Paulo Kellerman é autor de sete peças, duas óperas e uma curta-metragem. Publicou vinte e dois livros em diversos géneros literários. Concebeu, coordenou ou participou em projectos com dezenas de criadores das mais diversas áreas artísticas. É responsável pelo projecto Fotografar Palavras, que desde 2016 envolveu mais de 330 criadores (fotógrafos e escritores) de 35 países, e foi co-fundador da editora Minimalista. Recebeu o Grande Prémio do Conto da Associação Portuguesa de Escritores.
# 25: Outras felicidades
1.
Posso, finalmente, fechar os olhos. A fraca luz amarelada que assombrava o quarto desaparece; agora, perante mim, dentro de mim, apenas há escuridão. Sinto o conforto do nada, da ausência. Mas, por nenhum motivo lógico, absurdamente, surge-me um pensamento inesperado; penso: a escuridão é o negro; e o negro não é a ausência de cor; o negro é a sobreposição de todas as cores. Penso: o negro não é o vazio; e a totalidade.
Não sei por que motivo penso isto, de onde vem; mas no exacto momento em que consciencializo este pensamento, algo estranho, inesperado, acontece. Na escuridão, surge uma luz. Um pontinho de branquidão, que cresce e cresce e cresce. Num instante, a escuridão transforma-se numa brancura insuportável. E tudo o que posso fazer é abrir os olhos. Fugir: da ausência.
Acolhe-me a luz amarela. Forço-me a manter os olhos abertos. Sinto medo. Incompreensão. Dúvida. E um desejo incómodo, inconscientemente consciente, de experimentar de novo. Vontade de fechar os olhos: e saborear a volúpia da luz, do nada. Mas não o faço. Adio. Decido: deixar-me-ei embriagar de desejo, de vontade, de expectativa. Saberei esperar.
Entretanto, ele continua a ressonar. E não me sinto incomodada.
2.
Levanto-me, com cuidado. Caminho, em silêncio, ainda sem saber onde vou, onde quero estar; acompanhada por uma sombra disforme, sentindo a sua presença, sentindo-me menos só. Paro junto à porta, indecisa. E durante alguns instantes, ouço o ressonar monótono. Imagino: e se os ressonares dos homens forem, na verdade, uma linguagem secreta, dirigida a seres secretos, com objectivos secretos, com potencialidades secretas? Um modo de comunicar com os anjos, por exemplo. Diálogos pedagógicos, uma forma simples de cada humano comunicar com o seu anjo da guarda e, assim, tentar resolver problemas quotidianos. Porque não? Sorrio. Agrada-me esta ideia disparatada. E tento imaginar de que se lamentará ele; mas, depois penso: não, não quero saber, não me interessa. (Será que ele já não me interessa?)
Afasto-me silenciosamente, dou por mim na cozinha. Sento-me à mesa, como fazem as mulheres infelizes nos filmes americanos. Mas não fumo. Prefiro beber leite gelado, por uma palhinha. Se tivesse uma guitarra, tocava-a; se tivesse uma piscina, nadava-a; se tivesse um bolo de chocolate, comia-o; se tivesse uma flor, cheirava-a; se tivesse um balancé, usava-o; se tivesse um espelho, sorria-lhe. Penso: tanto que me falta. Penso: quando conseguir dormir, ressonarei com o meu anjo e pedir-lhe-ei tudo isto. Pequenas banalidades, grandes prazeres. Balancés e bolos de chocolate e guitarras. Peço pouco, eu.
Não me sinto só, acompanha-me o leite que vou bebendo. Mas há, também, a minha sombra, que se vai movendo langorosamente; e o cheiro do meu corpo, que me excita um pouco. Descubro, com alguma surpresa: mesmo que desejasse, jamais conseguiria estar sozinha, completamente sozinha. E assusto-me um pouco, incomoda-me esta falta de privacidade.
Continuo a beber leite. Tentando afogar as dúvidas, os medos, as contradições. À espera.
3.
