Marionetas

«Se pudesse escrever num jornal, gostaria de falar de algo em que reparo mais desde que entrei no secundário: parece que as pessoas acompanham os actos dos outros apenas à espera de encontrar um erro, para depois emitirem uma opinião ou fazerem um julgamento. Confunde-se emitir opiniões com caçar defeitos e há muita gente que apenas fala para dizer mal, para criticar. Não me importo com o que as pessoas fazem, desde que não magoem ou afectem os outros; e acredito que todos devem ser livres de se exprimir, de revelar o seu verdadeiro eu. Mas parece que a maioria se ofende com pouco e vai ligando cada vez menos àquilo que verdadeiramente importa. Forma-se um ciclo vicioso: uma pessoa habitua-se a dizer que está bem quando não é o caso (talvez porque não se queira fragilizar ou se tente convencer que está mesmo bem) e as coisas desse modo nunca se resolvem, apenas pioram; as relações baseiam-se num certo fingimento e indiferença, nunca se conhece o que o outro realmente sente porque se valoriza mais o parecer do que o ser. Um exemplo dessa incapacidade em ver e aceitar a diferença nota-se nalgumas pessoas que se consideram feministas e acham que isso é algo que envolve apenas o sexo feminino, quando o feminismo não defende a superioridade de ninguém mas a igualdade dos géneros. Não há regras escritas mas na prática a sociedade dá-as como definitivas; e essas regras, os papéis rígidos que a sociedade impõe, aprisionam-nos. Acredito que cada um é como é e gosta do que gosta, o resto é palha. Mas muitas pessoas vão seguindo as regras impostas e nunca são verdadeiramente felizes, transformam-se numa espécie de marionetas da sociedade. Fecham-se nas suas certezas e se olham para o lado é apenas para criticar. Acredito que a mudança começa no indivíduo, ao ter confiança em se afirmar, assumir a sua diferença, não ser escravo do que a sociedade determina quando aquilo que a sociedade determina é injusto. E não entendo por que motivo as pessoas continuam com mentes tão fechadas, bastava que houvesse respeito e compreensão pela diferença, que houvesse tolerância. Mas se as pessoas não têm coragem de ser como querem e mostrar o que são, nunca se sentirão livres, nunca serão verdadeiramente felizes. E assusta-me viver num mundo assim. Creio que é importante pensarmos em nós e nas consequências das nossas acções, mas é ainda mais importante não pensar apenas nisso, pensar também nos outros. Percebermos que somos singulares e devemos pensar por nós, termos o nosso mundo; mas nunca esquecer que o mundo não é nosso. Era disto que gostaria de falar, se tivesse oportunidade de escrever num jornal. Porque apesar de ter a completa noção de que não iria mudar nada, gostaria de acreditar que talvez encontrasse um leitor com paciência e curiosidade para ler o texto com atenção, alguém que partilhasse algumas das minhas ideias. Alguém que acreditasse, como eu acredito, que se queremos que as coisas fiquem melhores temos de ser nós a fazer por isso.»
(A Maria tem quinze anos e falou durante meia hora quando lhe coloquei o desafio: “Se pudesses escrever num jornal, o que gostarias de dizer?” Esta crónica é um pequeno resumo do que disse.)

[Crónica para o Jornal de Leiria]

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Estória em cinco partes a partir de fotos de Sílaba Súbita.






E agora?

[Um conto com vinte anos.]


I

Espreito pela janela: o imenso azul do céu convida-me à liberdade, desafia-me a partir. A manhã está fria, o sol acaba de nascer e parece espreguiçar-se pelo céu como se também a ele lhe custasse enfrentar mais uma segunda-feira. Decido apressar-me, antes que a coragem me abandone. E concentrado na imagem que guardo do céu, imaginando o que poderei fazer debaixo daquele azul libertador, regresso ao interior do quarto, regresso à realidade. Ela move, ameaça acordar; e o pavor de ter de lhe falar invade-me, avassalador: seria incapaz de pronunciar uma única palavra, não saberia o que dizer.
Quase corro até à casa de banho, tranco a porta com estrondo. E apenas quando a água quente do chuveiro me metralha, com violência e indiferença, sinto alguma serenidade. Espreito um pedaço de céu pela pequena janela: mantém-se azul, convidativo. Espera-me. Os pensamentos vêm e partem, atropelam-se. Excitam-me e angustiam-me, passam por mim como se não me pertencessem. Como se fossem segredos murmurados por um anjo da guarda. E deixo-me ir, indefeso, seduzido.
Visto-me, apressado. Tento não olhar nada, porque sei: o último olhar dói. Não quero despedidas, é mais fácil esquecer. E esta casa, esta vida, deve ser esquecida.


Ainda dorme. Queria sair e desaparecer para sempre mas não tenho coragem; ainda. Seria mais fácil, menos hipócrita: deixá-la a dormir e sair. Mas sou incapaz, por uma última vez tenho de representar a comédia familiar, fingir que esta não é a última manhã que passamos juntos. Talvez dar uma explicação.
Estou sentado na cozinha e o tempo passa. Olho o copo de leite que está à minha frente e pergunto-me quem o terá derramado no copo, não me lembro de o ter feito. O silêncio quase tétrico do apartamento incomoda-me, não sei o que fazer com as mãos. Não sei o que fazer com os pensamentos. Olho o copo de leite. E o tempo vai passando, vazio e fútil.


