Era uma vez um sítio onde faltava uma árvore. Havia campo e nuvens, o cheiro da relva, borboletas e caracóis, silêncio. Mas faltava a árvore.
– Faltava eu.
– É estranho pensarmos em como seria o mundo antes de fazermos parte dele.
– Ainda me lembro da plantação da minha semente, foi como se a natureza se tivesse unido e trabalhado em conjunto, uma espécie de dança do sol e da chuva e da terra, para me receber. Para que se cumprisse aquilo que eu já era em potência: uma árvore.
– São essas as tuas primeiras memórias? De antes de nasceres?
– Sim. Mas lembro, também, o que senti quando era uma árvore recém-nascida. Olhar em volta e descobrir o mundo pela primeira vez, senti-lo, respirá-lo, cheirá-lo. E pensar: uau. Pensar: caramba. Pensar: isto é tão fixe.
– Nascer deve ser uma coisa bem boa. Gostava de experimentar, um dia.
– E logo depois apareceu um cão e fez xixi mesmo em cima de mim. E eu pensei: está a regar-me. E até isso pareceu fixe. Mas foi o primeiro contratempo que tive. Porque apesar de ser fixe, era um bocado desagradável. E apeteceu-me sair dali. Foi então que percebi: oh, não consigo mudar de sítio. Estou presa.
– E isso deixou-te triste?
– Não. Sentia-me feliz. Como é que alguém que acabou de nascer se pode sentir triste? Tem a vida toda pela frente e o mundo inteiro para conhecer. O tempo ainda está a começar.
– Eras uma jovem árvore muito ajuizada. Mas também um pouco sonhadora.
– Sentia muita curiosidade. Curiosidade pelo mundo que existia para além do que me rodeava, do mundo que não conseguia ver nem respirar nem cheirar. Sentia uma vontade enorme de conhecer, de aprender; e perguntava-me se não existiria uma forma ou um local onde se pudesse conhecer e aprender tudo o que existe para saber sobre o mundo.
– Existe. Chama-se escola.
– Sim. E era esse o meu sonho, enquanto crescia. Já que não podia ir à escola, porque estava presa à terra, que viesse a escola até mim. Para me ensinar o mundo. E às vezes, segredava esse pedido ao deus das árvores: traz-me uma escola.
– E eu ouvi.
– Ouviste. Houve um dia em que apareceram pessoas. Estava habituada às borboletas e aos caracóis, aos coelhos selvagens e aos pássaros, às sardaniscas, mas nunca vira pessoas. Fiquei a observar como andavam de um lado para o outro, a medir e a projectar e a discutir e a escavar e a rir e a arquitectar e a engonhar. Ainda não sabia o que tudo aquilo significava mas depois percebi: estavam a imaginar uma escola.
– É isso que as pessoas têm de melhor. Imaginam. E por vezes conseguem concretizar o que imaginam.
– Fartaram-se de imaginar, de um lado para o outro. E depois construíram, foram construindo e construindo e eu a pensar: uau. A pensar: caramba. A pensar: isto é tão fixe.
– És uma árvore que se entusiasma muito.
– Pois sou. Especialmente quando as coisas correm como gosto. Que foi o que aconteceu com a escola. Passou-se tal e qual como desejara. Fui assistindo e vivendo o quotidiano da escola; apesar de não estar lá, aprendia tudo o que sempre sonhara aprender através do que observava, do que ouvia. Apesar de nunca sair do mesmo sítio, aprendia e sentia o mundo, que chegava até mim através das visões e sentimentos de todas as pessoas com quem me cruzava.
– Apaixonaste-te pelas pessoas. E as borboletas e caracóis, os coelhos selvagens e os pássaros, as sardaniscas?
– Continuaram as suas vidas e, à noite, faziam-me companhia. Mas com as pessoas fui aprendendo tudo sobre o mundo; e quanto mais aprendia, suspeitava que havia muito que ainda faltava aprender. O saber é como um bolo de chocolate: quanto mais comemos, mais queremos comer. Até doer a barriga.
