1.
Sim, ouves bem: por vezes, odeio o meu filho. Sei que não te surpreendo, sei que apenas te revelo uma verdade que já conhecias, que pelo menos já suspeitavas. Conheces-me bem, lês-me tão facilmente; por isso, sei que percebes: como poderia não o odiar? Sabes como me privou da minha vida, da minha verdadeira vida. Assististe à minha transformação, à minha metamorfose, à minha degradação; agora, já não sou mulher; sou, apenas, mãe. E isso significa ser escrava dele, e do seu bem-estar, ser escrava do choro, da vontade, da fragilidade, da necessidade, da dependência de um ser que não desejei, de um ser que é um acidente. Significa viver em função dele, viver para ele. Sou escrava do meu filho, e por isso odeio-o. Mas também o amo, amo-o muito. Se apenas o odiasse, seria simples, seria fácil. Mas sou incapaz de não o amar. E há tanto para amar: amo a serenidade do seu olhar, por exemplo; e gosto de sentir o seu amor incondicional quando me toca, quando me acaricia; gosto da segurança que me transmite, amo-o quando me faz sentir útil, quando me faz sentir desejada, quando me faz sentir poderosa; gosto do seu cheiro; gosto de o ver dormir, gosto do seu sorriso quando acorda e reconhece o meu rosto. Amo-o mesmo muito: porque, agora, sou mãe; amo-o enquanto mãe, amo-o quando consigo esquecer que já não sou mulher.
Percebeste isto, não percebes?
2.
Mas depois, sabes como é: há sempre algo que te faz regressar inapelavelmente ao passado. Coisas triviais, como o tom da voz de um desconhecido, a sombra de uma árvore ou a forma como uma folha se pega ao sapato, a configuração das nuvens em determinado momento, o movimento de pessoas anónimas numa rua onde passas todos os dias, uma frase num livro, um rosto triste na televisão, o sabor de um bolo, de um rissol, de um cigarro, o convite contido num sorriso inesperado. Algo indefinido e volátil, algo que não consegues caracterizar nem descrever, e que te remete para um qualquer momento do passado; uma espécie de máquina do tempo que te envia para outro instante da tua vida, talvez um instante em que gostasses de ter permanecido, talvez um instante em que foste feliz.
Por vezes imagino que o mundo está repleto de anjos maus, anjos que carregam consigo enormes álbuns de fotografias invisíveis. Estás tu muito bem, muito feliz, a cantarolar no banho, a fazer amor, a comer bolo de chocolate, a tentar adormecer, a cheirar uma flor, a pensar no pai natal, a experimentar roupa nova, a desenhar bonecos num guardanapo e eis-te surpreendida por um destes anjos, que te exibe mesmo à frente dos olhos uma fotografia do seu álbum. E a fotografia representa um qualquer instante banal do teu passado, um momento esquecido da tua vida; vês-te, reconheces-te. E percebes, és obrigada a perceber, como a tua vida é uma simples acumulação de momentos banais, momentos que logo esqueceste, momentos que não conseguiste saborear adequadamente; uma acumulação de fotografias. Agora, está-me sempre a acontecer: vejo as fotografias imaginárias e percebo que passei a vida ansiosa ou preocupada ou aborrecida ou nervosa, de tal modo distraída que não fui capaz de reparar no que é essencial, não compreendi o âmago de cada momento; e só agora, com a passagem do tempo, consigo surpreender em determinado momento do passado a importância e o potencial que fui incapaz de lhe reconhecer em tempo real. Vejo-me perante estas fotografias, estes farrapos fragmentados de felicidade, e percebo a imensidão do que não aproveitei. E a impossibilidade de voltar atrás, de repetir, de recomeçar, exaspera-me. Penso em tudo o que podia fazer e não fiz: e sofro. Amaldiçoo este anjo e as suas fotografias, amaldiçoo a memória. Desejo esquecer, ignorar os erros do passado e enfrentar o presente com serenidade e sabedoria, transformar o presente num passado inofensivo. Mas sinto-me incapaz. E em grande parte, por causa dele. Acho que o bebé é, na verdade, o meu anjo mau. Percebes isto? Sei que estou a ser injusta, que estou a ser estúpida, mas não consigo impedir-me de projectar nele as causas do meu insucesso, da minha infelicidade; e como se não bastasse, ainda o responsabilizo pela impossibilidade em refazer o passado, de regressar atrás e fazer novas escolhas, seguir novos caminhos, experimentar novas possibilidades. Porque foi ele que me condenou a ser mãe; é a ele que atribuo o meu fim enquanto mulher; foi ele que me forçou a mudar de etapa precocemente. E então, odeio-o.