Sinto os segundos passarem. Quase os consigo ver, aproximando-se, um após outro. Todos em filinha. Tímidos. Desinteressados. Seguindo a sua rotina milenar: cada um chega, toca-me, entrega-me a sua carga (hoje, trazem-me serenidade) e afasta-se. Nunca se despedem. E por mais que me esforce, sou incapaz de sentir saudades dos que partiram; ou curiosidade, pelos que ainda chegarão. Já não há surpresa, apenas cansaço.
De repente, sinto-me saturada do sabor do leite. Levanto-me, lavo o copo; aprecio a carícia da água fria nas mãos, o contacto líquido na pele. Deixo-a correr, prolongo. Depois, volto a sentar-me, forço o olhar a vaguear pela cozinha. Fixo-me nos azulejos brancos, conto-os, procuro imperfeições, imagino-os cobertos por desenhos de criança. Toco-os, primeiro com a ponta dos dedos, depois com a face. Sinto-me tonta; e gosto. Depois, canso-me.
Decido: apetece-me a varanda. E já cá estou, olhando a noite. Procuro janelas iluminadas, não encontro. E uma estranha tristeza invade-me, por não ter com quem partilhar esta noite. Concentro-me, tentando escutar os murmúrios dos casais que se amam, que se fodem, por esses quartos escuros, nesses sofás iluminados por explosões de cor da televisão silenciosa, nas bancadas de cozinha, ao lado dos microondas e das torradeiras. Mas não consigo ouvir nada. Penso: por estes dias, já ninguém faz amor; demasiada preguiça, talvez cansaço; indiferença; doenças fingidas, depois confessadas ao anjo de serviço através de envergonhados ressonares.
Conto estrelas. E imagino-me a tocá-las, agarrá-las, acariciá-las. E cheirá-las. Pergunto-me: qual será o cheiro das estrelas? Penso nisso. E sinto o vento fresco despegar-se da noite, aproximar-se, tocar-me. Enrolar-me o cabelo. Acariciar-me a ponta do nariz. Segredar-me aos ouvidos.
Apetece-me música. Procuro a lua e encontro-a lá longe, tímida, discreta, cansada. Penso: a lua está com o período. Mesmo assim, não resisto; peço: canta-me. E ela canta.
Sinto-me tão parva. E não é mau, não é nada mau.
4.
Agora, há uma janela iluminada. Ainda tento imaginar quem estará para além daquelas paredes, fantasiar um corpo, uma insónia, uma dor, um sorriso. Mas não sou capaz. Não me interessam fantasias, devaneios. Não me apetecem fingimentos. Sorrio, na escuridão. E digo a mim própria, em voz baixa, baixinha, em voz secreta, só minha: não quero mais masturbações.
E saio da varanda, entro na cozinha aos saltinhos. Tão feliz.
Sinto os pés nos mosaicos, a carne quente acariciando o frio, aquecendo o frio. Sinto volúpia, excitação. O sangue corre-me nas veias com frenesim, eufórico e descontrolado. Descontrolando-me. Querendo sair, soltar-se. E voar.
É o que me apetece. É o que farei, depois de lhe falar.
5.
Regresso ao quarto. Luz amarela, lutando contra as sombras; ressonar, lutando contra o silêncio. E o tempo imobilizado, à espera. Aproximo-me, cautelosa. Tentando convencer-me: sou um fantasma. E é em voz de fantasma que lhe falo. Em silêncio, digo-lhe que.
6.
Vou partir, amor.
Fizeste-me tão feliz. Correste pelo mundo e agarraste todos os pedaços de felicidade que foste encontrando, coleccionando, acumulando; guardaste-os, para depois me ofereceres cada um deles, embrulhado em papel de sorriso, embelezado por laços de carícias. Deste-me felicidade e eu recebi-a. Nem te agradecia; mas tu vias o meu sorriso e dizias: pareces o arco-íris. E eu abraçava-te.
Fui feliz contigo. Mas tenta perceber.
Agora, apetecem-me outras felicidades. Outras, diferentes. Aquelas que ainda não conheço. Aquelas que tu também não conheces e, por isso, apenas por isso, não me podes oferecer. Percebes? Apetece-me experimentar felicidades, aprender felicidades, descobrir felicidades, trocar felicidades, inventar felicidades.
