Route 66


Estou cansado, após tantas horas de condução. Mais uma vez, penso que este projecto de percorrer a máxima extensão possível na mítica Route 66 foi uma ideia idiota. Mas não vale a pena estar com lamentações ou arrependimentos, há que seguir em frente. E em frente apenas vejo estrada vazia, sem nada de mítico.
Entrei há pouco numa pequena povoação mas mal olho para a paisagem que vai ficando para trás, sem deixar qualquer marca em mim. Quantas pessoas viverão aqui? Menos de mil, certamente; conhecerão todos os nomes umas das outras? Não vejo ninguém, além das pessoas invisíveis que conduzirão os esporádicos carros com que me cruzo e que parecem seres mecânicos independentes, desumanizados. Talvez aqui domine a condução autónoma e todos os carros andem a passear sozinhos, autonomamente; para espairecer.
Não vejo uma única pessoa na beira dos edifícios modestos que ocupam ambos os lados da estrada que vou percorrendo. Sinto uma certa sensação de abandono, como se não existisse ninguém por perto; como se estivesse a atravessar uma floresta densa e inabitada, interminável, e não uma povoação repleta de casas onde viverão pessoas que optaram por estabelecer raízes ali, precisamente ali, e em mais nenhum lugar. Ali, na berma da estrada mítica.
Impressiona-me a sensação de espaço aberto; as casas estão distantes umas das outras, implantadas no terreno como se estivessem de passagem. Cada casa parece ter passado por acaso ali, numa distante manhã de primavera, e decidido parar para apreciar a paisagem. Casas em movimento; sem vínculos com a terra que ocupam. Jardins e vedações: exemplos de vínculos inexistentes ali.
Passo e observo sem realmente pensar no que vejo. Sem registar nada na memória; ou no corpo. Estou de passagem, como as casas estiveram um dia.
É então que vejo o sofá. À beira de meia dúzia de árvores pouco imponentes e que também parecem estar de passagem; ou de partida. Na zona de influência de uma casa, mas ligeiramente afastado. Não parece estar abandonado, mas também não parece ser uma presença que faça sentido ali; nas traseiras daquela casa, à beira daquelas árvores sem sombra, na berma desta estrada mítica.
Passo pelo sofá.
Depois, tento espreitá-lo no espelho e fico a vê-lo desaparecer lentamente.
Primeira estupidez: sigo o impulso absurdo de voltar atrás para rever o sofá.
Segunda estupidez: sigo o impulso absurdo de parar o carro e olhar o sofá como se fosse a mais impressionante maravilha natural.
Terceira estupidez: sigo o impulso absurdo de sair do carro.
Depois, deixo de contar. Limito-me a acumular uma estupidez após outra.
Sento-me no sofá. E por um momento, um breve momento, é bom não estar de passagem. Respira-se melhor quando não se está de passagem.
Olho em frente e tento imaginar o que poderá ter sentido a última pessoa que se sentou aqui. O que viu? Em que pensou? O que sente quem vive na beira da estrada mítica? Gostará de observar quem passa, de lhe imaginar destinos? Terá inveja de quem não permanece ou sentirá alívio por não estar de passagem?
Não é um sofá confortável; ainda assim, sinto-me bem; tranquilo. Há um carro estacionado na entrada, certamente que estará alguém em casa. Alguém que poderá vir a qualquer momento para me expulsar. Ou para me perguntar se está tudo bem. Alguém que talvez se sente no seu próprio sofá e contemple o vazio comigo, em silêncio.
Estou cansado. Não tenho vontade de estar em qualquer outro lugar. As árvores ignoram-me. Um carro passa. Sinto um cheiro que não consigo identificar, mas que me pacifica. Não me apetece nada, além de estar; e talvez isso seja uma forma de liberdade. O silêncio parece espesso. Por vezes, há brisa. Adormeço.
Não sei durante quanto tempo durmo. Quando acordo, a primeira coisa que vejo é o jipe parado mesmo à minha frente; nas portas, o desenho da cabeça de uma águia e as letras cor de laranja. Police.

Gaza

Chumbo
O especialista explica que são assuntos muito complexos; que é necessário estudar muito; que as pessoas que formulam opiniões não sabem o que estão a dizer; que é estúpido ver as coisas em termos simplistas, reduzindo tudo ao bem e ao mal, ao certo e ao errado; que o mundo não pode ser visto a preto e branco, é preciso ter inteligência para saber que há muitos cinzentos. A jornalista acena com a cabeça, olha o especialista nos olhos, faz-lhe uma pergunta: «Imagine que agora recebe um sms a dizer que lhe mataram os filhos; como iria classificar essa situação? Talvez como um cinzento chumbo?»