Mas não só por isso. O bebé lembra-me o Marido. Sabes como foi, nunca falámos disto mas tu sabes tão bem como eu. O Marido amava Outra; e quando ela o afastou, ficou inconsolável. Fui eu que o amparei, que o confortei, que o acariciei. Sabes como estava confusa, como ansiava por encontrar o meu caminho; sabes como precisava de uma distracção, de uma motivação. E talvez estupidamente, decidi concentrar-me nele, decidi fazer dele o meu caminho. Focalizei nele a minha necessidade de independência, de rebeldia, de controlo sobre o futuro. Precisava de definir-me, perante mim própria mas também (ou principalmente) perante os meus pais, até perante ti. Precisava de definir o meu futuro académico e profissional, precisava de definir a minha sexualidade, precisava de definir a minha ambição. E nele, no Marido, encontrei uma possibilidade de futuro; também um pretexto para não ser forçada a fazer demasiadas escolhas, demasiadas roturas. De certo modo, assumi-o como um adiamento, transformei-o em pretexto para ir adiando. Uma desculpa. Foi preciso nascer o bebé para perceber; meteram-no nas minhas mãos, a berrar, vermelho e sujo, feio feio, e pensei: não é um bebé, é um despertador. Pensei: e resultou, estou a acordar. Enfermeiras a sorrir à minha volta, e eu a pensar, a antecipar: passaram poucos anos, posso até tentar recuperar este tempo que passou; mas a partir de hoje, sentir-me-ei presa; prisioneira de mim e do meu passado, prisioneira de todas as vidas que poderia ter tido; prisioneira das escolhas que fiz e das opções que desprezei; mas não só: também prisioneira das aparências, das convenções, das obrigações; prisioneira deles. Mãe e esposa: apenas.
3.
E aqui estou, agora. A conversar contigo, a confessar-me: a lastimar-me. Tenho vinte e oito anos e sinto-me uma mulher de quarenta e cinco; pior: receio que a minha vida de agora seja a minha vida quando tiver quarenta e cinco. Não consigo contrariar esta doentia fatalidade que se apoderou de mim e me corrói suavemente, este zumbido constante que me acompanha junto ao ouvido: a tua vida já te proporcionou tudo o que tinha reservado para ti. Ouço este mantra constantemente: e começo a acreditar. A suspeitar que agora terei perante mim apenas repetições, novas combinações, novas versões. A suspeitar que a minha vida futura poderá ser feita de nuances, de subtis variações; talvez surjam algumas novidades mas a estrutura está definida e permanecerá inalterada. É isto que penso. Olhar em frente: e ver monotonia, ver o conhecido. Penso muito nisto, vejo-me como uma simples repetição, ou como se cumprisse algo pré-definido; como se não vivesse: mas reciclasse. Penso: deram-me uma daquelas vidas mais comuns, mais banais, mais lineares; uma das mais baratas; sem extras. Percebes? Ou será que apenas eu sinto isto?
Olho para trás e tenho tão pouco para mostrar. Abandonei o curso, abandonei o atletismo, abandonei quase todos os amigos; já não saio à noite, já não vou a concertos, já não fumo daquelas coisas boas, já não acredito na bondade dos outros, já não sonho ser cantora, já não fodo platonicamente com estranhos, já não tenho vontade de viagens e aventuras, já não rio sem motivo. Agora, os meus dias são feitos de reciclagens, de adiamentos; adiamentos, por enquanto. Em breve, talvez sejam compostos de desistências, de rendições. Intuo que envelhecer é precisamente isso: ir desistindo do que julgávamos possível, do que julgávamos merecer; deixar de acreditar, deixar de sonhar, deixar de desejar. E como vês, estou a envelhecer: já não sou capaz de me julgar especial; antes pensava que era potencialmente melhor que os outros, agora sei que sou apenas banal, indistinguível, dispensável. Não consigo sentir-me bonita, raramente me sinto desejada ou invejada. Por vezes, sinto falta de ser tocada, abraçada, acariciada; outras vezes, cada vez mais, sinto repulsa dos outros, assusta-me a possibilidade de toque, de tocar. Até o sexo se tornou desconfortável, uma espécie de agressão consentida. E sem prazer, sem sonho, sem fé, sem utopia, sem desejo, sem partilha, que resta?