Fizeste-me feliz. Mas, agora, quero mais.
7.
Abro a janela, um pouco. O ar fresco vem e inunda-me, fazendo-me sentir fria, por dentro. Apetece-me fechar os olhos mas temo a luz da escuridão. Penso: se os fechar, não conseguirei voltar a abri-los. Tento concentrar-me no silêncio, procurando descobrir sons; mas o ressonar é omnipotente, engole todas as possibilidades de ruído, todos os possíveis testemunhos de vida, de outras vidas, que possam existir (mas duvido que existam, neste momento duvido) para além desta janela. Sinto que o egoísmo me corrói, sei que a minha libertação será a sua condenação. Mas nem procuro soluções, sei que não existem. Tudo o que posso fazer é engolir a dor, guardá-la dentro de mim, aconchegá-la (tratá-la bem: para que não me incomode). Seguir o meu destino, selando o seu.
Sinto a brisa da noite. Procuro outros vestígios de companhia; e encontro: a minha sombra, esperando-me; o meu cheiro, intenso; o ar que expiro, os ruídos do meu estômago, a saliva que engulo. Sinto-me menos só, agora. E seguindo um impulso que sou incapaz de contrariar, fecho os olhos; quando a brancura começa a invadir-me narcoticamente, liberto-me, esqueço-me; grito-lhe, silenciosamente.
8.
Vê se percebes, amor.
Eu quero voar. Quero fechar os olhos, abrir os braços e voar, subir e subir e subir, atravessar nuvens e sentir a sua humidade na ponta da língua, trespassar o azul do céu com o azul dos meus olhos, e continuar, sempre, por aí acima. Quero sentar-me na lua e sentir o cheiro das estrelas. Quero ser engolida por um buraco negro, ser perseguida por uma estrela cadente. Quero espreitar o interior dos satélites, dançar nas suas asas.
E depois, regressar. Conhecer os mares, nadá-los, aprender os seus fundos. Perseguir peixes, ser engolida por uma baleia e adormecer no seu estômago. Descobrir grutas subterrâneas, desenterrar tesouros fabulosos. Encontrar o equivalente masculino das sereias (tritões, não é?) e fazer amor sobre as algas, vez após vez. Ou simplesmente: respirar dentro de água.
Quero deitar-me na erva fofa de uma campo verde e fechar os olhos, ouvir o sopro do vento acariciar as árvores; ser engolida pela escuridão, respirar devagarinho, saborear a paz; e sentir que o tempo vai parando: como se o mundo esperasse por mim. Percebes isto? Sentir que o mundo espera por mim. Sentir que sou tão importante para o mundo que ele espera por mim.
E depois, agradecer-lhe: devorando-o. Sei lá: subir árvores, andar de bicicleta, roubar nêsperas e atirar os caroços a quem calhar, colher flores, aprender a linguagem secreta dos gatos, fazer pão e comê-lo com manteiga, rasgar os livros de que não gosto, tocar violino no cimo de uma montanha, fazer aviões de papel e atirá-los do alto de um farol, escrever poemas eróticos e declamá-los a desconhecidos, colher caracóis nas bermas das estradas e depois libertá-los nos pomares, brincar com bonecas, abordar pessoas desconhecidas e adivinhar-lhes os nomes, caminhar pelos passeios e sorrir a quem passa.
Quero percorrer o mundo, cada centímetro do mundo, e apropriar-me dele, fazê-lo meu. Quero devorar vida, engolir felicidade; e depois, devolvê-la, através dos olhos, a quem amo, a quem um dia odiei. Quero beber a beleza do mundo e dos homens, embriagar-me de beleza, ser beleza. Destilar beleza. E depois, morrer: saciada. Deitar-me novamente na erva fofa do mesmo campo verde e fechar os olhos, ouvir o sopro do vento acariciar as árvores; ser engolida pela escuridão, respirar devagarinho, saborear a paz; e sentir que o tempo vai parando, parou: para sempre.
Percebes, amor?
Quero tão pouco, afinal. Não achas?
9.