Ouço-a levantar-se. Pequeno arroto. Tosse. Ruído do isqueiro. Mais tosse. Sinto a tensão percorrer-me o corpo, o medo espreitar. Apetece-me fugir, desejo irracionalmente que venha um tremor de terra e me salve. Ouço passos e ei-la: está nua e a beleza do seu corpo perturba-me. Segura o cigarro com uma mão, ordena o cabelo selvagem com a outra. Passa por mim e, sem me olhar, deposita-me um beijo seco e indiferente na testa. O seu gesto choca-me: não indicia ternura nem sentimento nem amor. É apenas uma acção mecânica e irreflectida, condicionada por dez anos de rotina. Indiferente, como alguém a sacudir a cinza do cigarro num cinzeiro.


Sacode a cinza do cigarro num cinzeiro e desaparece na casa de banho. Pego no copo de leite e bebo um trago; amarga, apetece-me cuspi-lo.
Vagas recordações do passado invadem-me a mente, perturbam-me as ténues e incipientes fantasias de liberdade. Tento esquecer. Uma nuvem de nevoeiro chega da casa de banho e confronta-me com a realidade: um corpo que toma banho e do qual preciso despedir-me. Aguardo.
Quando passa por mim, sem me olhar, tento dizer alguma coisa. Depois, sons desordenados chegam do quarto; atrapalho-me com os pensamentos, não consigo dominar a ansiedade. Levanto-me e procuro-a. Está a vestir as cuecas. Noutros tempos (noutra vida), teria simplesmente despido as calças e faríamos sexo. Prazer. Passado.
Fico a vê-la vestir-se, tentando encontrar palavras. Ignora-me. Passa por mim, sem me tocar, e volta a fechar-se na casa de banho. E é quando ouço o baque da porta que percebo (admito): não terei coragem. Não direi uma palavra. Serei, uma vez mais, o cobarde que sempre fui. Direi até logo e fugirei para longe, na direcção do céu. Admito-o.
E uma sensação de alívio invade-me, lenta e libertadora.


Quando ela sai da casa de banho, atravesso-me no seu caminho e dou-lhe um beijo na testa. Digo até logo. Saio e fecho a porta. Tudo muito rápido, como se temesse arrepender-me e voltar atrás. Mas não volto. Caminho pelo corredor, firme e resoluto.
Pergunto-me: e agora?


II

            Pergunto-me: e agora?
            Quando ouvia porta fechar, senti uma onda de alívio invadir-me, lenta e libertadora. Mas, e agora?
            Sento-me num canto da cama e fecho os olhos. Apetece-me chorar: dez anos depois, aqui estou. Parece que foi ontem, parece que passou uma eternidade. Mas acabou, a eternidade. E quero sentir-me feliz mas não consigo, teria vergonha se me sentisse feliz.
            Pensamentos desordenados atropelam-se, procurando captar a minha atenção. Mas a minha atenção não se deixa captar e voa, anárquica, em busca de tudo, encontrando nada. Deixou ali no chão as meias azuis que comprei no Verão passado, naquela loja do shopping perto dos cinemas, fazia um calor dos diabos nesse dia; e havia um rapaz que não tirava os olhos das minhas pernas. Era bem bonito, o rapaz. E as minhas pernas também. Bastaria ter estalado os dedos e seria meu, como no tempo da escola, tanta vez que estalei os dedos, e havia rapazes e beijos e prazer. Há tanto tempo que não tenho prazer. Devia ter estalado os dedos; olho as meias azuis abandonadas no chão e penso: devia ter estalado os dedos.
Levanto-me, decidida a apanhar as meias mas mudo de planos e não o faço. Fico parada no meio do quarto, com a mão estendida. Congelada. Sentindo-me patética.


E agora?
Tive uma última oportunidade para tentar explicar, para o fazer perceber, para me despedir. Não a usei, fui cobarde, tive medo de mim; de ir longe demais, de não ir tão longe quanto devia. Ou terá sido, simplesmente, preguiça?
Talvez. Afinal, explicar o quê? Como se explica que o amor acabou? Não se explica, sente-se; sobrevive-se; continua-se.
É melhor assim. Sem explicações.


Levanto-me e caminho pelo apartamento, tocando ao acaso nos objectos, despedindo-me deles. E tento convencer-me: se ele tivesse feito qualquer coisa, se tivesse dito uma palavra, poderia ter sido diferente. Se tivesse entrado na casa de banho e ficasse a olhar-me, a devorar-me o corpo com aquele seu olhar de infantil deslumbramento que tanto amei, talvez o tivesse puxado para a banheira; ou talvez ele tivesse percebido o quanto queria que me fodesse contra qualquer coisa; talvez conseguíssemos encontrar um vestígio de amor. Mas não entrou na casa de banho. Ficou a olhar para o copo de leite.
Afasto o ímpeto de nostalgia que me foi dominando, tento controlar as emoções. Caminho, quase firme, na direcção da porta, abro-a, lanço um último olhar para tudo o que vou abandonar. Não consigo evitar a antecipação: ele a abrir a porta e a observar o apartamento exactamente do mesmo ângulo que olho agora; e descobrir que parti. O que pensará? O que sentirá?
Puxo a porta e enfrento o corredor, decidida.