4.
Não, não exagero. Repara como são os meus dias: passo-os com mulheres bonitas que se julgam deslumbrantes ou mulheres feias que se julgam bonitas ou mulheres deslumbrantes que se julgam deusas ou mulheres nojentas que sabem que o são; mulheres que experimentam dezenas de coisas e depois não arrumam nada, mulheres que cheiram mal e nem suspeitam, mulheres que deixam a cortina do gabinete de provas entreaberta para que eu as espreite, as aprecie, as inveje, as deseje; mulheres que me tratam mal, mulheres que me perguntam a opinião e depois não a escutam; mulheres que me tratam com arrogância, mulheres que me apalpam, mulheres que me tentam enganar; mulheres que, temporariamente, deixaram de o ser: para se transformarem, apenas, em clientes da Zara. E eu, que devo fazer? Sorrir sempre. Ouvir, dizer que sim. Impingir conforto, sensualidade, vaidade, ilusão em forma de roupa. Ser a melhor assistente do mês, ser a melhor colaboradora da loja. Deixar de ser mulher, transformar-me em funcionária da Zara. Alguém em quem o Outro não repara realmente, alguém que não interessa nem é considerado enquanto pessoa, alguém de quem o Outro não conhece o nome e não têm desejo de perguntar, alguém em quem não se pensa porque afinal o Outro sente-se tão, tão superior, alguém a cujo sorriso se é indiferente ou se corresponde com displicência, alguém que pode ser substituível sem que o Outro repare na mudança, alguém que existe para ser útil e que se esgota enquanto instrumento dessa utilidade, alguém que pode ser dispensado, despedido, trocado. Uma funcionária da Zara: é o que sou, é aquilo em que me deixei transformar.
E depois: casa. Um marido que não me ama, um filho que nem sempre amo. Jantares acompanhados de noticiários ruidosos e extractos de prestações para analisar com preocupação. Silêncios partilhados. Dissimulação e rancor. Rotina. Auto-comiseração. Discussões de vizinhos, risos de vizinhos. Risos artificiais. Fodas consentidas. Olhares fugidios. Cigarros solitários. Ausência de objectivos comuns. Ausência de objectivos pessoais. Incapacidade de distinguir os dias, as semanas. Aos vinte e oito anos, é esta a minha vida.
Ainda há momentos em que luto, em que acredito; quando espero que o sono venha, por exemplo. Imagino que tinha concluído o curso: poderia ser uma daquelas jornalistas estagiárias que apresentam reportagens insignificantes no final dos noticiários; poderia ter investido no atletismo: provas internacionais, medalhas e hinos, superação de objectivos dia após dia; poderia até cantar numa banda: gravar discos medíocres, pular em palcos, ser assediada. Também poderia ter ignorado o Marido, poderia ter abortado: libertar-me deles. Poderia ter fugido, ter gritado, ter lutado. Foda-se. Ainda posso, ainda estou a tempo. Não achas? Mas tenho medo. E há a preguiça, a inércia, a passividade. Aconchego-me ao corpo indiferente do Marido: afinal, ainda o amo; habituei-me. Depois, quando estou quase a esquecer, a adormecer, o bebé chora; e todo o fingimento de serenidade se esvai, desaparece. Fico quase só: acompanha-me, apenas, o ódio visceral que nasce da certeza da minha incapacidade de ser feliz, de construir a minha felicidade. Busco fugas desesperadas, ilusórias, tento não enfrentar a realidade e aceitar que me transformei numa pessoa ridícula e incapaz, amarga e angustiada, cobarde e rancorosa, inarticulada e ilógica, cruel e injusta, uma pessoa que reconhece o fracasso da sua vida mas é incapaz de assumir a sua culpa, a sua responsabilidade. Busco; e é então que, por vezes, penso em ti. Penso muito em ti, na verdade: penso principalmente no que poderíamos ter tido.
E tu: ainda pensas em mim?
