segundos. E se fosse um chato? Três horas com um chato é infinitamente pior do que cinco horas num autocarro. Mas arrisquei.Dois quase estranhos fechados num carro. Conversa inconsequente sobre o tempo, sobre a música que ia passando no rádio, de novo sobre o tempo. Depois, sobre o trabalho, sobre os colegas do escritório. Começámos a ser maldosos nos comentários que fazíamos sobre alguns desses colegas, e isso aproximou-nos: éramos nós contra todos os outros, estávamos do mesmo lado; tínhamos algo em comum. Dissemos maldades e rimos das maldades que dizíamos; o riso aproximou-nos mais.
Mas não conseguiríamos passar quase três horas a gozar com as vulnerabilidades dos colegas; o riso foi-se tornando mais raro. Regressámos aos comentários ocasionais sobre as músicas que ouvíamos com demasiada atenção. Depois, silêncio para ouvir as notícias. Faltavam mais de duas horas de viagem.
Restava o normal, que seria falar do que toda a gente fala: as viagens que faz, os restaurantes que conhece. Foi o que aconteceu: começou a falar da última viagem que fizera. Competia-me ouvir, e depois contar sobre a minha última viagem. São estórias sempre longas, e o tempo passaria; a conversa de circunstância e o entusiasmo fingido preencheriam o silêncio. Tudo o que fosse dito e escutado seria automaticamente esquecido quando saíssemos do carro.
Mas tivemos uma inesperada surpresa: descobrimos um interesse comum.
- A viagem foi meio chata, mas acabou por se salvar porque consegui tirar umas fotos bem boas.
- És fotógrafo?
- Sim, é um fascínio que tenho. Fotografar.
- A sério? Eu também.
Falámos de fotografia. Dos nossos projectos, das nossas motivações, da nossa paixão. Das máquinas e das lentes que tínhamos, das que queríamos comprar. Das aventuras a que nos sujeitámos para obter as fotografias que tínhamos idealizado. Falámos com entusiasmo, um em cima do outro, felizes por partilhar algo que nos era especial, felizes por nos sentirmos compreendidos. Felizes por descobrirmos uma língua comum. Próximos.
Foi então que ele olhou, foi então que percebi o seu olhar. Estava tão descontraída e confortável que nem reparara que encavalitara as pernas no tablier; o vestido descera e as minhas coxas estavam completamente visíveis. Ele olhou-as; notei esse olhar, e surpreendi nele mais do que curiosidade ou apreciação. Era um olhar que denunciava desejo. Mas a maior surpresa foi a minha reacção: não senti desconforto ou incómodo, não senti desagrado. O meu corpo respondeu ao desejo com desejo.
Senti-me corar, virei-me para a janela. Ele continuava a falar, e eu escutava-o; em segundo plano, mas escutava. Porque em primeiro plano estavam pensamentos de surpresa por me encontrar subitamente naquela situação. Pensei em como os mecanismos da excitação sexual, do desejo puro, eram incompreensíveis e incontroláveis; como o desejo de uma pessoa parece comunicar directamente com o desejo da outra pessoa, de forma livre e autónoma, numa linguagem própria que devasta qualquer racionalidade ou controlo. Olhava a paisagem monótona da auto-estrada e tentava ganhar tempo. Respirar. Surpreendera-me a reacção do meu corpo àquele olhar; tentava adaptar-me a essa reacção.
Só deixei de olhar pela janela quando tive a certeza de que já não estava corada. Ele ainda falava e senti vontade de o olhar, de o ver falar. Fixei-lhe o rosto durante um instante, mas logo o olhar fugiu; ziguezagueou até que, por acaso (não, não foi por acaso), se deteve na parte do seu corpo que procurava; tinha o pénis nitidamente erecto. Não quis desviar o meu olhar, que ele percebeu. Calou-se. O meu corpo reagiu; apertei as pernas, cruzando-as com mais força. Ouvíamos a música que passava no rádio. Ouvíamos o zumbido dos nossos corpos, tensos e exigentes. Tive vontade de estender a mão e sentir-lhe a dureza; mas não o fiz. Certamente que ele também sentiria vontade de me tocar (onde?); mas não o fez.
- Olha, tenho de parar na área de serviço.
- OK.
Estacionou o carro e saiu. Como se fugisse. Deixei-me estar, confortável com a tensão sexual que sentia. Com vontade de me tocar. Pensei de novo nos mecanismos do desejo, no modo enigmático como um simples olhar incendiava o corpo. Pensei em como a humanidade continuava vítima da sua animalidade intrínseca, apesar de toda a presunção e arrogância que atribuía ao seu intelecto. Ia resistindo à urgência crescente de me tocar enquanto começava a estranhar a demora. Que fora ele fazer, afinal? O que o estaria a reter durante tanto tempo? Será que se fora masturbar? Fixei-me nessa ideia, sem conseguir perceber se me excitava ou repugnava. E de repente – capum –, percebi: ele estava à minha espera.
Esta certeza, inesperada mas inequívoca, fez-me corar de novo; mas um corar diferente. Imaginei-me a foder de pé, à pressa, evitando fazer barulho, sôfrega, desajeitada, no cubículo de uma casa de banho pública de uma área de serviço; com um homem que quase não conhecia. E não gostei do que imaginei. Senti o corpo reagir, senti-o des-excitar-se. O desejo, que há alguns instantes parecia imperioso e incontrolável, esvaziou-se; abandonou-me, como se tivesse fugido pela janela do carro. Pensei vagamente que a imaginação pode ser um poderoso órgão sexual, mas também o maior dos desincentivadores. Pensei em como o desejo se liga e se desliga autonomamente, sem que nada o possa controlar; e que a intenção de o dominar é tão absurda como a vontade de suspender o movimento das ondas do mar.
Baixei as pernas e ajeitei-me no assento. Olhei pela janela (a mesma por onde o desejo fugira) e vi as pessoas que passavam, silenciosas e apagadas.
Ele ainda demorou bastante tempo a regressar ao carro. Continuavam a faltar mais de duas horas de viagem.