Clarificação
O que farias se o teu filho estivesse a morrer de fome?

Cumplicidade
Eu faço-te mal e tu fazes-me mal e o mal que cada um de nós faz vai alimentar o mal que o outro nos fará. E assim continuaremos para sempre, juntinhos, porque confundimos o mal que causamos ao outro com o nosso próprio bem. Assinado: senhores do governo de Bibi Netanyahu e senhores do Hamas.

Evolução
Provérbio africano antigo: "É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança." Versão actual: “É preciso que um planeta inteiro permaneça indiferente para que uma criança morra de fome.”

Falecimento
Fim de vida. Ponto a partir do qual apenas resta a memória de alguém que já não existe. Mas de que serve a memória a uma criança que acabou de morrer? Brinca com ela, como se fosse um berlinde? Talvez um berlinde que rebola preguiçosamente na terra removida do cemitério, em busca de uma cova?

Herói
Há crianças a correr em busca de comida. Disparo, porque posso, porque quero; talvez mate uma ou duas. Sou um herói.

Homenagem
Saía pela manhã, logo após o nascer do sol, e caminhava pelas ruas ao acaso, sem pressa nem destino definido. Falava alto, falava sozinho. Dizia nomes. Um após outro, repetia em voz alta os nomes dos mortos. Para que as ruas não os esquecessem. Para que as ruas não os esquecessem.

Inanição
Qualidade de inane; vacuidade. Estado de fraqueza extrema provocado por falta de alimento. Debilidade; fraqueza; causa de morte atroz. Acção conscientemente perpetrada por um governo eleito. Acção para a qual contribui activamente o comportamento de um grupo terrorista. Acção genericamente consentida ou tolerada por desinteresse, cobardia ou impotência. Desespero de uns durante as férias de outros.

Inominável
Que designação se dá ao local onde permanecem (para sempre?) os sonhos das pessoas que morrem demasiado cedo?

Magnificência
Na noite passada fizeste amor? E foi bom? Sentiste a magnificência da vida? O prazer simples de respirar e sentir e ser e estar? Adormeceste em paz? É desse modo que lutas contra a tua desumanização?

Prostração
Sentimento de desconsolo e desistência, de prostração desamparada, quando se vê a casa onde se viveu – onde se foi feliz – em ruínas; destruída; sem reparação possível; morta. Sim, talvez as casas até possam ser reconstruídas; mas não ressuscitam.

Relativismo
Custou ler? Deixa lá, morrer é pior.

Dicionário improvisado XXXIX

Artista em ascensão


(Foto: Cristina Vicente)

Aisha






Produção Nem Marias Nem Manéis #3

Livraria Arquivo, Leiria
Fotografia de cena: Cristina Vicente

Ocupação


Cruza as pernas como uma rainha
8 de Agosto, 20h30
Fátima

Dicionário improvisado | 001 » 299

abril adiamento afinidade alegria alma alucinação amizade amnésia amor ampulheta anonimato apocalipse aprendizagem aproximação arco-íris areia armazenamento asas assassinato auto-consciência automatismo autoritarismo azul bagagem baliza beijo berçário berlinde biblioteca bombardeamento bondade camada casa castelo cegueira céu chumbo circulação círculo clarificação cobardia cobertor colecção comunicação concretização confiança conformismo conforto conhecimento consciência contabilidade contaminação contorno coração correlação cortesia cortina crescimento criação crueldade cumplicidade dádiva decoração demagogia descolamento desejo desenho desfasamento desfrutar desgaste desmistificação despedida despotismo desprendimento destino detalhe diário dilema discernimento disrupção distância ditadura dor dualidade dunning-kruger ebulição egocentrismo egoísmo elevação embate empatia entretenimento envelhecimento equívoco escala esclarecimento escombro espaço espelho esperança espontaneidade esquecimento estatística estupidez eternidade eufonia evolução existencialismo expansão expectativa exterior exumação fake-news falecimento família fantasia fascismo felicidade filofobia fingimento fio fixação forca fortaleza fracasso fronteira fungível futebol futuro gás gaza generosidade genocídio ginástica gravação habilidade herói história homenagem humilhação identidade ignorância ilusão imaginação improviso inanição inclemência inconformismo inconsciência inconstância independência indício individualidade indústria inevitabilidade infância inferno início iniquidade inominável instante interculturalidade interruptor invenção invisibilidade irracionalidade jardim julgamento lentidão leveza liberdade libertação ligação literatura livre-arbítrio magnificência mahsa mapeamento máquina mariupol massacre matemática medo melancolia memória memorial mensagem meteorologia mistério monólogo morada morfina morte mudança multidão narcisismo nefelibata normalidade nudez nuvem obsolescência obviedade opressão optimismo origem paciência paradoxo passagem percurso perenidade perfeição pergunta permanência personalidade perspectiva poesia pólen policromia poluição ponte populismo pormenor porta possibilidade poupança prazer presciência presença prioridade prisão processo procrastinação prostituição prostração protecção prudência pusilânime queda racionalidade rafah raiz realidade reciclagem reflexo regresso relatividade relativismo religião repetição resistência respiração ressonância revelação revolução rosto rotina rotunda sabedoria sangue sanidade saudade sedução segunda-feira semântica sentido silêncio simplificação singularidade sobrevivência solidão sonho sopro striptease sucesso sufoco tempo ternura terrorismo tigre tolerância tonalidade toque torneio trânsito transparência ucrânia unidade uníssono urgência utopia vassalagem vazio vento vestuário vida visão visibilidade voo vulnerabilidade