Sim, ouves bem: por vezes, odeio o meu filho. Sei que não te surpreendo, sei que apenas te revelo uma verdade que já conhecias, que pelo menos já suspeitavas. Conheces-me bem, lês-me tão facilmente; por isso, sei que percebes: como poderia não o odiar? Sabes como me privou da minha vida, da minha verdadeira vida. Assististe à minha transformação, à minha metamorfose, à minha degradação; agora, já não sou mulher; sou, apenas, mãe. E isso significa ser escrava dele, e do seu bem-estar, ser escrava do choro, da vontade, da fragilidade, da necessidade, da dependência de um ser que não desejei, de um ser que é um acidente. Significa viver em função dele, viver para ele. Sou escrava do meu filho, e por isso odeio-o. Mas também o amo, amo-o muito. Se apenas o odiasse, seria simples, seria fácil. Mas sou incapaz de não o amar. E há tanto para amar: amo a serenidade do seu olhar, por exemplo; e gosto de sentir o seu amor incondicional quando me toca, quando me acaricia; gosto da segurança que me transmite, amo-o quando me faz sentir útil, quando me faz sentir desejada, quando me faz sentir poderosa; gosto do seu cheiro; gosto de o ver dormir, gosto do seu sorriso quando acorda e reconhece o meu rosto. Amo-o mesmo muito: porque, agora, sou mãe; amo-o enquanto mãe, amo-o quando consigo esquecer que já não sou mulher.
Percebeste isto, não percebes?
2.
Mas depois, sabes como é: há sempre algo que te faz regressar inapelavelmente ao passado. Coisas triviais, como o tom da voz de um desconhecido, a sombra de uma árvore ou a forma como uma folha se pega ao sapato, a configuração das nuvens em determinado momento, o movimento de pessoas anónimas numa rua onde passas todos os dias, uma frase num livro, um rosto triste na televisão, o sabor de um bolo, de um rissol, de um cigarro, o convite contido num sorriso inesperado. Algo indefinido e volátil, algo que não consegues caracterizar nem descrever, e que te remete para um qualquer momento do passado; uma espécie de máquina do tempo que te envia para outro instante da tua vida, talvez um instante em que gostasses de ter permanecido, talvez um instante em que foste feliz.
Por vezes imagino que o mundo está repleto de anjos maus, anjos que carregam consigo enormes álbuns de fotografias invisíveis. Estás tu muito bem, muito feliz, a cantarolar no banho, a fazer amor, a comer bolo de chocolate, a tentar adormecer, a cheirar uma flor, a pensar no pai natal, a experimentar roupa nova, a desenhar bonecos num guardanapo e eis-te surpreendida por um destes anjos, que te exibe mesmo à frente dos olhos uma fotografia do seu álbum. E a fotografia representa um qualquer instante banal do teu passado, um momento esquecido da tua vida; vês-te, reconheces-te. E percebes, és obrigada a perceber, como a tua vida é uma simples acumulação de momentos banais, momentos que logo esqueceste, momentos que não conseguiste saborear adequadamente; uma acumulação de fotografias. Agora, está-me sempre a acontecer: vejo as fotografias imaginárias e percebo que passei a vida ansiosa ou preocupada ou aborrecida ou nervosa, de tal modo distraída que não fui capaz de reparar no que é essencial, não compreendi o âmago de cada momento; e só agora, com a passagem do tempo, consigo surpreender em determinado momento do passado a importância e o potencial que fui incapaz de lhe reconhecer em tempo real. Vejo-me perante estas fotografias, estes farrapos fragmentados de felicidade, e percebo a imensidão do que não aproveitei. E a impossibilidade de voltar atrás, de repetir, de recomeçar, exaspera-me. Penso em tudo o que podia fazer e não fiz: e sofro. Amaldiçoo este anjo e as suas fotografias, amaldiçoo a memória. Desejo esquecer, ignorar os erros do passado e enfrentar o presente com serenidade e sabedoria, transformar o presente num passado inofensivo. Mas sinto-me incapaz. E em grande parte, por causa dele. Acho que o bebé é, na verdade, o meu anjo mau. Percebes isto? Sei que estou a ser injusta, que estou a ser estúpida, mas não consigo impedir-me de projectar nele as causas do meu insucesso, da minha infelicidade; e como se não bastasse, ainda o responsabilizo pela impossibilidade em refazer o passado, de regressar atrás e fazer novas escolhas, seguir novos caminhos, experimentar novas possibilidades. Porque foi ele que me condenou a ser mãe; é a ele que atribuo o meu fim enquanto mulher; foi ele que me forçou a mudar de etapa precocemente. E então, odeio-o.
