Agosto


Calendário Improviso.
Doze textos para doze fotos de Sílvia Bernardino.

Espelhos sem luz

Como um conto pode ser o ponto de partida para uma análise surpreendente...
Obrigado, Ana Gilbert.

Um olhar

Por vezes, basta um olhar para viajar no tempo. Por exemplo: olho-te e instantaneamente regresso a 2013, àquele fim de tarde em que quiseste que o nosso passeio de bicicleta pelo campo seguisse um trajecto mais longo do que o habitual e escolhemos um caminho que, afinal, nunca mais acabava, ambos cansados e arrependidos porque cinco quilómetros é uma coisa e quinze é outra, forçados a pedalar furiosamente para fugir de um cão que veio atrás de nós com vontade de usar os dentes (lembras o cantar das cigarras, o cheiro doce de toda aquela verdura, o toque da brisa no rosto?). Mas logo depois já estou na manhã de natal de 2009, a mesa coberta com os legos acabadinhos de receber, os dois a construir casas com telhados amarelos e a conversar sobre os natais passados. No instante seguinte salto para 2014 e para as dez horas de espera à porta do estádio do Porto enquanto vivias o sonho de assistir ao primeiro grande concerto da vida. E como não ficar preso à manhã de Inverno de 2004 em que foste operada ao coração e durante algum tempo o mundo parou? Como não sorrir ao regressar àquele dia de 2017 em que tiveste vinte num exame nacional? O olhar ainda é o mesmo mas já me faz regressar ao dia de 2015 em que, pela primeira vez, pediste um livro meu para ler. Sorrio ao lembrar o sábado de 2007 em que aprendeste a cantar comigo a música do Tom Sawyer. Sorrio ainda mais ao recordar o dia de2011 em que criámos um blogue para publicar os teus desenhos e começaste a coleccionar elogios. Continuo a sorrir ao recordar aquela tarde de 2005 em que vimos juntos mais um filme da Barbie e a certeza que tive de que iria sentir umas saudades imensas daqueles filmes idiotas cheios de cantorias. E de repente já estou a recordar o dia de setembro de 2006 em que foste pela primeira vez à escola, revivo aquela sensação entusiasmante mas também melancólica de que algo muda para sempre que senti ao ouvir o click do portão a fechar. Lembro aquele dia de 2008 em que tive a ideia de te subornar porque gostaria de dar um passeio longo até à feira das velharias e tu não querias porque era mais de uma hora a pé; então, propus incluir no passeio uma ida ao McDonald's e lá fomos até às velharias procurar discos e livros antes de comer batatas fritas e recolher um par de brinquedos. Lembras? Para inevitavelmente regressar à manhã de um domingo de Agosto de 2000 em que nasceste e o mundo se transformou noutra coisa, em algo infinitamente melhor. Tudo isto num único olhar. És como uma máquina do tempo, que me mantém ligado ao passado, que me oferece uma perspectiva do futuro, que me dá sentido no presente; tudo em simultâneo. Basta um olhar porque tudo pode estar contido num simples olhar, porque também o olhar sente e pensa e toca e guarda as suas próprias memórias. Basta um olhar para perceber que cada momento é multidimensional, composto por uma infinidade de sensações, memórias, sonhos, afectos, ilusões, sentimentos, emoções, projectos, palavras, toques, possibilidades, medos, fantasias, prazeres, angústias. Porque é de tudo isso que são formados os momentos, cada momento. E é tudo isso que me tens proporcionado desde um domingo de Agosto de 2000, a cada olhar.

Crónica para o Jornal de Leiria.