Grito-lhe mas ele não ouve. Abro os olhos e contemplo o seu sono. Odeio a sua distância. Levanto-me e caminho até ele, baixo-me, os nossos rostos quase se tocam. Ressona menos, agora. E o ar quente que liberta pelo nariz traz-me o seu cheiro mais secreto, mais meu. Penso: amo-o tanto. Penso: mas não chega.
Posso, finalmente, fechar os olhos. A fraca luz amarelada que assombrava o quarto desaparece; agora, perante mim, dentro de mim, apenas há escuridão. Sinto o conforto do nada, da ausência. Mas, por nenhum motivo lógico, absurdamente, surge-me um pensamento inesperado; penso: a escuridão é o negro; e o negro não é a ausência de cor; o negro é a sobreposição de todas as cores. Penso: o negro não é o vazio; e a totalidade.
Não sei por que motivo penso isto, de onde vem; mas no exacto momento em que consciencializo este pensamento, algo estranho, inesperado, acontece. Na escuridão, surge uma luz. Um pontinho de branquidão, que cresce e cresce e cresce. Num instante, a escuridão transforma-se numa brancura insuportável. E tudo o que posso fazer é abrir os olhos. Fugir: da ausência.
Acolhe-me a luz amarela. Forço-me a manter os olhos abertos. Sinto medo. Incompreensão. Dúvida. E um desejo incómodo, inconscientemente consciente, de experimentar de novo. Vontade de fechar os olhos: e saborear a volúpia da luz, do nada. Mas não o faço. Adio. Decido: deixar-me-ei embriagar de desejo, de vontade, de expectativa. Saberei esperar.
Entretanto, ele continua a ressonar. E não me sinto incomodada.
2.
Levanto-me, com cuidado. Caminho, em silêncio, ainda sem saber onde vou, onde quero estar; acompanhada por uma sombra disforme, sentindo a sua presença, sentindo-me menos só. Paro junto à porta, indecisa. E durante alguns instantes, ouço o ressonar monótono. Imagino: e se os ressonares dos homens forem, na verdade, uma linguagem secreta, dirigida a seres secretos, com objectivos secretos, com potencialidades secretas? Um modo de comunicar com os anjos, por exemplo. Diálogos pedagógicos, uma forma simples de cada humano comunicar com o seu anjo da guarda e, assim, tentar resolver problemas quotidianos. Porque não? Sorrio. Agrada-me esta ideia disparatada. E tento imaginar de que se lamentará ele; mas, depois penso: não, não quero saber, não me interessa. (Será que ele já não me interessa?)
Afasto-me silenciosamente, dou por mim na cozinha. Sento-me à mesa, como fazem as mulheres infelizes nos filmes americanos. Mas não fumo. Prefiro beber leite gelado, por uma palhinha. Se tivesse uma guitarra, tocava-a; se tivesse uma piscina, nadava-a; se tivesse um bolo de chocolate, comia-o; se tivesse uma flor, cheirava-a; se tivesse um balancé, usava-o; se tivesse um espelho, sorria-lhe. Penso: tanto que me falta. Penso: quando conseguir dormir, ressonarei com o meu anjo e pedir-lhe-ei tudo isto. Pequenas banalidades, grandes prazeres. Balancés e bolos de chocolate e guitarras. Peço pouco, eu.
Não me sinto só, acompanha-me o leite que vou bebendo. Mas há, também, a minha sombra, que se vai movendo langorosamente; e o cheiro do meu corpo, que me excita um pouco. Descubro, com alguma surpresa: mesmo que desejasse, jamais conseguiria estar sozinha, completamente sozinha. E assusto-me um pouco, incomoda-me esta falta de privacidade.
Continuo a beber leite. Tentando afogar as dúvidas, os medos, as contradições. À espera.
3.
Sinto os segundos passarem. Quase os consigo ver, aproximando-se, um após outro. Todos em filinha. Tímidos. Desinteressados. Seguindo a sua rotina milenar: cada um chega, toca-me, entrega-me a sua carga (hoje, trazem-me serenidade) e afasta-se. Nunca se despedem. E por mais que me esforce, sou incapaz de sentir saudades dos que partiram; ou curiosidade, pelos que ainda chegarão. Já não há surpresa, apenas cansaço.