Mas não só por isso. O bebé lembra-me o Marido. Sabes como foi, nunca falámos disto mas tu sabes tão bem como eu. O Marido amava Outra; e quando ela o afastou, ficou inconsolável. Fui eu que o amparei, que o confortei, que o acariciei. Sabes como estava confusa, como ansiava por encontrar o meu caminho; sabes como precisava de uma distracção, de uma motivação. E talvez estupidamente, decidi concentrar-me nele, decidi fazer dele o meu caminho. Focalizei nele a minha necessidade de independência, de rebeldia, de controlo sobre o futuro. Precisava de definir-me, perante mim própria mas também (ou principalmente) perante os meus pais, até perante ti. Precisava de definir o meu futuro académico e profissional, precisava de definir a minha sexualidade, precisava de definir a minha ambição. E nele, no Marido, encontrei uma possibilidade de futuro; também um pretexto para não ser forçada a fazer demasiadas escolhas, demasiadas roturas. De certo modo, assumi-o como um adiamento, transformei-o em pretexto para ir adiando. Uma desculpa. Foi preciso nascer o bebé para perceber; meteram-no nas minhas mãos, a berrar, vermelho e sujo, feio feio, e pensei: não é um bebé, é um despertador. Pensei: e resultou, estou a acordar. Enfermeiras a sorrir à minha volta, e eu a pensar, a antecipar: passaram poucos anos, posso até tentar recuperar este tempo que passou; mas a partir de hoje, sentir-me-ei presa; prisioneira de mim e do meu passado, prisioneira de todas as vidas que poderia ter tido; prisioneira das escolhas que fiz e das opções que desprezei; mas não só: também prisioneira das aparências, das convenções, das obrigações; prisioneira deles. Mãe e esposa: apenas.
3.
E aqui estou, agora. A conversar contigo, a confessar-me: a lastimar-me. Tenho vinte e oito anos e sinto-me uma mulher de quarenta e cinco; pior: receio que a minha vida de agora seja a minha vida quando tiver quarenta e cinco. Não consigo contrariar esta doentia fatalidade que se apoderou de mim e me corrói suavemente, este zumbido constante que me acompanha junto ao ouvido: a tua vida já te proporcionou tudo o que tinha reservado para ti. Ouço este mantra constantemente: e começo a acreditar. A suspeitar que agora terei perante mim apenas repetições, novas combinações, novas versões. A suspeitar que a minha vida futura poderá ser feita de nuances, de subtis variações; talvez surjam algumas novidades mas a estrutura está definida e permanecerá inalterada. É isto que penso. Olhar em frente: e ver monotonia, ver o conhecido. Penso muito nisto, vejo-me como uma simples repetição, ou como se cumprisse algo pré-definido; como se não vivesse: mas reciclasse. Penso: deram-me uma daquelas vidas mais comuns, mais banais, mais lineares; uma das mais baratas; sem extras. Percebes? Ou será que apenas eu sinto isto?
Olho para trás e tenho tão pouco para mostrar. Abandonei o curso, abandonei o atletismo, abandonei quase todos os amigos; já não saio à noite, já não vou a concertos, já não fumo daquelas coisas boas, já não acredito na bondade dos outros, já não sonho ser cantora, já não fodo platonicamente com estranhos, já não tenho vontade de viagens e aventuras, já não rio sem motivo. Agora, os meus dias são feitos de reciclagens, de adiamentos; adiamentos, por enquanto. Em breve, talvez sejam compostos de desistências, de rendições. Intuo que envelhecer é precisamente isso: ir desistindo do que julgávamos possível, do que julgávamos merecer; deixar de acreditar, deixar de sonhar, deixar de desejar. E como vês, estou a envelhecer: já não sou capaz de me julgar especial; antes pensava que era potencialmente melhor que os outros, agora sei que sou apenas banal, indistinguível, dispensável. Não consigo sentir-me bonita, raramente me sinto desejada ou invejada. Por vezes, sinto falta de ser tocada, abraçada, acariciada; outras vezes, cada vez mais, sinto repulsa dos outros, assusta-me a possibilidade de toque, de tocar. Até o sexo se tornou desconfortável, uma espécie de agressão consentida. E sem prazer, sem sonho, sem fé, sem utopia, sem desejo, sem partilha, que resta?