– As árvores não comem bolo de chocolate. E não têm barriga.
– Mas além de me mostrar o mundo e o seu funcionamento, a escola ensinou-me algo mais importante. Ensinou-me a pensar. Por isso é que posso falar de coisas que não vi, como o bolo de chocolate. Porque as pensei. E sabes outra coisa que a escola me ensinou a compreender?
– Sou o deus das árvores. Sei tudo.
– Mas digo na mesma. Ensinou-me o que é o tempo. Fui envelhecendo, as folhas caíam e vinham outras novas, mas o meu tronco ia acumulando círculos. Os círculos do tempo. Como os relógios acumulam as voltas dos seus ponteiros. A escola mantinha-se fervilhante de vida, sempre agitada, sempre ruidosa. Os novos alunos que chegavam eram filhos dos primeiros alunos, que visitavam a sua antiga escola como adultos, como encarregados de educação. Era como uma repetição, os sorrisos e as birras eram iguais. Um ciclo. O tempo tinha passado, mas parecia que não. O tempo está sempre a passar, mesmo quando parece que não.
– Sempre. Toda a gente sabe isso. Menos as borboletas e caracóis, os coelhos selvagens e os pássaros, as sardaniscas.
– O tempo passou. Ainda havia muito para aprender, há sempre infinidades de coisas para aprender, mas as crianças que andavam pela escola iam diminuindo. Eram pouquinhas. E depois, nenhumas. Um dia, a escola fechou, ficou abandonada. Apenas paredes sem vida. Não sabia para onde teriam ido as crianças, como fariam para aprender. Preocupava-me com elas, mas também comigo. Lamentava-me: mas ainda tenho muito para aprender, ainda preciso viajar tanto…
– Esqueceste que o tempo também estava a passar para ti. É como se fosses um relógio, e medisses o tempo da escola. Mas mesmo quando está a medir o tempo para os outros, o tempo também está a passar para o relógio.
– As paredes abandonadonas foram caindo. E tudo voltou ao que era antes. Campo e nuvens, o cheiro da relva, borboletas e caracóis, silêncio. Eu a perguntar-me como iria prosseguir a minha vida, a minha viagem no tempo. Volta a aparecer um cão e a regar-me com o seu xixi. Como um ciclo que se encerra. Recordo o som do riso das crianças quando corriam ao acaso e desordenadamente pela escola. Revivo algumas memórias, pergunto-me com quem as partilharei, quem as recordará. Pergunto às sardaniscas: o que fica de nós, depois de desaparecermos? Quem toma conta do que resta de nós? As sardaniscas não respondem. Mas se falassem, talvez dissessem que há muitas formas de aprender, de conhecer, de descobrir, de viajar, de partilhar; e de recordar, de manter vivo o que já não é vivo…
– As sardaniscas sempre foram sensatas.
– Olhava para o céu azul, via as nuvens passarem. Gostava de ser nuvem e esvoaçar ao acaso. Conheces o deus das nuvens? Aposto que é um deus bem fixe.
– Por acaso, é.
– Olhava as nuvens e pensava que a vida até pode parecer um ciclo mas, na verdade, talvez seja uma linha sem fim. Não uma linha externa e imposta por alguém, e que temos de seguir obrigatoriamente; mas uma linha que nós próprios inventamos e seguimos, uma linha que improvisamos. E por isso é que a linha da nossa vida, a nossa pegada no mundo, pode parecer torta e confusa, cheia de curvas e voltas…
– Como o rasto deixado na areia por uma sardanisca irrequieta.
– Uma linha que criamos e seguimos mesmo que sejamos uma árvore presa à terra, com raízes que nunca viram o sol. Deixei um rasto bonito no mundo, não deixei?
O deus das árvores sorri. Abre a porta do céu das árvores e deseja as boas vindas. Devagarinho, a árvore entra. Também está a sorrir.
(Conto escrito para a VI edição do Serão com Arte