1.
Lá estavas a examinar os livros, um pouco curiosa, um pouco enfadada; olhavas demoradamente, por vezes pegavas um, abrias ao acaso, lias umas frases, espreitavas a etiqueta do preço, pousavas. Não parecias procurar algo em particular; talvez estivesses apenas a matar tempo, ou a aguardar a chegada de alguém; ou talvez esperasses ser surpreendida por algum dos livros, talvez esperasses ser subitamente arrebatada por umas linhas lidas ao acaso, sussurradas pelo destino.
Fui olhando, com curiosidade; espiando. Começando a gostar de ti.
2.
Muitas pessoas entre nós, conversas e risos: e tu completamente indiferente, alheada; mesmo quando alguém passava junto de ti e te tocava, não olhavas. Pegavas nos livros, simplesmente; sem reverência, sem aquela devoção algo aflitiva que alguns desesperados dedicam aos livros. Por vezes, esticavas um braço para pegar um livro mais distante e a manga da T-Shirt subia, revelando uma pequena tatuagem. Vi-a diversas vezes, sentindo-me desagradado: surpreende-me que mulheres bonitas deteriorem o seu corpo com manchas de tinta, com pedaços de latão, que escondam metade do rosto com óculos de sol ridículos, que segurem um cigarro entre os dedos convencidas de que isso é um gesto de sedução. Estive quase a afastar-me, decepcionado, quase vencido pelos meus preconceitos. Mas entretanto percebi que te afastavas da zona da literatura, levando um livro na mão. E segui-te, impelido pela curiosidade de descobrir qual fora, afinal, a tua escolha.
3.
Dirigiste-te para a zona da música, onde caminhaste entre os expositores, pegaste alguns CD’s, espreitaste as promoções. Consegui então espreitar a capa do livro que pegavas; e não me decepcionaste. De novo curioso, de novo seduzido, estudei-te com mais atenção; a saia solta, revelando joelhos magros; a T-Shirt justa, delineando os seios; um cinto coberto de brilhantes; pulseiras, anéis; elegância cuidada, sedução discreta. Fui imaginando um quarto vasto e elegante, coberto de sol: e tu nua, escolhendo cada peça de roupa, cada acessório; preparando-te para enfrentares o mundo, discreta e bela. Inacessível.
Seleccionaste um CD e procuraste um posto de escuta, onde permaneceste alguns minutos a ouvir o teu CD, dançando quase imperceptivelmente. Depois, juntaste-o ao livro e afastaste-te em direcção à área de pagamento. Saia a balouçar, tilintar de pulseiras, cabeça erguida, passos firmes. Fiquei a olhar-te, enquanto te afastavas: memorizando o teu corpo. Despedindo-me.
4.
Regressei ao posto de escuta que ocuparas, onde a tua selecção ainda estava activa; fiquei a ouvir, sentindo a volúpia de estar a ser tocado por um objecto que acabara de ser tocado por ti. E aí permaneci muito tempo, sentindo-te através dos auscultadores, tocando-te (recebendo o teu toque) através dos auscultadores. Pensando que há sempre intermediários, há sempre mediadores que nos unem mas, simultaneamente, impedem a entrega total; porque tudo o que nos aproxima de alguém pode representar, também, uma última defesa, uma derradeira possibilidade de fuga, de adiamento, de suspensão. Como os corpos: permitem que os usemos para concretizar o amor que sentimos pelo outro, para satisfazer o desejo que sentimos pelo outro; mas são precisamente os corpos que nos impendem de alcançar o amor pleno, o amor além-corpo que secretamente ambicionamos, o amor utópico que deveria existir para além do corpo, da morte, do tempo. O amor infinito.
Apertei os auscultadores contra as orelhas e fechei os olhos. Pensando: tranquiliza-nos saber que nunca seremos totalmente de alguém; mas entristece-nos saber que aqueles que amamos nunca serão totalmente nossos.
5.
Antes tinha fantasias normais. Olhar-te-ia e imaginaria como seria afastar-te o vestido e lamber-te o mamilo, imaginaria a sua textura, o seu sabor, a sua consistência, a sua elasticidade; imaginaria os teus suspiros, os teus gemidos, os teus silêncios; imaginaria que me apertarias contra ti, talvez com violência, talvez com impaciência, talvez com ternura. Imaginaria a suavidade das tuas coxas, a firmeza das tuas nádegas. Imaginaria a cor das tuas cuecas, imaginaria que seriam fáceis de despir. Imaginaria como seriam os teus pêlos púbicos, se seriam incomodativos quando beijasse o teu sexo. Imaginaria como seria foder-te no banco traseiro do meu carro, nas casas de banho deste centro comercial. Imaginaria o teu riso, no fim.
Antes. Agora, cansei-me de fantasias que jamais se concretizarão. Olho alguma mulher bonita, como tu, e imagino como se chamará. Nada mais.
6.
Acabei por comprar o mesmo CD, o mesmo livro.
Não voltei a ouvir o CD e o livro desinteressou-me completamente a partir da vigésima linha. Mas ambos me lembram que tu existes, algures. Uma pessoa concreta. Uma possibilidade: tocámo-nos, por momentos, unidos por uns auscultadores; e poderia ter acontecido, pode sempre acontecer mais qualquer coisa.
