Liliana Gonçalves, Sónia Pedrosa, Laura Perdomo Bouza Mayor, Tânia Chavinha, Bruno Jerónimo, Ana Moderno.
Oito da noite num dia de Janeiro. A cidade está escura e fria, húmida, desconfortável; deserta. Atravesso a rua e entro na sala de ensaio; estão todos à beira da pequena lareira, a rir. Alguém diz: «Olha o escritor, agora portem-se bem.» Saudações, sorrisos, muitas piadolas. A Tânia conversa com o Bruno, a Sónia vai petiscando e oferecendo a toda a gente, a Ana e a Liliana trocam anedotas à desgarrada, o Pedro intromete-se no duelo e conta uma piada inventada no momento, a Laura assiste com um sorriso. O tempo passa sem pressa, a cidade escura e fria, húmida, ficou longe, esquecida. Está-se bem aqui, está-se em casa. Mas alguém precisa pôr ordem nas coisas e geralmente é a Liliana: «Oh xuxus, vamos lá a isto, pá.» “Xuxus” é uma expressão muito usada pela Liliana; faz-me sorrir sempre. Devagarinho, vão-se organizando, aproximam-se do palco onde as habituais cinco cadeiras vazias aguardam. E depois, tudo muda. A algazarra suspende-se, o ensaio começa; os xuxus trabalham. E a sua dedicação impressiona-me sempre. São pessoas com empregos (apenas o Pedro é profissional do teatro) e com famílias, com projectos de todos os géneros, pessoas que têm de fazer muita ginástica com o relógio e a agenda para conseguirem corresponder a todas as solicitações, pessoas que fazem sacrifícios para estarem ali à beira da lareira. Mas quando a Liliana põe ordem na casa, os xuxus transformam-se em profissionais do teatro. Nunca me canso de assistir aos ensaios, não me canso de assistir à magia que estas pessoas materializam à minha frente, semana após semana: pegam num texto que escrevi e dão-lhe vida, tornando-o seu; fazem-no crescer, completam-no dando-lhe um sentido e uma nova dimensão. Transformam palavras em acção, em movimento, em emoção. Conseguem que quase chore, que quase fique sem ar de tanto rir. Pegam no que escrevi e convertem simples palavras em fragmentos de vida, onde cabe tensão e riso, ternura e agressão, amor e desprezo, reflexão e doideira, confrontação e sublimação; fragmentos de vida que são como um espelho que podemos olhar e onde nos podemos reconhecer, se quisermos, se conseguirmos. Fazem realmente magia: na passagem do texto a peça de teatro, a forma como tensão e riso se misturam e conciliam, a subtileza das emoções e sentimentos que nascem no palco, impressiona-me sempre; e apenas há uma explicação para tal magia: a entrega e o talento, a cumplicidade, daquelas sete pessoas. Impressiona-me também a sua paciência. Porque a cada segmento de dez minutos que é ensaiado, o Pedro faz uns comentários e umas sugestões, diz: «Façam de novo.» E os actores repetem. E uma vez mais, o Pedro faz uns comentários e umas sugestões, diz: «Façam de novo.» E os actores repetem; várias vezes, as vezes que o Pedro quiser. Há momentos em que sinto que já não suportam o texto. Mas na semana seguinte, lá estão todos de novo; à beira da pequena lareira, a rir. À espera que a Liliana diga: «Vá lá, xuxus.» E eu lá estou também, agradecido e feliz por estas pessoas terem entrado na minha vida. (A peça chama-se Libelinhas, estreia n’O Nariz a 17 de Março.)
Ana Gilbert seleccionou e fotografou vinte e sete excertos do livro Serviços Mínimos de Felicidade. A partir desse conjunto de fotos, escrevi o conto Almas Desligadas, que poderá ser lido como um capítulo escondido do romance Serviços Mínimos de Felicidade. O ebook que reúne as fotos e o conto pode ser visto, lido e descarregado aqui.