De repente, sinto-me saturada do sabor do leite. Levanto-me, lavo o copo; aprecio a carícia da água fria nas mãos, o contacto líquido na pele. Deixo-a correr, prolongo. Depois, volto a sentar-me, forço o olhar a vaguear pela cozinha. Fixo-me nos azulejos brancos, conto-os, procuro imperfeições, imagino-os cobertos por desenhos de criança. Toco-os, primeiro com a ponta dos dedos, depois com a face. Sinto-me tonta; e gosto. Depois, canso-me.
Decido: apetece-me a varanda. E já cá estou, olhando a noite. Procuro janelas iluminadas, não encontro. E uma estranha tristeza invade-me, por não ter com quem partilhar esta noite. Concentro-me, tentando escutar os murmúrios dos casais que se amam, que se fodem, por esses quartos escuros, nesses sofás iluminados por explosões de cor da televisão silenciosa, nas bancadas de cozinha, ao lado dos microondas e das torradeiras. Mas não consigo ouvir nada. Penso: por estes dias, já ninguém faz amor; demasiada preguiça, talvez cansaço; indiferença; doenças fingidas, depois confessadas ao anjo de serviço através de envergonhados ressonares.
Conto estrelas. E imagino-me a tocá-las, agarrá-las, acariciá-las. E cheirá-las. Pergunto-me: qual será o cheiro das estrelas? Penso nisso. E sinto o vento fresco despegar-se da noite, aproximar-se, tocar-me. Enrolar-me o cabelo. Acariciar-me a ponta do nariz. Segredar-me aos ouvidos.
Apetece-me música. Procuro a lua e encontro-a lá longe, tímida, discreta, cansada. Penso: a lua está com o período. Mesmo assim, não resisto; peço: canta-me. E ela canta.
Sinto-me tão parva. E não é mau, não é nada mau.
4.
Agora, há uma janela iluminada. Ainda tento imaginar quem estará para além daquelas paredes, fantasiar um corpo, uma insónia, uma dor, um sorriso. Mas não sou capaz. Não me interessam fantasias, devaneios. Não me apetecem fingimentos. Sorrio, na escuridão. E digo a mim própria, em voz baixa, baixinha, em voz secreta, só minha: não quero mais masturbações.
E saio da varanda, entro na cozinha aos saltinhos. Tão feliz.
Sinto os pés nos mosaicos, a carne quente acariciando o frio, aquecendo o frio. Sinto volúpia, excitação. O sangue corre-me nas veias com frenesim, eufórico e descontrolado. Descontrolando-me. Querendo sair, soltar-se. E voar.
É o que me apetece. É o que farei, depois de lhe falar.
5.
Regresso ao quarto. Luz amarela, lutando contra as sombras; ressonar, lutando contra o silêncio. E o tempo imobilizado, à espera. Aproximo-me, cautelosa. Tentando convencer-me: sou um fantasma. E é em voz de fantasma que lhe falo. Em silêncio, digo-lhe que.
6.
Vou partir, amor.
Fizeste-me tão feliz. Correste pelo mundo e agarraste todos os pedaços de felicidade que foste encontrando, coleccionando, acumulando; guardaste-os, para depois me ofereceres cada um deles, embrulhado em papel de sorriso, embelezado por laços de carícias. Deste-me felicidade e eu recebi-a. Nem te agradecia; mas tu vias o meu sorriso e dizias: pareces o arco-íris. E eu abraçava-te.
Fui feliz contigo. Mas tenta perceber.
Agora, apetecem-me outras felicidades. Outras, diferentes. Aquelas que ainda não conheço. Aquelas que tu também não conheces e, por isso, apenas por isso, não me podes oferecer. Percebes? Apetece-me experimentar felicidades, aprender felicidades, descobrir felicidades, trocar felicidades, inventar felicidades.
Fizeste-me feliz. Mas, agora, quero mais.
7.