As dúvidas de Deus





Revista Al – Khátima # 3
Com fotografia de Elsa Arrais

IV

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Aequilibria





Livro de parede

23.
«Repara como somos tão pequenos neste planeta, e como este planeta é tão pequeno no universo. Somos insignificantes, se comparados com a imensidão das estrelas; são tão mais grandiosas do que nós, não achas? Mas ainda assim, apesar da nossa pequenez, podemos olhá-las e imaginar que formam desenhos, imaginar que são parte de algo ainda maior. Podemos olhar para as estrelas e ver ursos ou touros ou serpentes ou pombas ou cães ou cisnes ou golfinhos. Podemos ver todo um imenso jardim zoológico, livre e belo, quando olhamos o céu. E é assim que podemos entender a natureza, o universo, tudo aquilo que é tão mais imenso do que nós: com a imaginação.»

A pele da alma


Livro A PELE DA ALMA
Com ilustrações de Maraia

Será que existem pensamentos novos?
Ou apenas infinitas variações dos mesmos pensamentos de sempre?
Será que durante um dia tenho mil pensamentos diferentes ou cem versões alternativas de dez pensamentos originais?
Quais serão os meus pensamentos primordiais?

[Brevemente]

Cruza as pernas como uma rainha




Fórum de Arte e Cultura de Espinho
24 de Julho de 2025
Fotografia de cena: Cristina Vicente

A pele da alma


Livro A PELE DA ALMA
Com ilustrações de Maraia

Gosto de falar comigo. 
Sim, dizem que os doidos é que falam consigo próprios. Mas prefiro ser doida do que estar calada. Doidice seria deixar as palavras acumularem por dentro, permanecerem e criarem raiz. Crescerem. É esse o destino das palavras não ditas: crescerem por dentro do corpo e contaminarem. Apodrecerem.
As pessoas silenciosas estão podres por dentro.
As faladoras também. Mas são podridões diferentes.
A podridão silenciosa é uma forma de apagamento. A podridão ruidosa é uma forma de revolta.

[Brevemente]

Onde pousar as raízes

Onde pousar as raízes é a primeira versão do texto que, após múltiplas alterações (incluindo o título), daria origem à peça A casa que temos dentro, estreada em 15 de Maio de 2025 no Grande Auditório do Fórum da Maia.

Texto: Paulo Kellerman
Encenação e Dramaturgia: Cátia Ribeiro
Representação: Rita Rosa, Catarina Mamede, Andreia Mateus e Cátia Ribeiro
Coreografia de movimento: Cátia Ribeiro e Rita Rosa
Música: Nelson Brites
Luz: Rui Capitão
Vídeo: Andreia Mateus e Cátia Ribeiro
Ilustração: Maraia
Fotografia de cena: Cristina Vicente

Uma produção da Companhia Teatral Nem Marias Nem Manéis.

Estendal fotográfico










Estendal fotográfico

Latitudes (Ana Gilbert + Cristina Vicente)
Aisha (Ana Gilbert + Paulo Kellerman)

Casa da Lídia - Leiria
Verão de 2025

A casa que temos dentro





Fotografia de cena: Cristina Vicente

Cruzamentos

Até as pedras precisam de raízes


















Até as pedras precisam de raízes
Ópera na prisão | Maio de 2025 | Produção SAMP
Fotos: Joaquim Dâmaso