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Janelas que se abrem, sorrisos que nascem.




Janelas que não se fecham, sorrisos que permanecem.

O mito da criação

Havia um jovem deus que vivia num sítio pouco conhecido do universo. Certa vez cometeu um desvario que irritou os pais e foi castigado; deveria passar um dia longe de casa. Para cumprir a punição, optou por um pequeno planeta abandonado, de que nada se sabia porque ficava distante. Não era uma escolha óbvia, sendo o seu objectivo deixar a mãe um pouco ansiosa; desse modo, talvez ela abreviasse a duração do castigo. Lá foi cumprir a sua penitência; contudo, logo se arrependeu da escolha: era um sítio sem vida nem emoção, sem diversidade, onde dominava o azul dos oceanos e o castanho da terra; e nada mais existia. Deambulou por ali sem propósito nem objectivo, apenas para passar o tempo. Mas como tantas vezes acontece, o aborrecimento gerou acção. Quis atenuar o tom monótono daquela paisagem. Porque sim. Porque podia. E assim fez: imaginou umas criaturas simples mas belas que se ergueriam do solo em direcção às nuvens e se agitariam suavemente ao ritmo do vento. Inundou o planeta de árvores; o verde passou a ser uma das cores dominantes e o sussurro das folhas a agitarem-se propagou-se em todas as direcções. O jovem deus contemplou a sua criação e durante algum tempo sentiu-se bem consigo próprio. Mas depois interrogou-se sobre as limitações do que fizera. Cada árvore estava fixa num local e impossibilitada de se mover, pelo que apenas podia contactar com as suas vizinhas; e se determinada árvore quisesse estabelecer relações com uma outra árvore que vivia distante? Pareceu-lhe que a melhor forma de ultrapassar esta limitação seria criar um modo de as árvores comunicarem à distância, transmitindo entre si mensagens e emoções. E assim nasceram os pássaros. Passeou pelas florestas e viu como ficavam repletas de aves de todas as cores e formatos, que se agitavam de ramo em ramo, elegantes e alegres, transportando os recados das árvores, criando uma sonora rede de infinitas conexões; enchendo o ar de música. Entusiasmou-se com o seu poder e foi adicionando novas criações, imaginativas mas pragmáticas, sempre em função das árvores e das suas necessidades. Foi assim que, por exemplo, surgiram os macacos para colherem as frutas ou as iguanas para controlarem o excesso de folhas ou tantos outros animais que desempenhavam tarefas específicas. E se uma árvore morresse? Deveria permanecer indefinidamente no local onde vivera? Achou que não. Sempre que uma árvore morresse deveria ser cuidadosamente recolhida, transportada, homenageada; e para desempenhar essa delicada função, surgiram os homens. A sua criação, nascida do aborrecimento, aperfeiçoava-se. E estava tão entretido que até se irritou um pouco quando a mãe o chamou; a estratégia resultara e o castigo fora abreviado. Mas a verdade é que estava orgulhoso: dera uma nova vida àquele planeta e dispusera as coisas de forma a que essa vida se desenvolvesse harmoniosa e durável, autónoma; feliz. Pensou: é bom ser um deus. E regressou a casa, logo esquecendo o planeta das árvores.

Crónica para o Jornal de Leiria.