Lá estavas a examinar os livros, um pouco curiosa, um pouco enfadada; olhavas demoradamente, por vezes pegavas um, abrias ao acaso, lias umas frases, espreitavas a etiqueta do preço, pousavas. Não parecias procurar algo em particular; talvez estivesses apenas a matar tempo, ou a aguardar a chegada de alguém; ou talvez esperasses ser surpreendida por algum dos livros, talvez esperasses ser subitamente arrebatada por umas linhas lidas ao acaso, sussurradas pelo destino.
Fui olhando, com curiosidade; espiando. Começando a gostar de ti.
2.
Muitas pessoas entre nós, conversas e risos: e tu completamente indiferente, alheada; mesmo quando alguém passava junto de ti e te tocava, não olhavas. Pegavas nos livros, simplesmente; sem reverência, sem aquela devoção algo aflitiva que alguns desesperados dedicam aos livros. Por vezes, esticavas um braço para pegar um livro mais distante e a manga da T-Shirt subia, revelando uma pequena tatuagem. Vi-a diversas vezes, sentindo-me desagradado: surpreende-me que mulheres bonitas deteriorem o seu corpo com manchas de tinta, com pedaços de latão, que escondam metade do rosto com óculos de sol ridículos, que segurem um cigarro entre os dedos convencidas de que isso é um gesto de sedução. Estive quase a afastar-me, decepcionado, quase vencido pelos meus preconceitos. Mas entretanto percebi que te afastavas da zona da literatura, levando um livro na mão. E segui-te, impelido pela curiosidade de descobrir qual fora, afinal, a tua escolha.
3.
Dirigiste-te para a zona da música, onde caminhaste entre os expositores, pegaste alguns CD’s, espreitaste as promoções. Consegui então espreitar a capa do livro que pegavas; e não me decepcionaste. De novo curioso, de novo seduzido, estudei-te com mais atenção; a saia solta, revelando joelhos magros; a T-Shirt justa, delineando os seios; um cinto coberto de brilhantes; pulseiras, anéis; elegância cuidada, sedução discreta. Fui imaginando um quarto vasto e elegante, coberto de sol: e tu nua, escolhendo cada peça de roupa, cada acessório; preparando-te para enfrentares o mundo, discreta e bela. Inacessível.
Seleccionaste um CD e procuraste um posto de escuta, onde permaneceste alguns minutos a ouvir o teu CD, dançando quase imperceptivelmente. Depois, juntaste-o ao livro e afastaste-te em direcção à área de pagamento. Saia a balouçar, tilintar de pulseiras, cabeça erguida, passos firmes. Fiquei a olhar-te, enquanto te afastavas: memorizando o teu corpo. Despedindo-me.
4.
Regressei ao posto de escuta que ocuparas, onde a tua selecção ainda estava activa; fiquei a ouvir, sentindo a volúpia de estar a ser tocado por um objecto que acabara de ser tocado por ti. E aí permaneci muito tempo, sentindo-te através dos auscultadores, tocando-te (recebendo o teu toque) através dos auscultadores. Pensando que há sempre intermediários, há sempre mediadores que nos unem mas, simultaneamente, impedem a entrega total; porque tudo o que nos aproxima de alguém pode representar, também, uma última defesa, uma derradeira possibilidade de fuga, de adiamento, de suspensão. Como os corpos: permitem que os usemos para concretizar o amor que sentimos pelo outro, para satisfazer o desejo que sentimos pelo outro; mas são precisamente os corpos que nos impendem de alcançar o amor pleno, o amor além-corpo que secretamente ambicionamos, o amor utópico que deveria existir para além do corpo, da morte, do tempo. O amor infinito.
Apertei os auscultadores contra as orelhas e fechei os olhos. Pensando: tranquiliza-nos saber que nunca seremos totalmente de alguém; mas entristece-nos saber que aqueles que amamos nunca serão totalmente nossos.
5.
Antes tinha fantasias normais. Olhar-te-ia e imaginaria como seria afastar-te o vestido e lamber-te o mamilo, imaginaria a sua textura, o seu sabor, a sua consistência, a sua elasticidade; imaginaria os teus suspiros, os teus gemidos, os teus silêncios; imaginaria que me apertarias contra ti, talvez com violência, talvez com impaciência, talvez com ternura. Imaginaria a suavidade das tuas coxas, a firmeza das tuas nádegas. Imaginaria a cor das tuas cuecas, imaginaria que seriam fáceis de despir. Imaginaria como seriam os teus pêlos púbicos, se seriam incomodativos quando beijasse o teu sexo. Imaginaria como seria foder-te no banco traseiro do meu carro, nas casas de banho deste centro comercial. Imaginaria o teu riso, no fim.
Antes. Agora, cansei-me de fantasias que jamais se concretizarão. Olho alguma mulher bonita, como tu, e imagino como se chamará. Nada mais.
6.
Acabei por comprar o mesmo CD, o mesmo livro.
Não voltei a ouvir o CD e o livro desinteressou-me completamente a partir da vigésima linha. Mas ambos me lembram que tu existes, algures. Uma pessoa concreta. Uma possibilidade: tocámo-nos, por momentos, unidos por uns auscultadores; e poderia ter acontecido, pode sempre acontecer mais qualquer coisa.