Abro a janela, um pouco. O ar fresco vem e inunda-me, fazendo-me sentir fria, por dentro. Apetece-me fechar os olhos mas temo a luz da escuridão. Penso: se os fechar, não conseguirei voltar a abri-los. Tento concentrar-me no silêncio, procurando descobrir sons; mas o ressonar é omnipotente, engole todas as possibilidades de ruído, todos os possíveis testemunhos de vida, de outras vidas, que possam existir (mas duvido que existam, neste momento duvido) para além desta janela. Sinto que o egoísmo me corrói, sei que a minha libertação será a sua condenação. Mas nem procuro soluções, sei que não existem. Tudo o que posso fazer é engolir a dor, guardá-la dentro de mim, aconchegá-la (tratá-la bem: para que não me incomode). Seguir o meu destino, selando o seu.
Sinto a brisa da noite. Procuro outros vestígios de companhia; e encontro: a minha sombra, esperando-me; o meu cheiro, intenso; o ar que expiro, os ruídos do meu estômago, a saliva que engulo. Sinto-me menos só, agora. E seguindo um impulso que sou incapaz de contrariar, fecho os olhos; quando a brancura começa a invadir-me narcoticamente, liberto-me, esqueço-me; grito-lhe, silenciosamente.
8.
Vê se percebes, amor.
Eu quero voar. Quero fechar os olhos, abrir os braços e voar, subir e subir e subir, atravessar nuvens e sentir a sua humidade na ponta da língua, trespassar o azul do céu com o azul dos meus olhos, e continuar, sempre, por aí acima. Quero sentar-me na lua e sentir o cheiro das estrelas. Quero ser engolida por um buraco negro, ser perseguida por uma estrela cadente. Quero espreitar o interior dos satélites, dançar nas suas asas.
E depois, regressar. Conhecer os mares, nadá-los, aprender os seus fundos. Perseguir peixes, ser engolida por uma baleia e adormecer no seu estômago. Descobrir grutas subterrâneas, desenterrar tesouros fabulosos. Encontrar o equivalente masculino das sereias (tritões, não é?) e fazer amor sobre as algas, vez após vez. Ou simplesmente: respirar dentro de água.
Quero deitar-me na erva fofa de uma campo verde e fechar os olhos, ouvir o sopro do vento acariciar as árvores; ser engolida pela escuridão, respirar devagarinho, saborear a paz; e sentir que o tempo vai parando: como se o mundo esperasse por mim. Percebes isto? Sentir que o mundo espera por mim. Sentir que sou tão importante para o mundo que ele espera por mim.
E depois, agradecer-lhe: devorando-o. Sei lá: subir árvores, andar de bicicleta, roubar nêsperas e atirar os caroços a quem calhar, colher flores, aprender a linguagem secreta dos gatos, fazer pão e comê-lo com manteiga, rasgar os livros de que não gosto, tocar violino no cimo de uma montanha, fazer aviões de papel e atirá-los do alto de um farol, escrever poemas eróticos e declamá-los a desconhecidos, colher caracóis nas bermas das estradas e depois libertá-los nos pomares, brincar com bonecas, abordar pessoas desconhecidas e adivinhar-lhes os nomes, caminhar pelos passeios e sorrir a quem passa.
Quero percorrer o mundo, cada centímetro do mundo, e apropriar-me dele, fazê-lo meu. Quero devorar vida, engolir felicidade; e depois, devolvê-la, através dos olhos, a quem amo, a quem um dia odiei. Quero beber a beleza do mundo e dos homens, embriagar-me de beleza, ser beleza. Destilar beleza. E depois, morrer: saciada. Deitar-me novamente na erva fofa do mesmo campo verde e fechar os olhos, ouvir o sopro do vento acariciar as árvores; ser engolida pela escuridão, respirar devagarinho, saborear a paz; e sentir que o tempo vai parando, parou: para sempre.
Percebes, amor?
Quero tão pouco, afinal. Não achas?
9.
Grito-lhe mas ele não ouve. Abro os olhos e contemplo o seu sono. Odeio a sua distância. Levanto-me e caminho até ele, baixo-me, os nossos rostos quase se tocam. Ressona menos, agora. E o ar quente que liberta pelo nariz traz-me o seu cheiro mais secreto, mais meu. Penso: amo-o tanto. Penso: mas não chega.
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