Lei da inércia

Sabes quando aceitei que a nossa relação estava a correr mal? No momento em que percebi que olhava para ti e pensava em física. Já viste uma tontice destas? Pensar em física. Mas foi o que aconteceu, por mais estranho que pareça. Por exemplo. Olhava para ti e pensava: há uma lei qualquer que estipula que a energia não se cria nem se destrói, apenas se transforma. E depois, sempre a olhar para ti, perguntava-me porque não aconteceria o mesmo com o amor. Olhava-te e pensava como seria mais fácil se o amor nunca se perdesse e se fosse transformando. Foi aí, enquanto pensava isso, que comecei a aceitar que o nosso amor estava a perder-se, contrariando as leis da física. Poderia ter falado disto contigo mas pareceu-me que talvez fosse demasiado tarde; e na falta de melhor, talvez para me distrair ou para ganhar coragem não sei bem para quê, continuei a pensar em física. Outro exemplo. Ao que parece, a energia, quando contida dentro de um sistema isolado, conserva-se e mantém-se constante. E pensava como seria mais fácil se a nossa relação fosse um destes sistemas isolados, onde o amor – que no fundo é a mais pura forma de energia – se mantivesse constante. Pensava estas estranhezas enquanto vias os noticiários na televisão, em silêncio; olhava-te e ficava subitamente com vontade de rir, porque tentar extrapolar as leis da física para um relacionamento é coisa bem estúpida de se fazer. E tu vias-me rir e talvez pensasses que estava feliz, ou algo assim. O que me dava ainda mais vontade de rir, porque rir também pode ser uma forma de chorar. Estavas ali ao meu lado, assistias ao meu riso e assumias que estava tudo bem. É sempre assim, deduz-se que o riso é sintoma ou consequência de felicidade. Será uma espécie de lei em que as pessoas acreditam firmemente e não questionam, como as leis da física. Mas cá para mim, todas as leis – incluindo estas tretas da física – são simples questões de fé; as pessoas acreditam porque querem acreditar, porque precisam de acreditar, porque não conseguem deixar de acreditar. E para muita gente deve ser mais racional acreditar na imortalidade da energia do que na imortalidade de um deus qualquer; ou então, deus e energia é a mesma coisa. Portanto, lá estava a olhar-te e a pensar em física, que é uma coisa chatíssima, cheia de leis e dogmas e fórmulas. Como uma religião. Mas talvez pensasse em física para tentar perceber-nos melhor, em busca de uma possibilidade de solução; porque se existem todas essas leis sobre energia e movimento e mais não sei quê, no fundo talvez o amor se possa reduzir a isso mesmo, talvez seja composto por energia e movimento. Talvez o amor seja física pura, pensava eu. Que bom seria se pudéssemos reduzir o sentimento a meia dúzia de leis universais; como seria mais fácil. Ou talvez fosse algo terrível, nem sei bem. Mas regressando à física, há uma regra que estipula que um objecto em repouso assim permanecerá indefinidamente se não for alvo da acção de uma força. Ou seja, é preciso energia para originar movimento. Tal como é preciso amor para que uma relação avance. E se a energia nunca se perde, o movimento jamais deveria cessar, não é? Tudo muito bonito, estas certezas e postulados e axiomas e o raio, mas que pena que não tenham qualquer aplicação verdadeiramente interesse. Aliás, parece-me um bocado estúpido que as pessoas inteligentes passem as suas vidas a tentar entender e explicar o movimento e a energia em vez de dirigirem os seus esforços para a tentativa de compreensão de algo bem mais relevante, como o funcionamento dos afectos. Estudam esta coisa do movimento e dão-lhe nomes parvos, como lei da inércia. Uma idiotice, acho eu; são todos uma cambada de inertes. Sabes o que penso? Se os cientistas e filósofos que existiram ao longo dos séculos tivessem uma vida sexual intensa, deixavam-se de coisas enfadonhas e centravam-se em algo bem mais interessante. No fundo, tudo se resume a pensar demais, e pensar demasiado é muitas vezes uma simples questão de falta de sexo. O mundo é o que é porque ao longo dos tempos os pensadores e cientistas, os intelectuais, não fodiam; e então entretinham-se com leis e teorias. Talvez seja essa a inércia a que se referem: falta de sexo. Mas lá estou eu a divagar de novo, desculpa. Dizia-te que olhava para ti e pensava em leis de física. Mais um exemplo, então. Há uma que afirma que as forças surgem sempre aos pares e cada um desses pares é formado por forças activas e reactivas. Não sei se percebi isto muito bem, suponho que signifique que se um corpo exerce força, haverá sempre outro a exercer uma força contrária mas não necessariamente simétrica em intensidade. Ora, já se sabe onde quero chegar. Afinal, nem todas as leis físicas são dispensáveis porque esta, pelo menos, aplicava-se bem a nós. Eram esses os termos que descreviam o nosso relacionamento: forças contrárias, acção e reacção. E, portanto, ficava a pensar nisso enquanto vias o noticiário, já sem rir. Sem nenhuma vontade de rir. Acção e reacção. Mas nós os dois em estado de inacção. Até que houve um dia em que reparei verdadeiramente no que pensava; e então soube que algo estava mal. Tomei consciência. Aceitei. Porque, na verdade, deveria pensar no modo como me fazias sorrir e sentir especial ou no modo como me tocavas e incendiavas o corpo ou no modo como o teu abraço me amparava e protegia. Em vez disso, pensava em leis. Pensava demasiado, como os cientistas. Falta de sexo, como os cientistas. Percebi tudo, então. Foi essa a forma de consciencializar que encontrei, a forma de perceber e enquadrar o que sentia; através da física e das suas leis. Olhava-te e pensava: talvez o amor não se perca, tal como a energia não se perde; talvez se transforme mas, no nosso caso, transformou-se em não-amor, em nada. Olhava-te e pensava: és um corpo inerte, sem acção nem reacção e não há física que me faça permanecer junto de ti. Olhava-te e pensava: nunca mais quero pensar em física. E agora, enquanto te falo e te olho, estou a pensar como seria mais fácil se dissesses algo. Qualquer coisa. Qualquer coisinha. Reages?