4.
Não, não exagero. Repara como são os meus dias: passo-os com mulheres bonitas que se julgam deslumbrantes ou mulheres feias que se julgam bonitas ou mulheres deslumbrantes que se julgam deusas ou mulheres nojentas que sabem que o são; mulheres que experimentam dezenas de coisas e depois não arrumam nada, mulheres que cheiram mal e nem suspeitam, mulheres que deixam a cortina do gabinete de provas entreaberta para que eu as espreite, as aprecie, as inveje, as deseje; mulheres que me tratam mal, mulheres que me perguntam a opinião e depois não a escutam; mulheres que me tratam com arrogância, mulheres que me apalpam, mulheres que me tentam enganar; mulheres que, temporariamente, deixaram de o ser: para se transformarem, apenas, em clientes da Zara. E eu, que devo fazer? Sorrir sempre. Ouvir, dizer que sim. Impingir conforto, sensualidade, vaidade, ilusão em forma de roupa. Ser a melhor assistente do mês, ser a melhor colaboradora da loja. Deixar de ser mulher, transformar-me em funcionária da Zara. Alguém em quem o Outro não repara realmente, alguém que não interessa nem é considerado enquanto pessoa, alguém de quem o Outro não conhece o nome e não têm desejo de perguntar, alguém em quem não se pensa porque afinal o Outro sente-se tão, tão superior, alguém a cujo sorriso se é indiferente ou se corresponde com displicência, alguém que pode ser substituível sem que o Outro repare na mudança, alguém que existe para ser útil e que se esgota enquanto instrumento dessa utilidade, alguém que pode ser dispensado, despedido, trocado. Uma funcionária da Zara: é o que sou, é aquilo em que me deixei transformar.
E depois: casa. Um marido que não me ama, um filho que nem sempre amo. Jantares acompanhados de noticiários ruidosos e extractos de prestações para analisar com preocupação. Silêncios partilhados. Dissimulação e rancor. Rotina. Auto-comiseração. Discussões de vizinhos, risos de vizinhos. Risos artificiais. Fodas consentidas. Olhares fugidios. Cigarros solitários. Ausência de objectivos comuns. Ausência de objectivos pessoais. Incapacidade de distinguir os dias, as semanas. Aos vinte e oito anos, é esta a minha vida.
Ainda há momentos em que luto, em que acredito; quando espero que o sono venha, por exemplo. Imagino que tinha concluído o curso: poderia ser uma daquelas jornalistas estagiárias que apresentam reportagens insignificantes no final dos noticiários; poderia ter investido no atletismo: provas internacionais, medalhas e hinos, superação de objectivos dia após dia; poderia até cantar numa banda: gravar discos medíocres, pular em palcos, ser assediada. Também poderia ter ignorado o Marido, poderia ter abortado: libertar-me deles. Poderia ter fugido, ter gritado, ter lutado. Foda-se. Ainda posso, ainda estou a tempo. Não achas? Mas tenho medo. E há a preguiça, a inércia, a passividade. Aconchego-me ao corpo indiferente do Marido: afinal, ainda o amo; habituei-me. Depois, quando estou quase a esquecer, a adormecer, o bebé chora; e todo o fingimento de serenidade se esvai, desaparece. Fico quase só: acompanha-me, apenas, o ódio visceral que nasce da certeza da minha incapacidade de ser feliz, de construir a minha felicidade. Busco fugas desesperadas, ilusórias, tento não enfrentar a realidade e aceitar que me transformei numa pessoa ridícula e incapaz, amarga e angustiada, cobarde e rancorosa, inarticulada e ilógica, cruel e injusta, uma pessoa que reconhece o fracasso da sua vida mas é incapaz de assumir a sua culpa, a sua responsabilidade. Busco; e é então que, por vezes, penso em ti. Penso muito em ti, na verdade: penso principalmente no que poderíamos ter tido.
E tu: ainda pensas em mim?